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Evaldo Cabral de Mello
Evaldo Cabral de Mello nasceu em Recife no ano de 1936. Considerado um dos mais importantes estudiosos do período da dominação holandesa em Pernambuco, no século 17, o historiador dividiu a vida profissional entre a pesquisa, a sala de aula e a função de diplomata, até se aposentar. No exercício desta última atividade, morou nos Estados Unidos, França, Espanha e Portugal, mas não deixou de voltar os olhos para sua cidade natal.
Com uma família prodigiosa, é irmão do poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e primo do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987). Observador e crítico da história brasileira, já publicou os livros Nassau – Governador do Brasil Holandês (Cia. das Letras, 2006), Olinda Restaurada (Editora 34, 2007), Joaquim Nabuco Essencial (Penguin Companhia, 2010), O Bagaço da Cana (Penguin Companhia, 2012) e teve sua produção historiográfica analisada no livro Leituras Críticas sobre Evaldo Cabral de Mello (Editora UFMG – 2008), parte da coleção Intelectuais do Brasil, organizada por Lilia Moritz Schwarcz, professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP).
A seguir, acompanhe os principais trechos da entrevista com o intelectual que contribuiu para a memória e o registro de períodos relevantes para a formação brasileira.
Qual o significado do termo visão “riocêntrica” da história brasileira, cunhado pelo senhor?
Bem, é importante mencionar que o termo não se refere ao período colonial. A visão “riocêntrica” é algo que só se aplica em matéria de História do Brasil ao período do 1º (1822-1831) e 2º (1840-1889) Reinados e da Independência (1822). Cunhei a expressão em uma tentativa de explicar o processo de consolidação nacional, tendo o Rio de Janeiro e as províncias limítrofes como os protagonistas desse conjunto de fenômenos que resultaram na Independência.
A história da Independência é estudada com uma centralidade maior no que se passou no Rio de Janeiro do que nos fatos que ocorreram em São Paulo, o que pode ser visto como um fenômeno ideológico, surgido no tempo dos reinados. Por volta de 1850, o grupo de conservadores que formou a atual configuração do estado do Rio começou a alegar que a construção do Império tinha sido uma realização da província do Rio de Janeiro, na época capital do Império; em função disso esquecemos os processos que eclodiram na província.
Por isso tratei de resgatar o processo da Independência em Pernambuco, da Revolução Pernambucana de 1817, até a Revolução do Equador (1824), para mostrar como havia outras possibilidades de independência. Por exemplo, o tipo de independência sugerido no Recife, se vingasse no país todo, teria estabelecido um sistema federativo já por volta do século 17.
O que seria possível acrescentar se essa análise fosse revista?
A chamada visão “riocêntrica” ficou completamente ignorada no Período Regencial (1831-1840). Temos pequenos estudos oficializados sobre esse tema, sobretudo as revoltas provinciais que aconteceram no Pará, na Bahia e em Pernambuco. O que acontece é que a Regência não foi estudada em seu conjunto nem reabilitada historicamente, porque sempre foi interpretada pelos publicistas do Segundo Reinado como uma fase de “bagunça” latino-americana, que pode ser vista como uma fase de transição política. Havíamos saído de um regime autoritário como o de dom Pedro I e, até chegar ao regime de dom Pedro II, tínhamos que
vivenciar essa fase de transição e cair por um tempo em um processo passageiro de desestabilização.
O senhor acredita que a Regência tenha deixado marcas importantes para a liberalidade do Segundo Reinado?
Claro, porque vários políticos que participaram da Regência, mesmo quando foram colocados no ostracismo, continuaram a carreira política durante o Primeiro e o Segundo Reinado. Esse foi o caso dos chamados liberais históricos. Mas a Regência foi extremamente importante, sobretudo no aspecto que é sempre esquecido, o da divisão das rendas provinciais. A importância da divisão das rendas provinciais é que elas sustentaram o estado, porque as províncias foram praticamente exploradas pelo Rio de Janeiro.
Tal assunto nunca foi estudado, mas isso foi fundamental, porque o grupo que participou da Independência no Rio de Janeiro com Dom Pedro I se deu conta de que a alfândega do Rio era a que produzia mais, do ponto de vista do rendimento, mas que não era suficiente para sustentar a burocracia imperial instalada na cidade, e a única maneira de garantir o lucro era anexar outras, por isso todo o esforço de levar a Independência à Bahia, com a expulsão dos portugueses, ou a Pernambuco, com a expulsão dos holandeses, e assim por diante. Foi fundamental esse processo, pois tínhamos herdado do Período Colonial um aparato burocrático que tinha ficado no país após a Independência.
No livro Negócio do Brasil (Companhia de Bolso, 2011), o senhor mostra que na verdade os portugueses acabam comprando o Brasil de volta. É um entendimento correto?
Esse entendimento advém de uma reportagem que o jornalista Paulo Moreira Leite escreveu. Ele achou que eu tinha dito que o Nordeste havia sido reconquistado por via diplomática, que não foi o caso. Foi conquistado pela guerra. O que aconteceu é que depois de toda guerra tem que haver uma negociação de paz, e, depois de muitos anos de incertezas, essa negociação concluiu com o reconhecimento, pela Holanda, da perda do Nordeste brasileiro para Portugal, o que não quer dizer que o Nordeste teria sido restaurado por um acordo diplomático. Eu apenas escrevi o livro porque o período de guerra sempre foi mais importante do que a negociação, então, a maior parte dos livros era sobre a guerra. Ninguém antes havia se estendido ou explorado a negociação diplomática que houve posteriormente.
Qual a importância de um personagem como Frei Caneca (1779-1825) na história brasileira?
Frei Caneca esteve à frente do Tyfphis do Brasil, ou seja, o piloto pernambucano. O periódico foi fundado e editado por ele, de 1823 a 1824. Ele pensou um regime federativo para o país, em uma época na qual ninguém falava nessa forma de organização política.
Como inserir a Inconfidência Mineira dentro do contexto da Independência?
A Inconfidência (1789) foi uma revolta de intelectuais e de literatos, mas o que eu quero dizer é que não houve base social para sustentá-la, tanto que ela não vingou. O estadista Joaquim Nabuco (1849-1910) dizia: “O problema das revoluções é que sem revolucionários não é possível fazê-las e com revolucionários não é possível governar”. Então esse era o problema da independência brasileira também, que foi feita por esse grupo de burocratas do Rio de Janeiro, que não queriam perder a boca-livre. Não pode haver um regime que dure 60 anos sem uma base social sólida. Evidentemente, a grande propriedade só estava disposta a apoiar o
regime que lhe oferecesse garantias sobre a escravidão e o latifúndio.
Vem dessa época a contemporização do brasileiro?
A contemporização é típica de uma sociedade escravocrata. Porque, embora o lugar comum lhe dê impressão de que a sociedade escravocrata é baseada em uma violência infraestrutural, a última razão dela é obrigar o sujeito a trabalhar. O que não quer dizer que ela só tenha conhecido a violência; a sociedade escravocrata também conheceu a negociação.
Quais são as suas ferramentas de trabalho, a qual universo o senhor recorre para construir seus livros?
Como todo historiador, recorro a documentos e registros históricos. Em certo aspecto, até a ficção pode ser utilizada no trabalho historiográfico, mas com a interpretação feita de maneira restrita. Se formos mais além, podemos entender a paisagem como um registro documental.
Há o caso do historiador francês Marc Bloch (1886-1944), que começou a pesquisar o sistema feudal em estudos históricos feitos com base em fotografias das paisagens. Ele fotografou de avião a paisagem francesa, mostrando
que a paisagem agrária do país ainda tinha uma série de espaços delimitados em épocas anteriores. Assim ele registrou como a distribuição da terra no regime feudal marcou a distribuição de terra na França e como isso era observável por meio da
fotografia aérea.
Quais questões históricas podemos encontrar em suas publicações mais recentes?
A historiografia e a tarefa do historiador mudam de geração em geração, bem como a nossa formação profissional. Os historiadores do século 19 se prendiam ao documento, ao que se chamava de positivismo histórico; eles pensavam que não havia realidade histórica fora do que o documento apresenta. O historiador antigo fazia uma espécie de acareação de documentos para chegar a um resultado, caso houvesse algum conflito nos documentos estudados. Acontece que no começo do século 20 essa perspectiva mudou. Na história do século 19 prevalecia a perspectiva política; a partir desse período a perspectiva passou a ser, sobretudo, econômica. Tal fato expandiu o campo de atuação do historiador.
Outro lado importante é reconhecer que a própria história se renova. Até 1950 o historiador era um sujeito que trabalhava em casa. A maioria dos historiadores brasileiros do século 20 era funcionário público. Com a fundação dos departamentos de História nas universidades, eles começaram a ser professores, o que aumentou a competência, o grau de detalhamento dos estudos e de especialização.
E a especialização tem repercussões sérias. Por exemplo, fui diplomata, o que me permitiu viajar e escrever meus livros. O pessoal mais novo, caso queira ser historiador, não terá como primeira carreira a diplomacia ou o funcionalismo público, mas sim a carreira docente.