Postado em 01/03/2013
Evaldo Cabral de Mello nasceu em Recife no ano de 1936. Considerado um dos mais importantes estudiosos do período da dominação holandesa em Pernambuco, no século 17, o historiador dividiu a vida profissional entre a pesquisa, a sala de aula e a função de diplomata, até se aposentar. No exercício desta última atividade, morou nos Estados Unidos, França, Espanha e Portugal, mas não deixou de voltar os olhos para sua cidade natal.
Com uma família prodigiosa, é irmão do poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e primo do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987). Observador e crítico da história brasileira, já publicou os livros Nassau – Governador do Brasil Holandês (Cia. das Letras, 2006), Olinda Restaurada (Editora 34, 2007), Joaquim Nabuco Essencial (Penguin Companhia, 2010), O Bagaço da Cana (Penguin Companhia, 2012) e teve sua produção historiográfica analisada no livro Leituras Críticas sobre Evaldo Cabral de Mello (Editora UFMG – 2008), parte da coleção Intelectuais do Brasil, organizada por Lilia Moritz Schwarcz, professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP).
A seguir, acompanhe os principais trechos da entrevista com o intelectual que contribuiu para a memória e o registro de períodos relevantes para a formação brasileira.
Qual o significado do termo visão “riocêntrica” da história brasileira, cunhado pelo senhor?
Bem, é importante mencionar que o termo não se refere ao período colonial. A visão “riocêntrica” é algo que só se aplica em matéria de História do Brasil ao período do 1º (1822-1831) e 2º (1840-1889) Reinados e da Independência (1822). Cunhei a expressão em uma tentativa de explicar o processo de consolidação nacional, tendo o Rio de Janeiro e as províncias limítrofes como os protagonistas desse conjunto de fenômenos que resultaram na Independência.
A história da Independência é estudada com uma centralidade maior no que se passou no Rio de Janeiro do que nos fatos que ocorreram em São Paulo, o que pode ser visto como um fenômeno ideológico, surgido no tempo dos reinados. Por volta de 1850, o grupo de conservadores que formou a atual configuração do estado do Rio começou a alegar que a construção do Império tinha sido uma realização da província do Rio de Janeiro, na época capital do Império; em função disso esquecemos os processos que eclodiram na província.
Por isso tratei de resgatar o processo da Independência em Pernambuco, da Revolução Pernambucana de 1817, até a Revolução do Equador (1824), para mostrar como havia outras possibilidades de independência. Por exemplo, o tipo de independência sugerido no Recife, se vingasse no país todo, teria estabelecido um sistema federativo já por volta do século 17.
O que seria possível acrescentar se essa análise fosse revista?
A chamada visão “riocêntrica” ficou completamente ignorada no Período Regencial (1831-1840). Temos pequenos estudos oficializados sobre esse tema, sobretudo as revoltas provinciais que aconteceram no Pará, na Bahia e em Pernambuco. O que acontece é que a Regência não foi estudada em seu conjunto nem reabilitada historicamente, porque sempre foi interpretada pelos publicistas do Segundo Reinado como uma fase de “bagunça” latino-americana, que pode ser vista como uma fase de transição política. Havíamos saído de um regime autoritário como o de dom Pedro I e, até chegar ao regime de dom Pedro II, tínhamos que
vivenciar essa fase de transição e cair por um tempo em um processo passageiro de desestabilização.
O senhor acredita que a Regência tenha deixado marcas importantes para a liberalidade do Segundo Reinado?
Claro, porque vários políticos que participaram da Regência, mesmo quando foram colocados no ostracismo, continuaram a carreira política durante o Primeiro e o Segundo Reinado. Esse foi o caso dos chamados liberais históricos. Mas a Regência foi extremamente importante, sobretudo no aspecto que é sempre esquecido, o da divisão das rendas provinciais. A importância da divisão das rendas provinciais é que elas sustentaram o estado, porque as províncias foram praticamente exploradas pelo Rio de Janeiro.
Tal assunto nunca foi estudado, mas isso foi fundamental, porque o grupo que participou da Independência no Rio de Janeiro com Dom Pedro I se deu conta de que a alfândega do Rio era a que produzia mais, do ponto de vista do rendimento, mas que não era suficiente para sustentar a burocracia imperial instalada na cidade, e a única maneira de garantir o lucro era anexar outras, por isso todo o esforço de levar a Independência à Bahia, com a expulsão dos portugueses, ou a Pernambuco, com a expulsão dos holandeses, e assim por diante. Foi fundamental esse processo, pois tínhamos herdado do Período Colonial um aparato burocrático que tinha ficado no país após a Independência.
No livro Negócio do Brasil (Companhia de Bolso, 2011), o senhor mostra que na verdade os portugueses acabam comprando o Brasil de volta. É um entendimento correto?
Esse entendimento advém de uma reportagem que o jornalista Paulo Moreira Leite escreveu. Ele achou que eu tinha dito que o Nordeste havia sido reconquistado por via diplomática, que não foi o caso. Foi conquistado pela guerra. O que aconteceu é que depois de toda guerra tem que haver uma negociação de paz, e, depois de muitos anos de incertezas, essa negociação concluiu com o reconhecimento, pela Holanda, da perda do Nordeste brasileiro para Portugal, o que não quer dizer que o Nordeste teria sido restaurado por um acordo diplomático. Eu apenas escrevi o livro porque o período de guerra sempre foi mais importante do que a negociação, então, a maior parte dos livros era sobre a guerra. Ninguém antes havia se estendido ou explorado a negociação diplomática que houve posteriormente.
Qual a importância de um personagem como Frei Caneca (1779-1825) na história brasileira?
Frei Caneca esteve à frente do Tyfphis do Brasil, ou seja, o piloto pernambucano. O periódico foi fundado e editado por ele, de 1823 a 1824. Ele pensou um regime federativo para o país, em uma época na qual ninguém falava nessa forma de organização política.
Como inserir a Inconfidência Mineira dentro do contexto da Independência?
A Inconfidência (1789) foi uma revolta de intelectuais e de literatos, mas o que eu quero dizer é que não houve base social para sustentá-la, tanto que ela não vingou. O estadista Joaquim Nabuco (1849-1910) dizia: “O problema das revoluções é que sem revolucionários não é possível fazê-las e com revolucionários não é possível governar”. Então esse era o problema da independência brasileira também, que foi feita por esse grupo de burocratas do Rio de Janeiro, que não queriam perder a boca-livre. Não pode haver um regime que dure 60 anos sem uma base social sólida. Evidentemente, a grande propriedade só estava disposta a apoiar o
regime que lhe oferecesse garantias sobre a escravidão e o latifúndio.
Vem dessa época a contemporização do brasileiro?
A contemporização é típica de uma sociedade escravocrata. Porque, embora o lugar comum lhe dê impressão de que a sociedade escravocrata é baseada em uma violência infraestrutural, a última razão dela é obrigar o sujeito a trabalhar. O que não quer dizer que ela só tenha conhecido a violência; a sociedade escravocrata também conheceu a negociação.
Quais são as suas ferramentas de trabalho, a qual universo o senhor recorre para construir seus livros?
Como todo historiador, recorro a documentos e registros históricos. Em certo aspecto, até a ficção pode ser utilizada no trabalho historiográfico, mas com a interpretação feita de maneira restrita. Se formos mais além, podemos entender a paisagem como um registro documental.
Há o caso do historiador francês Marc Bloch (1886-1944), que começou a pesquisar o sistema feudal em estudos históricos feitos com base em fotografias das paisagens. Ele fotografou de avião a paisagem francesa, mostrando
que a paisagem agrária do país ainda tinha uma série de espaços delimitados em épocas anteriores. Assim ele registrou como a distribuição da terra no regime feudal marcou a distribuição de terra na França e como isso era observável por meio da
fotografia aérea.
Quais questões históricas podemos encontrar em suas publicações mais recentes?
A historiografia e a tarefa do historiador mudam de geração em geração, bem como a nossa formação profissional. Os historiadores do século 19 se prendiam ao documento, ao que se chamava de positivismo histórico; eles pensavam que não havia realidade histórica fora do que o documento apresenta. O historiador antigo fazia uma espécie de acareação de documentos para chegar a um resultado, caso houvesse algum conflito nos documentos estudados. Acontece que no começo do século 20 essa perspectiva mudou. Na história do século 19 prevalecia a perspectiva política; a partir desse período a perspectiva passou a ser, sobretudo, econômica. Tal fato expandiu o campo de atuação do historiador.
Outro lado importante é reconhecer que a própria história se renova. Até 1950 o historiador era um sujeito que trabalhava em casa. A maioria dos historiadores brasileiros do século 20 era funcionário público. Com a fundação dos departamentos de História nas universidades, eles começaram a ser professores, o que aumentou a competência, o grau de detalhamento dos estudos e de especialização.
E a especialização tem repercussões sérias. Por exemplo, fui diplomata, o que me permitiu viajar e escrever meus livros. O pessoal mais novo, caso queira ser historiador, não terá como primeira carreira a diplomacia ou o funcionalismo público, mas sim a carreira docente.