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Pra lá de Teerã

Após atuar em diversos campos do conhecimento, a escritora, jornalista e historiadora Márcia Camargos apaixonou-se pelo Oriente Médio. Convidada a fazer parte da curadoria do 5º Festival de Cinema do Oriente Médio (CineSesc e Galeria Olido), ela já foi jurada de diversos festivais de cinema internacionais e se especializou em cultura árabe contemporânea. Em encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, a convidada desta edição falou sobre a viagem que fez a Israel junto com grandes nomes da literatura nacional e contou como se engajou em defesa do povo palestino. “A viagem foi muito interessante. O que eu vi ali: o muro que corta, que ceifa mesmo a vida daquelas aldeias palestinas e o sistema de apartheid em que eles vivem”, afirma. Também relatou detalhes sobre o cinema e a cultura iraniana e apontou discrepâncias sociais. “Não se pode falar sobre o Irã sem ter esse olhar crítico, pois é um país de muitas contradições”, diz. A seguir, trechos.

O meu interesse pelo Oriente Médio começou com um convite para uma viagem a Israel em 2007, pela Cláudia Costin [Secretária Municipal de Educação do Rio de Janeiro] junto com a Confederação Israelita do Brasil (Conib). Na época, convidaram um grupo de escritores composto por Luis Fernando Veríssimo, Rubem Fonseca, Marina Colasanti, entre outros, todos do primeiro time. Eu era o único “peixe pequeno”. Embora na minha casa tenha havido alguma polêmica por eu aceitar um convite para ir a Israel, visto como um Estado sionista que estava massacrando os palestinos, eu fui. Isso foi antes dos bombardeios a Gaza (ocorridos em dezembro de 2008). Eu não aceitaria esse convite hoje.

A viagem foi muito interessante. O que eu vi ali: o muro que corta, que ceifa mesmo a vida daquelas aldeias palestinas e o sistema de apartheid em que eles vivem. Quando voltei, eu me engajei numa frente de defesa do povo palestino e comecei a me interessar pelo Oriente Médio.

Em seguida (2008), fui convidada para o 2º Festival Internacional de Cinema Documentário em Teerã. Foi a Arlene Clemesha [professora de cultura árabe da USP] quem indicou o meu nome. O festival de Cinema durava só uma semana, mas a gente acabou se desgarrando, pegando ônibus, viajando pelo Irã inteiro por um mês. Fiquei absolutamente encantada com o país. Na volta, escrevi um livro chamado O Irã sob o Chador (Editora Globo, 2010), que conta um pouco dessa experiência, explicando e contextualizando alguns momentos históricos, tratando do Irã desde a Pérsia Antiga até os dias de hoje sob um olhar crítico. Não se pode falar sobre o Irã sem ter esse olhar crítico, pois é um país de muitas contradições.

É um dos lugares mais lindos que eu já vi, com um povo hospitaleiro, que adora brasileiro, futebol e são sedentos por novidades. No entanto, há algumas restrições. Por exemplo, a internet lá é muito controlada. Você não consegue entrar no Facebook. Quando você tenta acessar o site do seu banco para ver o seu extrato, em vez da página do banco, aparece um site iraniano todo escrito em farsi [língua iraniana]. Ou seja, o acesso é restrito até alguém te dar um canal para você burlar isso e poder ter contato com o mundo exterior.

Voltei há pouco, pois fui novamente convidada para ser júri no Festival Cine Verité – Tudo Verdade – um festival de documentários. O que eu vi foi um Irã cosmopolita, muito desenvolvido. Em Teerã existem galerias de arte com artistas contemporâneos de primeira qualidade, pessoas que estão questionando, inovando, e fiquei muito surpresa com isso. Eu tive a oportunidade de ver essa juventude produzindo. A gente conhece muito o cinema iraniano, estamos acostumados, é uma unanimidade internacional. Já as artes plásticas a gente não conhece muito, e existe uma vida pulsante muito interessante, sobretudo nas grandes cidades como Teerã, Yazd, Isfahan – que era a antiga capital imperial do Irã. Mas é um país de muitas contradições.

Concessões e proibições

O que mais simboliza essa contradição é o seguinte: quando você entra num ônibus, os homens vão à frente, as mulheres vão atrás. Se você tenta entrar pela frente parece que você está cometendo um enorme crime. As mulheres têm que andar com um véu, um lenço simples na cabeça. Nada que altere muito a nossa realidade, mas que nos recorda o tempo todo da nossa condição feminina. Se você tira, parece que está nua.

Por outro lado, existem aqueles táxis-condução (em que você chama o táxi e se ele vai por aquela direção você pode ir entrando), e ali todo mundo se espreme. Homens, mulheres... Vai todo mundo apertado ali e está tudo bem. Então é engraçado. No ônibus cada um tem que ir em um lugar, agora no táxi, um está quase no colo do outro e não tem problema nenhum.

Ao mesmo tempo, há ônibus e táxis dirigidos por mulheres. Elas estão em todos os setores da atividade, inclusive nas universidades – mais de 70% das estudantes são mulheres. Tudo isso é uma conquista da Revolução Islâmica. E, por uma questão dialética, essa mesma juventude que usufruiu dessas conquistas da Revolução (como a multiplicação imensa das escolas e das universidades, a erradicação do analfabetismo) questiona esse governo, questiona essa ingerência da xária [comportamento regido pela lei islâmica – vestuário contido, proibição à bebida alcoólica, valores morais etc.] em todos os aspectos de suas vidas. Você não pode sair na rua de mãos dadas nem trocando beijos, sem falar na questão muito séria de repressão ao homossexualismo.

Outro fato interessante é que mesmo com a destruição de cinemas durante a Revolução Islâmica, a produção de filmes iranianos aumenta a cada dia. Os próprios aiatolás viram que aquela destruição da arte poderia ser usada como instrumento de propaganda. A partir daí começaram os incentivos: várias escolas de cinema foram abertas, filmes passaram a receber financiamento do governo etc. No entanto, existe uma lista de assuntos que não podem ser tratados nos filmes financiados pelo governo – têm que passar por várias instâncias de aprovação, de censura.