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Arrumar gavetas, rememorar caminhos
Uma excelente forma de nos revisitar e exercitar a memória é arrumar gavetas e estantes. Além de se praticar o desapego – sempre há algo a ser dispensado para abrir espaço para o que está por vir -, é o momento de considerarmos a necessidade de
continuar guardando algumas coisas porque realmente têm um significado especial, ou por ainda não estarmos preparados para
a separação. Para estas tomadas de decisão acionamos lembranças agradáveis, tristes, por vezes incômodas, que definem se os
objetos ficam ou se serão descartados.
Não tenho fotos do meu primeiro aniversário, afinal uma máquina fotográfica não era algo comum em todas as casas. Encontro uma de bebê no colo da avó materna, outra provavelmente do aniversário de cinco anos (não tem data, não há identificação dos fotografados) com pai, mãe e outras pessoas que já se foram. Há um grande intervalo entre elas e todas são únicas.
Divirto-me com a foto de encerramento do pré-primário, sentada à frente de uma lousa com o nome da escola e de uma bandeira
do Brasil; uniforme xadrez miúdo. O sorriso revela que o primeiro dente de leite já havia sido jogado no telhado. As raras fotos de família, dos pais ainda jovens, antes de se casarem, ou depois do casamento, são em branco e preto, formato pequeno, com borda branca, como que picotada. Uma especial, das bodas de ouro dos avós maternos, merece um tempo maior de observação. Em branco e preto, grande, em excelente condição e protegida com uma capa de papel-cartão onde se lê o nome do fotógrafo e da empresa que oferecia o serviço de registro fotográfico. Dentro, um papel mais fino protege a foto e aumenta a solenidade do encontro.
Toda a família reunida para comemorar uma data tão importante – um lado do começo de uma história de muitos filhos e netos. Lá está minha mãe, a caçula de nove filhos, ainda solteira. Eu ainda nem fazia parte dos planos dela. Arrumando estantes, encontro diploma do primário, certificado do ginásio, do segundo grau, diploma universitário – um orgulho para a família. Muitos outros papeis, livros e objetos se acumulam em nossas vidas e os organizamos segundo nossa lógica pessoal, para o caso de necessitarmos recuperá-los para provar algo, para matar saudades, para decidir que cumpriram seu ciclo.
Comprovantes, diplomas, cartas, bilhetes, cartões de natal, de aniversário, fotos de amigos queridos que não encontramos mais,
livros, são evidências de nossos passos, de nosso traçado. Nos fazem sentir pertencentes ao tempo que não para, membros de
uma família, agentes da história. Revejo minha trajetória pessoal e profissional por meio deles e refaço os caminhos que me fizeram chegar ao Sesc Memórias.
Se individualmente temos esta necessidade, é compreensível que, cada vez mais, empresas e instituições se voltem para suas
origens em busca de recuperar suas memórias e os caminhos até então percorridos. Percebem a necessidade da manutenção dos registros do trabalho que desenvolveram desde os primórdios até os tempos atuais. Mais do que conhecê-los, entendem a importância de compartilhá-los. Como nenhuma instância existe isoladamente, a história de cada instituição reflete um momento da sociedade e por diferentes olhares pode ser estudada e apreendida a partir daquilo que foi produzido ao longo do tempo, dos objetivos de quem consulta seus acervos e das relações que podem ser estabelecidas entre os documentos e os propósitos das pesquisas.
Elizabeth Brasileiro, formada em sociologia e biblioteconomia, é coordenadora do Sesc Memórias.