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Aquele Homem
AQUELE HOMEM
Sou aquele homem que não voltou,
que saiu de casa ao amanhecer
e se perdeu para sempre.
Sou aquele homem da fotografia na parede
da casa fechada por dentro.
Sou aquele homem que inventou a tarde,
mas não viu anoitecer.
Sou aquele homem que se perdeu sem saber.
Aquele que não soube nunca,
sou aquele que não soube.
Sou aquele homem que desapareceu,
aquele que acreditou,
e ao se ausentar de si mesmo
sentiu o vazio absoluto de todas as coisas.
Sou aquele homem que se foi
e quando pensou em voltar
não tinha mais tempo,
era tarde demais.
Sou aquele homem que se desfez
depois de enlouquecer
e enlouquecido
tentou refazer o seu destino.
Sou aquele homem que engoliu
um rio
e se afogou adormecido.
Aquele que falou sozinho
diante do espelho
se vendo do avesso.
Sou aquele homem que falava com as pedras
palavras desesperadas
que saltavam da boca
como gafanhotos doentes.
Aquele homem que conversava com os santos
numa igreja sem portas
e que dizia silêncios
em sílabas de gesso.
Sou aquele homem
que enfiou um punhal no coração
como um poeta romântico do século 18.
Sou aquele homem quase lírico
que chamava os pássaros
para uma ceia de sementes.
Aquele homem que rezava
com os anjos expulsos do céu,
sem saber que eu estava
expulso de mim.
Sou aquele homem que amou 30 mulheres
e matou-se por amor 29 vezes.
Sou aquele homem que ao jogar xadrez
fugiu com a Rainha
para um castelo medieval.
Aquele que diante de Deus
pediu para ser destruído,
mas como castigo deixou-me viver mais.
Sou aquele homem que amou
mulheres de porcelana,
com sexo de porcelana,
boca de porcelana,
beijo de porcelana,
língua de porcelana.
Sou aquele homem de porcelana
que se quebra como uma xícara
que cai da mesa.
Sou aquele homem que saiu para dar uma volta
e esqueceu de regressar.
GERAÇÃO 60
Pertenço à Geração 60
de poetas de São Paulo,
mas graças a Deus
fugi para Portugal.
*
POENTE
O sol se põe
e faz
a noite
ser.
*
DESTINO
Meus sapatos
caminham
sobressaltos.
37 ANOS
Devia ter-me matado aos 37 anos.
De lá para cá pouca coisa aconteceu
que mereça sem lembrada.
Tirei algumas fotografias,
fiz algumas viagens imaginárias,
amei mulheres tristes
e comprei dois relógios antigos.
Fiz mal
em não ter-me matado aos 37 anos.
De lá para cá
as coisas se repetiram
com a frequência de sempre.
Tive dois punhais
e uma espada japonesa.
Devia ter-me matado aos 37 anos.
De lá para cá só aconteceram
ausências e distâncias,
como um vaso que se quebra,
uma jarra de reminiscências
que não sei recordar.
Escrevi alguns poemas
que depois esqueci em algum lugar.
Devia mesmo ter-me matado aos 37 anos,
ao abrir a janela
para a que seria minha última manhã.
Talvez um tiro no coração,
para não ferir o rosto.
Talvez uma xícara de veneno
que me fizesse adormecer.
Fiz muito mal a mim mesmo
em não matar-me aos 37 anos.
Não veria as coisas inúteis que vi
nem teria rezado tanto para salvar minha alma.
Dela, nada sei
e ela nada sabe de mim.
Também não teria inventado
tantas histórias para viver
esse tempo que afinal
passou sem que eu percebesse.
Não teria sangrado tanto
se tivesse me matado aos 37 anos.
Peço desculpas aos amigos
e aos três anjos que hoje vivem comigo
e comigo falam em silêncio
no meio das noites e dos temporais.
Devia ter-me matado aos 37 anos.
De lá para cá
foram anos que não contei,
só andei perdido de mim
como se não existisse mais.
Álvaro Alves de Faria é poeta, escritor e jornalista, autor de O Sermão do Viaduto – 30 anos depois (Traço, 1997), Terminal (RG, 1999), Domitila (Nova Alexandria, 2012), entre outros.