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Criação pós-moderna

A pós-modernidade ou o tempo do “fim das ideologias” impulsionou a criação de novas metodologias no campo do saber. A ciência clássica foi colocada em xeque por diversos pensadores, que propuseram novas possibilidades de análise dos fenômenos socioculturais. A professora e  pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Lucia Santaella e o professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) Osvaldo Pessoa Jr.analisam as mudanças desse paradigma científico, apoiados em correntes teóricas contemporâneas.

Há lugar para o novo depois das utopias?

Por Lucia Santaella

O novo está ligado às ideias de frescor, novidade, ineditismo e mesmo à ideia de algo que não existia e que, por acaso, inspiração,
esforço, intenção ou deliberação, passa a existir. De uns anos para cá, o novo tem estado aliado à palavra “inovação”. Esta, aliás, tornou-se moeda corrente e até palavra de ordem.

Embora possa ser aplicado a outros campos, o termo “inovação” está preferencialmente atado ao campo do empreendedorismo, envolvendo competências tecnológicas, mercadológicas e gerenciais. Especialista no assunto, o site Radar Inovação (Inventta.net) define a inovação como “exploração com sucesso de novas ideias”. Sucesso que, no caso das empresas, significa “aumento de faturamento, acesso a novos mercados, aumento das margens de lucro, entre outros benefícios”. Quando se fala em inovação de produto ou de processo, a inovação é tecnológica. Mas há outros tipos de inovação que se relacionam a “novos mercados, novos modelos de negócio, novos processos e métodos organizacionais. Ou, até mesmo, novas fontes de suprimentos”.

É interessante notar que a ascensão do conceito de “inovação” na área empresarial coincidiu com o crepúsculo do conceito de “novo” no campo da cultura e da arte. Não é novidade para ninguém o papel que a inovação desempenha para manter o capitalismo turbinado.

Por que o conceito de novo entrou em declínio na cultura e especialmente na arte não é algo tão evidente. Para tornar isso um
pouco mais compreensível este breve artigo está dedicado.

Deve ter sido no Renascimento que começaram a brotar os ideais do novo. Esse período distinguiu-se de retomadas anteriores da antiguidade clássica pela introdução de elementos inovadores que levaram, em particular na pintura, à constituição de um padrão
ou modelo estético dominante constituído pelo desenvolvimento da perspectiva monocular altamente realista, pelo tratamento do espaço da pintura como janela e pelo estudo da luz e da sombra. Esse padrão estético permaneceu durante séculos, com exceção da ousadia de alguns artistas, criadores de linguagem, tais como os espanhóis Velasquez e Goya e os ingleses Constable e Turner, por exemplo. Independentemente do período e lugar em que viveram ou do estilo em que costumam ser identificados, esses artistas foram marcando os séculos, da Renascença ao Modernismo, com invenções e rupturas de padrão que fizeram avançar as linguagens da arte e anteciparam tendências que só viriam se confirmar no Modernismo. Este teve início com os impressionistas para terminar em Piet Mondrian e Jackson Pollock, na primeira metade do século 20.

Impossível separar as propostas estéticas da sequência de “ismos” da arte moderna (cubismo, dadaísmo, surrealismo, construtivismo, suprematismo etc.) do caráter utópico que corria de modo mais ou menos subterrâneo, mais ou menos explícito por todos esses movimentos vanguardistas. As vanguardas eram alimentadas pela impetuosidade heroica do desejo de transformar
o mundo, marcá-lo com a insígnia do poder da arte. Por trás do desfile incessante de “ismos”, aninhava-se a busca por um mais além, busca impulsionada pela aposta no projeto emancipatório da modernidade que queria se ver cumprida. O caráter explícito dessa busca fica evidente na atração dos futuristas pela máquina e pelos ritmos de vida por ela determinados. Também nas tentativas do construtivismo russo de convergir a arte na vida através de novas formas imaginativas e na busca de um design rigoroso na Bauhaus para tornar a vivência cotidiana mais convidativa. Foi na escola de Bauhaus e na arquitetura modernista que o sonho da arte como condutora privilegiada da vida humana e social alcançou seu ápice, um sonho que recebeu um banho gélido na Segunda Guerra Mundial.

Além disso, o pós-guerra coincidiu com a emergência da indústria cultural que foi levando de roldão todas as crenças de que a arte teria algum poder de transformação sobre as determinações políticas e sociais. Foi também nos anos de 1960, no apogeu da cultura pop, de um lado, e das ironias da arte pop, de outro, que a inflação e a exacerbação crescentemente abrangentes da produção cultural começaram a se fazer sentir, intensificando-se nos anos de 1980, justamente quando se deu a explosão dos debates sobre o pós-moderno, pós-modernismo e pós-modernidade.

Hoje, pode-se perceber que esses debates estavam sinalizando o crescimento da complexidade cultural que foi aumentando na  medida mesma em que foram crescendo as mídias, em especial as mídias digitais e a circulação social das linguagens que por elas transitam. É justamente isso que gera a enorme concentração, densidade e abrangência da produção simbólica e intensifica o fluxo veloz de discursos, imagens e sons das mais diversas ordens e origens na configuração do tecido hipercomplexo da cultura nas sociedades atuais. À maior produção soma-se, com a globalização econômica, política e social, a abertura para a cultura do outro, próximo ou distante, levando à mistura e sincretismo das culturas.

Há poucas questões mais controversas do que a questão relativa ao pós-moderno e pós-modernidade. De todo modo, nos anos de
1980, tornou-se evidência incontestável aquilo que apenas se insinuava nos anos de 1960. Entendida inicialmente como um novo estilo na arquitetura e nas artes, a expressão “pós-moderno” também reverberou na dança, música, fotografia, cinema até tomar conta de quase todas as práticas e teorias culturais, alcançando a política e até mesmo as ciências, um verdadeiro cataclismo do qual nem mesmo a matemática se safou.

Em meio a muitas controvérsias, há um ponto para onde a franja diversificada de interpretações converge: a constatação de que, no exaustivo uso do pastiche, das citações, da revisitação muitas vezes paródica dos estilos do passado, num vai e vem espacial e temporal até mesmo atordoante, as práticas culturais e artísticas pós-modernas estão na verdade levando a cabo o questionamento da concepção teleológica do tempo e da história que norteou o projeto da modernidade desde o seu apogeu iluminista. Essa é uma das razões por que a pós-modernidade coincide com o fim das utopias e das altissonantes narrativas científicas legitimadoras.

Isso significa que não há mais lugar para o novo nas culturas contemporâneas? Existe sim, mas ele não é mais entendido do mesmo
modo que a modernidade o concebeu, como criação de um indivíduo singular, abençoado pelo dom da genialidade. Já em 1985,  Vilém Flusser [1920-1991, filósofo tcheco, naturalizado brasileiro] nos oferecia uma concepção do novo que prenunciava as  condições dos dias atuais. Segundo esse autor, “estamos atualmente no limiar de criatividade nova”. Esta não implica mais criar com intuição ou inspiração. O processo criativo que emerge envolve a telemática (hoje, podemos dizer, sociedade em rede), que permite sintetizar acasos pouco prováveis com acasos ainda menos prováveis. Tal técnica recorre a “eus” artificiais e outros “eus” que processam dados e trocam informações com tamanha rapidez que aumenta a probabilidade de emergirem acasos pouco prováveis. Atualmente a massa de informações disponíveis adquiriu dimensões astronômicas que não cabem mais em memórias individuais, por mais geniais que sejam. Abre-se, assim, um horizonte de criações coletivas, participativas, colaborativas, um coletivo híbrido: a inteligência cada vez mais sofisticada que está nas máquinas colabora e incrementa a inteligência que está no cérebro humano, um cérebro transindividual que pulsa e palpita no mundo físico e no ciberespaço, tudo ao mesmo tempo.

Lucia Santaella é professora e pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e livre docente em estudos de comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

De que maneira pensar o novo?

Por Osvaldo Pessoa Jr.

O mundo se transforma em ritmo cada vez mais acelerado, em função do progresso tecnológico e do aumento da população  humana na Terra. Não sabemos ao certo aonde isso levará, se devemos ser otimistas ou pessimistas com relação ao futuro que nossos bisnetos viverão.

Como entender esse processo de transformação, e como tentar influenciá-lo? Há diferentes perspectivas de análise, diferentes  correntes teóricas ou “paradigmas”, que podem nortear nossa avaliação. Uma divisão em três grandes tradições contemporâneas de pensamento foi feita pelo filósofo e antropólogo tcheco-britânico Ernest Gellner, no seu livro Pós-modernismo, Razão e Religião (1992). Em primeiro lugar, o fundamentalismo associado às grandes religiões, que acredita em uma verdade única, embasada em textos sagrados e na autoridade religiosa. Em segundo lugar, o que pode ser chamado de racionalismo crítico (ou objetivismo, ou modernismo), herdeiro dos ideais iluministas e positivistas de valorização dos métodos e resultados da ciência, que mantém a noção de verdade como correspondência entre a teoria e os fatos, apesar de reconhecer que não há certeza de que a verdade foi atingida (apesar de se acreditar que ela exista). E, em terceiro lugar, as diferentes variedades do relativismo, que abandonam a ideia de  uma verdade única, considerando que o conhecimento é construído a partir de um contexto cultural e que, portanto, as verdades são relativas a cada cultura em particular.

Uma articulação bastante influente do relativismo é conhecida como pós-modernismo. O termo foi introduzido em 1975 pelo crítico
de arte estadunidense Charles Jencks para designar certas correntes da arte contemporânea. Fora do contexto específico da arte, porém, o termo foi generalizado pelo filósofo francês Jean-François Lyotard, em seu livro A condição pós-moderna (1979). Uma maneira de caracterizar o pós-modernismo é dizer que ele é indefinível, pois ele recusa o uso de “metanarrativas” abrangentes. Apesar da dificuldade de definir o pós-modernismo, podemos delinear algumas teses centrais do movimento, seguindo a análise de Gellner (ele próprio um racionalista crítico):

1) Hermenêutica. Assim como um texto, a realidade envolve significados, e tais significados estão aí para serem interpretados
ou desconstruídos, em busca de contradições internas. O mundo seria a totalidade dos significados.

2) Relativismo. Não há verdade única e objetiva: a verdade é esquiva, polimórfica, subjetiva. A noção de “fatos objetivos” do positivismo é insustentável, pois fatos são inseparáveis do observador e da cultura que fornece suas categorias interpretativas.

3) Crítica política. A atribuição de significado a um objeto é sempre acompanhada de um valor, estando assim associada ao exercício de poder, de dominação. A desconstrução de significados é uma arma para a libertação. O modernismo estaria associado ao colonialismo e ao imperialismo; o pós-modernismo ao respeito e igualdade entre culturas. A insistência em uma realidade única e objetiva é um instrumento de dominação.

4) Subjetividade trêmula. Além da perda da objetividade, o próprio sujeito não é mais garantia da certeza (como no Cogito de Descartes ou nas sensações, para os empiristas): a subjetividade também é gerada por significados contraditórios.

5) Estilo polifônico. O estilo de texto é antes dialógico do que lógico. Busca-se não a definição clara dos conceitos, mas a exploração
da riqueza dos significados (polissemia). A autoria dos textos tende a ser plural, como na arte da colagem, com citações de diversos autores ou a partir do ponto de vista de diferentes culturas (heteroglossia).

Feita essa breve caracterização do pós-modernismo, buscarei agora explorar uma interessante consequência do relativismo. Trata-se de uma versão modificada do argumento do “peritropê” (virada de mesa), usado por Sócrates no Teeteto, contra o relativismo do sofista Protágoras.

A tese do relativismo afirma que não há uma verdade única a respeito de qualquer questão sobre a natureza, pois a verdade é relativa a um paradigma, a um corpo teórico, a uma cultura. Assim, diferentes teorias terão diferentes verdades a respeito de uma
determinada questão, e elas serão igualmente válidas.

Notamos que a tese do relativismo é “metateórica”, pois ela faz uma afirmação a respeito da relação entre uma teoria (digamos
uma teoria científica) e a natureza. Ela é uma “teoria sobre teorias”. Ela afirma que uma determinada teoria nunca é a detentora única da verdade, pois outra teoria igualmente válida poderia negar essa verdade, e em última análise não haveria critérios objetivos para determinar qual das duas teorias é a melhor.

Pois bem: será que o relativismo também se estende para a metateoria? A resposta natural de uma concepção relativista seria dizer que sim, pois, se as verdades da ciência são relativas, as verdades da filosofia também o são. Qual a consequência disso?

A consequência é que outras concepções metateóricas são igualmente válidas ao relativismo. E quais seriam essas concepções metateóricas? Já mencionamos duas delas: o fundamentalismo de base religiosa e o racionalismo crítico. Ora, mas se o  racionalismo crítico é válido, então as teorias científicas fazem afirmações verdadeiras a respeito do mundo, e elas podem ser consideradas aproximadamente verdadeiras em um sentido forte, no sentido de que há uma correspondência entre os enunciados da teoria e os fatos do mundo. Ou seja, a verdade sobre a natureza não muda com o tempo: o que muda é a nossa opinião a respeito da verdade.

E agora? Vamos recapitular. Admitimos o relativismo no nível metateórico, pois esta é a posição mais coerente com o espírito do
relativismo. Poderíamos ter recusado a extensão do relativismo para a metateoria, o que evitaria as contradições apontadas por
Sócrates, mas contradições não assustam as visões pós-modernistas, pelo contrário, elas são bem-vindas (como transparece em seu estilo polifônico). Mas contradições não podem ser simplesmente ignoradas, elas geram consequências, se não em nível lógico, pelo menos em nível pragmático. E que consequências são essas?

A consequência é a necessidade de incorporação das visões racionalistas críticas (e por que não, também, as fundamentalistas)
nos debates a respeito das mutações do mundo. Não basta defender teoricamente o pluralismo e ignorá-lo na prática. O respeito ao “outro” envolve trazê-lo para o debate, mesmo que isso envolva riscos, mesmo que posições inaceitáveis tenham que ser escutadas,
mesmo que ele seja nosso inimigo.

Só assim pode-se ser um pós-modernista coerente. O relativismo pode ser questionável em nível teórico, mas em nível metateórico
ele se chama pluralismo, palavra que rima com democracia.

Enfim, de que maneira pensar o novo? Não sei ao certo, mas o primeiro passo é prestar atenção ao que os especialistas de diferentes correntes estão dizendo. Uma boa introdução ao assunto é o artigo “Humano, pós-humano e transumano”, de Laymert Garcia dos Santos (em Mutações: Ensaios sobre as Novas Configurações do Mundo, organizado por Adauto Novaes, Ed. Sesc/Agir), onde concepções diversas são apresentadas.

O cientista da computação estadunidense Ray Kurzweil, constatando que o ritmo de avanço tecnológico está cada vez mais rápido,
prevê para meados do século 21 a ocorrência da “singularidade”, quando a integração homem-máquina transformará a natureza
humana (A Era das Máquinas Espirituais, Ed. Aleph, 2007). Críticas a esse cenário são feitas, por exemplo, pelo sociólogo português
Hermínio Martins (Experimentum Humanum, Ed. Fino Traço, 2012). Eles representam duas posições éticas distintas a respeito do
futuro tecnológico da humanidade.

No Brasil, o otimismo com relação à aproximação da singularidade é representado pelo Instituto de Ética, Racionalidade e Futuro
da Humanidade (IERFH). Na minha opinião, um dos pontos mais criticáveis de sua posição é o desejo de prolongar a vida humana
para centenas de anos. Claramente, o progresso tecnológico é guiado pelos desejos humanos, mas certos desejos, importantes em
nossa história evolutiva, tornam-se despropositados com o avanço da civilização.

Paralelamente aos avanços tecnológicos nas áreas biomédicas e informacionais, creio que uma grande revolução teórica está em
gestação, nos estudos científicos de como a mente emerge do cérebro. Essa revolução certamente transformará a maneira como
concebemos a nossa individualidade, e isso poderá acabar com nosso desejo infantil de ter uma vida “eterna”. Em suma, o futuro
depende não só das possibilidades tecnológicas, mas dos nossos desejos, que poderão ser transformados.

Osvaldo Pessoa Jr. é professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e pesquisador da Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência.