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Genuinamente brasileira
Expoente da pintura e responsável por sintetizar visualmente o modernismo brasileiro, Tarsila do Amaral tem sua trajetória revalorizada e relembrada em decorrência dos 40 anos de sua morte, completados em 17 de janeiro deste ano.
Mas, ainda em vida, a artista já havia estabelecido a concretude de uma história pessoal e profissional digna de estudos e homenagens. Nasceu em setembro de 1886 na cidade de Capivari, interior do estado de São Paulo. Sua origem familiar remete à sociedade do final do século 19, patriarcal e baseada nas estruturas e poderes do latifúndio. Embora estivesse em transição e aberta a um novo horizonte, foi nesse contexto que a jovem Tarsila se desenvolveu como pintora.
No livro Tarsila, Sua Obra e Seu Tempo (4ª edição, 2010, Editora 34/Edusp), a autora Aracy Amaral comenta o denominado caráter novo da época: “A abertura referida pelo novo está patente no tipo de educação dada aos filhos, na curiosidade insatisfeita de Tarsila pelo desconhecido. E sempre nesses dois polos – o tradicionalista e o progressista – se desenvolveria a personalidade da futura pintora, plasmando ao mesmo tempo essas características, que são também as de sua arte”.
A menina Tarsila esboça os primeiros traços copiando os santinhos da igreja. Segundo declaração registrada no livro Tarsila, a Modernista (1997, Editora Senac), de Nádia Gotlib, a lembrança mais forte da pintora foi do dia em que desenhou infantilmente uma cesta de flores e uma galinha rodeada por um bando de pintinhos: “A galinha com os pintinhos saíram da minha alma, do carinho com que observava a criação ao redor da casa, na fazenda onde cresci como um animalzinho livre ao lado dos meus quarenta gatos que me faziam festa”.
De desenhos ingênuos e cores em amadurecimento, mais tarde a mulher Tarsila, entre outras personalidades femininas do fim do século 19, contribuiu para a reconfiguração de um cenário em modificação quanto à posição da mulher na sociedade. “Ela colaborou com movimento de emancipação das mulheres, mas é difícil saber se era uma atitude inconsciente ou não. Mas é claro que sua personalidade favorecia uma atuação firme, que parecia nascer mais de sua índole de artista do que de projeto político ideologicamente elaborado”, afirma Nádia.
O viés marcadamente nacional de sua obra, vislumbrado pelas cores e formas que utilizava, flerta com sua vivência internacional, que começou com os estudos no colégio Sacré-Coeur, em Barcelona, em 1902. De acordo com o livro Tarsila, a Modernista, um grande acontecimento estava por vir. Em 1904 acontece a primeira viagem à França, que reservou, ao mesmo tempo, ansiedade e decepção. “Alguns sonhos, construídos na lonjura do Brasil distante, através de uma civilização faustosa, se desmantelam diante da visão real desse espaço sem palácios e nem príncipes encantados”, escreve Nádia.
Nesse período de adolescência, em 1906, seguindo os padrões conservadores e por vontade do pai, José Estanislau do Amaral, casa-se com um primo de sua mãe, André Teixeira Pinto. Mesmo com o nascimento de sua única filha, Dulce, o casamento dura pouco, porém o divórcio ocorre apenas em 1925, quase 20 anos depois da separação.
Tarsila tinha, então, 38 anos de idade. Finalmente livre da primeira experiência, oficializa o relacionamento com o escritor Oswald de Andrade (1890-1954) em 1926.
Caminhos modernistas
Nos anos de 1920, Tarsila retorna a Paris, onde cursa a Académie Julian e o ateliê de Émile Renard. Já em 1922, ano da emblemática semana Modernista em São Paulo, expõe no Salon Officiel des Artistes Français. A amiga Anita Malfatti (1889-1964) compartilhava com Tarsila as polêmicas acerca do modernismo e do passadismo, exemplificados por uma série de cinco artigos escritos por Mário de Andrade (1893-1945) e publicados no Jornal do Comércio em 1921, criticando o movimento literário parnasiano.
Logo que retornou do velho continente, em junho de 1922, Tarsila foi apresentada por Anita aos rapazes que agitavam a cena cultural paulistana: Oswald de Andrade, Menotti del Picchia (1892-1988) e Mário de Andrade. Do encontro foi formado o Grupo dos Cinco, representado em um desenho homônimo feito por Anita. “Geralmente, as artistas modernistas mais notabilizadas possuem uma relação de parceria com homens – artistas, críticos ou mecenas – de grande proeminência nos pequenos círculos modernistas”, explica a professora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP) Ana Paula Cavalcanti Simioni. “É exatamente o caso de Tarsila.
O período considerado o mais criativo de sua produção é aquele em que era companheira de Oswald de Andrade.” Conquistas individuais Em dezembro, a pintora embarca de volta à Europa e começa a se corresponder com Oswald. O casal troca cartas apaixonadas até que ele vai encontrá-la em Paris em 1923. Neste ano, os dois travaram contato com expoentes da intelectualidade presente na Cidade Luz. Aracy Amaral descreve a fase em Tarsila, Sua Obra e Seu tempo: “Um bom signo, sem dúvida, que os guiaria no decorrer de todo esse ano em Paris, fundamental para a carreira de Tarsila”.
Entre viagens internacionais e períodos no Brasil, a pintora realiza a primeira exposição individual em Paris, em 1926, na qual apresenta 17 telas. A exposição encontra repercussão, com resenhas em revistas de arte e boas críticas na imprensa local.
Em 1929, realiza as primeiras exposições individuais no Brasil, no Palace Hotel, no Rio de Janeiro, e no Prédio Glória, em São Paulo. E, em 1931, realiza uma exposição no Museu de Arte Moderna de Moscou. Ainda nos anos de 1930 permanece por um tempo em
Paris, e volta ao Brasil durante a Revolução Constitucionalista, sendo presa por um mês. Posta em liberdade, inicia sua fase de preocupação social, retratada pela tela Operários (1933).
A partir de 1950, concretiza a fase neopau-brasil, retomando temas caipiras e as cores marcadamente suavizadas. Em seguida, é realizada uma importante retrospectiva de sua carreira no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) e a participação na I Bienal da cidade.
Ana Paula Simioni ressalta que Tarsila foi “uma artista que produziu muitíssimo, com temáticas, estilos e repertórios variados, os quais são pouco estudados”, e faz um adendo: “Infelizmente limita-se o interesse da produção de Tarsila muito enfaticamente ao que ela fez durante a década de 1920, mas é preciso notar que ela continuou a produzir até sua morte, na década de 1970”.
Um acontecimento pessoal importante na vida da pintora seriam os sucessivos laços afetivos. “Contrariando costumes austeros da época, como o do casamento único, sempre definitivo, ainda que movido à infelicidade”, afirma Nádia. Em 1930, Tarsila se separa de Andrade em caráter definitivo; já em 1938 vive “entre a cidade e a fazenda, com o crítico de arte Luís Martins (1910-1981)”,
em relacionamento que durou 18 anos. No aspecto profissional, “a inquietação, que a levou para a Europa várias vezes e que lhe abriu as portas da convivência com artistas mais avançados do período, como Blaise Cendrars (1887-1961) e Pablo Picasso (1881-1973), o que não é pouco”, acrescenta.
Uma boa definição da pintora é dada pelos poemas redigidos em sua homenagem, como o escrito por Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Brasil / Tarsila: “Tarsila / amora amorável d’amaral / prazer dos olhos meus onde te encontres / azul e rosa e verde para sempre”.
Inspiração modernista
Tarsila e Oswald viveram uma fase de intensa produção artística enquanto estiveram casados
Durante o período em que viveram juntos, na década de 1920, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade tiveram também uma intensa colaboração profissional, tanto que a dupla recebeu o apelido de Tarsiwald. Algumas obras da pintora são emblemáticas da primeira fase do modernismo brasileiro, representada por dois manifestos escritos por Oswald.
O primeiro deles é o de Poesia Pau-Brasil, cujas bases estão lançadas no livro de poemas Pau-Brasil, de 1925. Tanto a capa quanto as ilustrações são feitas por Tarsila. Nessa fase, o trabalho de Tarsila representa a realidade nacional em dimensões rurais e urbanas, apoiada nas Vanguardas Europeias, especialmente o Cubismo. A tela inaugural, um pouco anterior ao período pau-brasil da artista, é A Negra, de 1923, hoje parte do acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP).
O segundo, o Manifesto Antropófago, de maio de 1928, foi sintetizado na tela Abaporu, do mesmo ano. O quadro, um presente de aniversário para Oswald, teve seu nome tirado do dicionário tupi-guarani Montoya e significa “O homem que come”.
Por conta da movimentação do mercado de obras de arte, Abaporu não está em terras brasileiras. Comprado em 1995, pelo colecionador argentino Eduardo Costantini, está exposto ao lado de produções de artistas como Diego Rivera (1886-1957) e Frida Kahlo (1907-1954) no Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba). A pesquisadora Nádia Gotlib confessa que se indignou quando soube da notícia, “mas, ao ver a tela ao lado de um autorretrato de Frida Kahlo, permitindo uma leitura comparada de duas mulheres fortes nas artes plásticas, mudei de ideia”.
Infância Revisitada
Espetáculo reserva às crianças de todas as idades um encontro com as memórias da pintora A fazenda na qual viveu a jovem Tarsila do Amaral no interior de São Paulo é o cenário do espetáculo Vila Tarsila, em cartaz no Sesc Consolação até o dia 30 de março.
Segundo a técnica da área de Teatro do Sesc Consolação, Adriana Cruz, a criança e o adolescente são seres em formação e possuem uma realidade existencial concreta e peculiar. Essa definição norteia a seleção da programação do Sesc para essa faixa etária: “Sempre procuramos oferecer a esse público projetos que propiciem experiências, conhecimento, informação e encantamento”, afirma. “Além da identificação primária da obra de Tarsila do Amaral com o universo lúdico e colorido da infância, o espetáculo também oferece uma intersecção entre linguagens artísticas muito caras ao Sesc, promovendo um diálogo entre a pintura, a dança, o teatro e a música.”
A diretora Miriam Druwe faz questão de compartilhar o bom resultado e a calorosa recepção do público com a equipe da Cia. Druw, que produziu a peça. “Foi uma parceria com a diretora Cristiane Paoli Quito e com os técnicos que desenvolveram aspectos importantes, como o vídeo cenário feito por Felipe Sztutman e o figurino por Marco Lima”, explica.
“O trabalho em conjunto possibilitou um resgate de elementos das pinturas para os figurinos, somado ao vídeo cenário, que é quase como uma animação, pois os elementos cênicos interagem com a encenação, trazendo o volume das obras da Tarsila.”