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Extensão dos palcos
O Mirada Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas vai apresentar, de 2 a 11 de setembro, na unidade Santos do Sesc São Paulo, um panorama do atual teatro produzido na América Latina e na Península Ibérica. O evento vai possibilitar, de forma inédita, o encontro entre diretores, dramaturgos, companhias, artistas e pensadores do teatro de 12 países da região. Essa proposta de oferta e intercâmbio cultural chama a atenção de especialistas, como a professora da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo Silvana Garcia e o diretor do Teatro Julio Mario Santo Domingo, de Bogotá, Ramiro Osorio Fonseca. Ambos participam do Mirada e analisam em primeira mão a sua importância.
De olho no teatro ibero-americano
por Silvana Garcia
De meados do século 20 para cá, os festivais de teatro têm sido importantes centros de irradiação do pensamento e da produção das artes cênicas em diversos circuitos internacionais, incluído o eixo ibero-americano. O Brasil sempre esteve presente nesse circuito, até mesmo com uma presença expressiva, apesar das dificuldades de ordem econômica e das barreiras linguísticas que, acreditava-se, impediam a proximidade. Hoje, felizmente, já superamos nosso acanhamento diante das outras línguas – estamos particularmente orgulhosos do progresso de nosso portuñol –, o trânsito de espetáculos por aí afora, se ainda não é o ideal, tem sido suficiente para manter o prestígio de nosso teatro como um bom produto de exportação, e, para o júbilo de nós teatreiros e do público em geral, temos conseguido assistir com mais frequência a espetáculos que vêm do exterior.
O Sesc tem sido, incontestavelmente, um veículo importante para a consolidação desse intercâmbio em escala ?internacional. Desde que sua rede de unidades se expandiu e conquistou unanimidade nas avaliações de excelência, inúmeros espetáculos estrangeiros têm sido convidados e acolhidos regularmente em suas sedes, e graças a isso podemos sentir-nos menos alheados do resto do mundo, também culturalmente falando.
Essa política de recepção ampliou-se nos últimos tempos com a associação do Sesc a alguns dos mais representativos festivais internacionais realizados no país.
Além do mais, a instituição tem garantido a presença de seus agentes culturais no circuito internacional de festivais de teatro, mantendo atualizado um valioso portfólio sobre o principal da produção das artes cênicas em âmbito global. Nada mais natural que agora o Sesc abra espaço para um festival em sua própria casa. A infraestrutura de suas sedes e a sofisticação dos equipamentos disponíveis são garantias de que há condições de desenvolver projetos artístico-culturais de grande envergadura e receber ?encenações tecnicamente complexas. Some-se a isso a evidência de que as produções do Sesc são uma pós-graduação em matéria de curadoria e realização.
Sabemos que quando pretende realizar um festival não será apenas mais um, mas o resultado de um projeto bem planejado, com um repertório escolhido a dedo entre o que há de mais representativo, buscando dar conta dos limites e da variedade, em suma, uma generosa oferta de bons produtos, expandidos no tempo e no espaço, para serem desfrutados com prazer e calma.
O teatro entre a serra e o mar
O conceito do Mirada Festival Ibero-americano de Artes Cênicas pode ser traduzido pela ideia de um olhar lançado sobre o teatro produzido por países que historicamente compartilham suas tradições culturais. Desde a criação do Festival Cadiz, em 1986, um dos primeiros festivais europeus a delimitar o âmbito ibero-americano e abrir-se para a América Latina, consolidou-se esse espaço de intercâmbio que reconhece uma proximidade artística entre os países que integram o bloco, celebrando ao mesmo tempo a diversidade e a diferença como fundamentais para a convivência criativa.
O Mirada descreve dois movimentos: primeiro, um olhar panorâmico que visa às criações recentes dos países integrantes da mostra: é um olhar que ganha extensão épica, de longo alcance geográfico, constituindo um mapa abrangente da produção. Em um segundo movimento, o olhar ganha precisão de foco, detendo-se sobre a produção de um só país, a Argentina, convidada especial do evento. Mapeia-se então esse território em grande detalhe. Nesse mesmo movimento insere-se o Brasil, também representado por um bom número de espetáculos – uma pequena fatia, é certo, se considerada a oferta, mas ?suficiente para permitir o confronto. Aquilatamos, assim, na extensão e no pequeno, as semelhanças e diferenças.
Na semelhança nos solidarizamos, encontramos as proximidades que permitem reconhecer heranças e raízes comuns, entre elas, com destaque, a mesma disposição para os procedimentos coletivos de criação do espetáculo. Na diferença afirmamos nossas identidades, ou pelo menos aquilo que nos distingue e nos particulariza, mesmo que de um modo plural, não unívoco. Ressaltam-se, então, as peculiaridades que orientam, dão cor e ritmo à teatralidade de cada país.
Esses olhares fazem-se acompanhar de um pensar reflexivo. No miolo do festival, acontecem as mesas de discussão – significativamente chamadas “Diálogo entre fronteiras” – que tratam de questões relevantes para o mapeamento e a apropriação do fazer cênico no âmbito da produção ibero-americana. É mais um horizonte que se descortina: a reflexão crítica, o intercâmbio das práticas e o confronto de ideias são oxigênio para a produção. Firma-se o compromisso de não indispor aquilo que é complementar, o fazer e o pensar. Celebra-se assim o instante em que o poeta, no mirante de onde esquadrinha a paisagem, faz-se também filósofo.
Deslocando a imagem, esse mirante pode ser também a cesta da gávea, disposta no alto de um mastro, de onde os marinheiros gritam o “terra à vista”, pois, à metáfora do olhar, os curadores do Festival acrescentaram a simbologia do porto. A escolha da cidade de Santos para sede do festival cria uma rota de navegação do imaginário, ligando diversos portos, de Cadiz a Buenos Aires, o mar e o rio. Unem-se os continentes e as cidades, e todos os visitantes vêm das águas, nesse mapa da fantasia.
Se quem nos visita agora não são mais os desbravadores do passado, os que estão chegando são ainda assim viajantes destemidos. Chegam de todas as partes, arriscando expor-se diante de nossos olhares estrangeiros, movidos pelo desejo de, quem sabe, pela magia do teatro, poder conquistar-nos a alma. De nossa parte, é só deixar-nos arrebatar.
Os que chegam e os que aqui estão
São doze países, com trinta e um espetáculos distribuídos ao longo de dez dias de programação. O primeiro ?destaque recai sobre a presença de alguns dos mais ?importantes grupos estáveis da América Latina, como o Yuyachkani, que celebra agora seus 40 anos de existência e nos apresenta suas impressionantes perfomance--instalações, Hecho em Peru, Vitrinas para um Museo de la Memoria.
A seu lado, o Mapa Teatro, da Colômbia, e o Grupo Malayerba, do Equador, que nos traz uma vez mais a extraordinária dramaturgia de Arístides Vargas. Esses consagrados veteranos abrem caminho para a geração mais recente, que está dando continuidade à tradição latino-americana de coletivos, como o Teatro de Ciertos Habitantes, do México, que inaugura a mostra com seu teatro-ópera, o Teatro de los Andes, da Bolívia, e a Cia. Complot, com seu irreverente e mordaz Mi Muñequita, dramaturgia e direção de um dos expoentes da nova safra de autores-encenadores uruguaios, Gabriel Calderón.
Da Argentina, país no centro dessa mirada, virão sete espetáculos, com destaque para a presença do encenador e dramaturgo Daniel Veronese, criador do grupo El Periférico de Objetos, que agora, em voo solo, traz suas versões para obras de Ibsen e Tchékhov. Na praia brasileira, também a presença forte do novo e da tradição, do texto nacional e de autores estrangeiros, releituras e inéditos, com representantes vindos de diversas partes, de norte a sul do país: o Centro de Pesquisas Teatrais do Sesc, sob a direção de Antunes Filho, apresenta sua última criação, Policarpo Quaresma, que convive com o instigante In on it, dirigido pelo carioca Kike Diaz; o Imbuaça, do Sergipe, disputa a rua com o Oi nóis aqui traveiz, do Rio Grande do Sul; o veterano Pia Fraus confraterniza com a jovem Brava Companhia.
Detalhe: dos treze espetáculos brasileiros, seis acontecerão ao ar livre, celebrando a nova e boa fase do teatro de rua entre nós. Por fim, cumprindo a travessia mais extensa, pelos mares atlânticos, chegam três grupos da península ibérica: O Bando, de Portugal, o Xarxa Teatre e o Animalario, da Espanha. São cores e sonoridades de todos os tipos, para encher nossos olhos e ouvidos. Que essa mirada de longo alcance persista por muito tempo em nossas retinas.
Silvana Garcia é professora da Escola de Arte ?Dramática da Universidade de São Paulo (EAD-USP), ?pesquisadora e diretora de teatro
“A escolha da cidade de Santos para sede do festival cria uma rota de navegação do imaginário, ligando diversos portos, de Cadiz a Buenos Aires, o mar e o rio. Unem-se os continentes e as cidades, e todos os visitantes vêm das águas, nesse mapa da fantasia”
SANTOS, CAPITAL DAS ARTES CÊNICAS IBERO-AMERICANAS
por Ramiro Osorio Fonseca
Cultura é?o fator que une e dá?sentido para a comunidade de nações ibero-americanas. Embora isso seja óbvio, há uma contradição entre a extraordinária diversidade e riqueza da nossa produção cultural e a presença reduzida de produções artísticas nos 22 países que compõem essa comunidade.
Contribui para essa falta, especialmente notável em países ibero-americanos, uma política de Estado que incentive o desenvolvimento das indústrias culturais, que reconheça a sua dupla função como transmissores de valores e como instrumentos especialmente eficazes na criação de riqueza, gerando?emprego e coesão social.
O desafio das comunidades artísticas e dos governos dos países ibero-americanos é?conseguir uma série de acordos que permitam a livre circulação de produtos culturais e a mobilidade dos artistas.
No que diz respeito às artes cênicas, apesar do sucesso de programas como Iberescena e muitas outras iniciativas bilaterais e regionais, tais como residências, co-produções etc., a circulação de artistas e de produções teatrais, dança, ópera e outros gêneros?continua tendo um pequeno impacto.
Para abordar seriamente os problemas da circulação dos artistas e dos produtos culturais, é necessário que nossos governos tenham a convicção de que a cultura é uma peça-chave para o desenvolvimento sustentável e de que sua função é transversal nas políticas públicas; que a sociedade como um todo valorize o setor cultural como um dos mais dinâmicos e transformadores, que deve ser apoiado tanto política como economicamente; e que os artistas, técnicos e profissionais das indústrias culturais cumpram plenamente com suas obrigações de formação, excelência, inovação?e competitividade.
Para poder avançar, é?necessário trabalhar em um conjunto de regras no desenvolvimento da Carta Cultural Ibero-Americana, padronizar os encargos ?fiscais e trâmites burocráticos em favor da venda de produtos culturais e apresentação em todos os países ibero--americanos de nossos artistas.
Nesse processo, os festivais são excelentes locais para consolidar mecanismos de cooperação permanente.?Representam excelentes oportunidades para conhecer as diferentes tendências e gêneros da arte contemporânea, significam oportunidades excepcionais para a formação, atualização e aperfeiçoamento dos artistas, assim como para a criação de novos públicos.?Eles tornam possível o diálogo entre as expressões artísticas mais notáveis de outros lugares com a produção de artistas do país que sedia o evento.
Nas últimas três décadas foram criadas iniciativas que impulsionam a construção de um espaço ibero-americano das artes cênicas, como o Centro Latino-Americano de Criação e Pesquisa Teatral, CELCIT, o Festival Ibero-?-Americano de Teatro de Cádiz e o Festival Ibero-Americano de Teatro de Bogotá.
Para aqueles que trabalham para a construção de uma comunidade cultural ibero-americana, era necessário, há?muitos anos, que o Brasil, o ponto de referência para a grande diversidade étnica e cultural de nossa região, e uma das grandes potências da criação artística, se comprometesse decididamente?com a integração ibero-americana. Portanto, é de extrema importância a criação do Festival Mirada, na cidade de Santos, no estado de São Paulo.
O festival representa um firme compromisso nos repertórios ibero-americanos, por mostrar ao público, no Brasil, as experiências mais importantes na criação cênica ibero-americana dos últimos 30 anos, assim como as novas tendências. Em um curto tempo, sugerem-se propostas de coprodução, o intercâmbio de equipes de criação e técnicas, numa perspectiva de continuidade e estabilidade.
Além da programação artística, caracterizada pela excelência, o festival tem um extenso programa de atividades paralelas, em que participam relevantes personalidades da dramaturgia, da crítica, editores de publicações especializadas, programadores de teatro e diretores de festivais.
O Sesc São Paulo, instituição exemplar pelos seus programas de desenvolvimento humano, com especial ênfase na cultura, é o principal patrocinador do Festival Mirada, assegurando a profundidade e a complexidade dessa iniciativa, a continuidade e o longo prazo de um processo que requer apostas de risco, capacidade de gestão e negociação nacional e regional, a liderança de importantes recursos tanto humanos quanto financeiros, assim como uma sólida experiência na produção e promoção cultural.
Então, eu tenho certeza de que o Festival Mirada converterá?Santos na capital ibero-americana das artes cênicas.?
Ramiro Osorio Fonseca é diretor do Teatro Julio Mario Santo Domingo, de Bogotá
“O Festival representa um firme compromisso nos repertórios ibero-americanos, por mostrar ao público, no Brasil, as experiências mais importantes na criação cênica da região”