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Diálogos da expressão
Tecida sobre os processos políticos e culturais, a arte contemporânea ganha espaço além dos museus e galerias
“No plano humano aceito todas as concessões, menos na arte”, alertou certa vez o austríaco Gustav Mahler (1860-1911), conceituado compositor da história da música clássica conhecido por seu rigor técnico. Se Mahler estivesse vivo, provavelmente, torceria o nariz para muitas produções artísticas atuais.
O fato é que, com o passar dos anos, o campo da arte sofreu alterações, ramificou-se e nem todos têm o repertório para decifrá-lo. Entendê-lo e apreciá-lo requer sensibilidade e, em alguns casos, um olhar alfabetizado, porque o contemporâneo hoje poderá não o ser daqui a 20 anos, perdendo sua referência artística rapidamente.
“A arte se dilatou porque o ser humano sempre teve a necessidade de se expressar, independentemente do período que esteja vivenciando”, analisa o professor do curso de pós-graduação em arte pública da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP), João Spinelli. “O verdadeiro artista está sempre à procura do novo, do diferente, do que possa marcar, simbolizar ou levar uma reflexão da sua época (veja exemplo no boxe Entre o silêncio e a comunicação). E trazer novos e denunciar antigos paradigmas, que já cumpriram o seu papel para a história, tem sido o drama da arte contemporânea.”
A necessidade de expressão fez com que a arte ampliasse seus horizontes, trazendo à baila uma profusão de nomes e conceitos. E não é difícil cair nesse emaranhado de definições: expressionismo abstrato, dadaístas, surrealistas, transvanguarda, neo-expressionismo, pós-minimalismo, body art, arte conceitual, e por aí vai. Diante desse cenário, é comum um indivíduo expressar sua preferência às diversas representações da Santa Ceia (quadro de Leonardo da Vinci, 1452-1519), em relação a uma obra abstracionista, embora a função documental da pintura tenha deixado de ser prioritária desde o surgimento da fotografia, ainda no século 19.
Porém, não foi só o conceito, as pesquisas e o parâmetro de arte que mudaram ao longo do tempo, mais recentemente sob o signo das novas mídias e tecnologias. Se antes a arte era produzida para o deleite, a vaidade e o culto ao “belo” da nobreza, principalmente no século 17, hoje ela é exposta em museus, nas galerias de arte e nos espaços públicos das cidades. De acordo com o artista plástico Eduardo Coimbra, a arte cumpre sua função social nos mais variados locais.
“Penso que toda arte é pública, no sentido de que é pensada e feita para interagir num ambiente social. Mesmo a obra de arte que está na casa de um colecionador, disponível apenas para alguns eleitos, é, portanto, parte de uma cultura e elemento social legítimo”, afirma Coimbra, autor dos trabalhos Luz Natural e Lugar na Paisagem, a serem apresentados respectivamente na 29ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, aberta para o público de 25 de setembro a 12 de dezembro, no Parque Ibirapuera, e na unidade Pinheiros do Sesc São Paulo de 17 de setembro a 7 de novembro.
Produção onipresente
A arte contemporânea exacerbou o princípio da transgressão já previsto nas vanguardas do início do século 20, como o futurismo, dadaísmo e surrealismo, acentuando sua dimensão política. E espalhou-se de vez em instalações em parques, praças, ruas e avenidas. Não há dúvida de que a arte urbana, ou street art, ganhou espaço como meio de expressão de jovens, por meio de grafites cada vez mais elaborados ou mesmo pela caligrafia exposta em pichações pela cidade.
O artista plástico Kaboco, que transitou pelo grafite, procurou manter o trabalho alicerçado na pesquisa e soube percorrer dois mundos paralelos: o das galerias de arte e o das avenidas da cidade. “Como eu não tinha inicialmente espaço, fui produzir os trabalhos nas ruas. Mas eu sempre fazia as intervenções com uma ideia preconcebida e sem estar preso a nenhum movimento urbano”, enfatiza. “Uso os mesmos elementos para criar, mas quando exponho ao público da galeria, que já domina determinados conceitos de arte, procuro trabalhar outros sentidos por meio do suporte, da textura e do olhar.”
Hoje, a arte está também nas mídias televisivas e digitais, e foi parar até no corpo das pessoas, com a popularização das tatuagens. “A arte também é política quando fala do corpo numa sociedade canhestra, quando discute homossexualismo numa sociedade pseudo-puritana ou quando ataca dogmas religiosos em sociedades beatas. Arte é libertação, é algo emocional sendo ao mesmo tempo mental”, afirma Alex Flemming, autor do painel com rostos de anônimos cobertos por fragmentos de poemas na estação Sumaré do metrô em São Paulo. Flemming considera que a arte nunca teve amarras, mas adverte acerca de algumas produções. “Arte tem de apresentar forma, cor e conceito, pois se algum desses três pilares for fraco, algo está errado”, sentencia.
Contextos da Bienal
Como se pode ver, a 29ª Edição da Bienal Internacional de Arte de São Paulo não poderia ser mais sugestiva. Com o título Há sempre um copo de mar para um homem navegar, inspirado em verso do poeta alagoano Jorge de Lima, os artistas deste ano da exposição abordarão o tema da relação entre a arte e a política. A edição pretende fazer uma celebração do fazer artístico e uma afirmação de sua responsabilidade perante a vida, além de oferecer exemplos de como a arte tece, entranhada nela mesma, uma política.
“A proposta desse ano nasce, dentre outros fatores, porque a arte é eminentemente política”, comenta o curador Agnaldo Farias. “Interessa salientar como a reação de arte e política pode ser sutil e pouco percebida pelas pessoas, que enxergam nesse fenômeno as obras de denúncia, uma obra escancarada, muito evidente, mas diferente dos aspectos mais sutis propostos nesse nosso debate.”
Ao todo a exposição contará com cerca de 160 artistas de diversos países. Entre os representantes brasileiros, Kaboco e o arquiteto Roberto Loeb estarão juntos na Bienal. Cada um deles irá produzir um dos seis terreiros [espaços projetados para abrigarem várias atividades, cujo nome foi inspirado num trecho da música Brasil Pandeiro, de Assis Valente, entoada pelos Novos Baianos] do evento, que apresentam temas distintos: A Pele do Invisível; Dito, não dito, interdito; Eu sou a rua; Lembrança e esquecimento; Longe daqui, aqui mesmo; e O outro, o mesmo.
“A nossa preocupação foi levantar um eixo de discussão que tem atravessado uma parcela significativa da produção contemporânea, à qual tem a possibilidade de se mesclar e misturar-se”, completa Farias. “Por isso, há trabalhos onde se funde arquitetura com pintura, vídeo com instalação, poesia com cinema. Há as expressões mais clássicas e canônicas; mas junto com elas existe uma miríade de expressões em função do cruzamento, do enxerto, da cópula de linguagens.”
Em vista das imagens e do resultado de uma fratura social, a comum ?pichação em São Paulo também ganhou espaço na edição da Bienal. Para os curadores, a pichação questiona os limites do que é “política” e o que é “arte”, dada a sua linguagem e manifestação na cidade. Por isso, alguns pichadores, que ocuparam a Bienal passada, foram convidados para o evento deste ano.
“Não nos interessa falar se grafite ou pichação é arte ou não. Não é o nosso papel intervir como juiz, o que interessa é formular questões”, lembra o também curador da Bienal, Moacir dos Anjos. “O papel da Bienal é de questionar, especular, oferecer ao público não aquilo que já está codificado, regulado, mas oferecer uma oportunidade que ele desconhece e ainda não sabe enquadrar.”
Durante o período da Bienal, o Sesc São Paulo vai apresentar diversas mostras em suas unidades. A iniciativa visa garantir a acessibilidade à arte e sua vivência no dia a dia dos cidadãos. “No campo das artes visuais, a programação das unidades busca oferecer aos nossos públicos – distintos e variados, bastante afeitos à diversidade que caracteriza a cidade de São Paulo – mostras expositivas que atuem como uma plataforma para diálogos entre esses indivíduos e a arte contemporânea, provocando experiências estéticas”, explica Juliana Braga, assistente de artes visuais da Gerência de Ação Cultural (Geac) do Sesc São Paulo (acompanhe as ações do Sesc durante a Bienal no boxe Articulação criativa).?
Entre o silêncio e a comunicação
Sesc Pompeia abre as portas para a maior retrospectiva
do artista alemão Joseph Beuys realizada no Brasil
Considerado um dos maiores artistas do século 20, o artista alemão Joseph Beuys (1921-1986) vai ganhar espaço especial na cidade. A partir do dia 16, Beuys vai ter uma homenagem que ocorre paralelamente à 29ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, numa iniciativa do Sesc São Paulo em parceria com a Associação Videobrasil. A exposição, a maior já vista no Brasil sobre o artista, será realizada até o dia 28 de novembro no Sesc Pompeia e destaca o caráter crítico de Beuys, conhecido por sintetizar a relação entre arte e política, sobretudo durante as décadas de 1960 e 1970.
Com a curadoria do professor de arte contemporânea da Academia di Brera, em Milão, Antonio d’Avossa (ver seção Depoimento), a mostra intitulada A Revolução Somos Nós reúne 250 obras criadas de 1964 a 1986. Ao todo reúne cartazes, múltiplos e vídeos que registram performances históricas, além de uma série de documentários sobre o próprio artista.
A iniciativa será acompanhada de uma intensa programação educativa, que inclui um seminário internacional sobre a obra de Beuys e também uma cerimônia de plantio de árvores, que lembra a obra 7000 Carvalhos, criada por ele em 1982 para a Documenta 7, em Kassel, Alemanha.
A partir de uma complexa articulação de referências teóricas, que vão do cristianismo à antroposofia, Joseph Beuys construiu uma obra referencial para a concepção contemporânea de arte. Quanto à produção que virá a São Paulo, corresponde a um período de intensa atividade política, durante a qual o artista adere ao partido ambientalista alemão Os Verdes, ajuda a criar a Organização pela Democracia Direta por Plebiscito e funda a Universidade Livre Internacional, instituição de ensino com sedes espalhadas pela Europa.
E, diante desse contexto, passa a usar múltiplos e materiais gráficos como veículos de difusão de ideias. “Os múltiplos e cartazes tornam-se um verdadeiro arsenal de propaganda para a escultura social e o conceito ampliado de arte”, diz o curador Antonio d’Avossa. “Beuys traça com eles uma estratégia paralela à sua obra e integrada a ela.”
SALTOS DA CRIAÇÃO
Conheça alguns nomes que contribuíram para a evolução das expressões artísticas no decorrer dos séculos a partir da Idade Moderna*
IDADE MODERNA
• Renascimento – O período foi marcado por transformações em muitas áreas da vida humana, que assinalam o final da Idade Média e o início da Idade Moderna. Caracterizou-se pela transição do feudalismo para o capitalismo, cujas mudanças foram evidentes na cultura, sociedade, economia, política e religião.
Botticelli (1445-1510) – Os temas de seus quadros eram a beleza associada ao ideal cristão.
Leonardo da Vinci (1452-1519) – Dominou o jogo expressivo de luz e sombra, gerador de uma atmosfera que parte da realidade.
Caravaggio (1571-1610) – Artista que usou a luz de modo revolucionário na pintura.
IDADE CONTEMPORÂNEA
• Impressionismo – A busca pelos elementos fundamentais de cada arte levou os pintores impressionistas a pesquisar a produção pictórica, não mais interessados em temáticas nobres ou no retrato fiel da realidade, mas em ver o quadro como obra em si mesma. Período marcado pelo iluminismo, no qual havia o sentimento de que as ciências iriam descobrir novas soluções para os problemas humanos.
Claude Monet (1840-1926) – Pesquisador da luz e de seus efeitos, pintou vários motivos em diversas horas do dia, a fim de estudar as mutações da cor.
Auguste Renoir (1841-1919) – Seus quadros manifestam otimismo, alegria e a intensa movimentação da vida parisiense do fim do século 19.
• Fauvismo – O Fauvismo (do francês lês fauves, as feras) tinha como características marcantes a simplificação das formas, o primado das cores e uma elevada redução do nível de graduação das cores utilizadas nas obras.
Paul Gauguin (1848-1903) – Produção artística singular e determinante das vanguardas do século 20. Sua obra está longe de poder ser enquadrada em algum movimento.
• Pós-impressionista – Foi a expressão artística utilizada para definir a pintura e a escultura no final do impressionismo, com destaque para a cor e bidimensionalidade.
Vincent Van Gogh (1853-1890) – Empenhou-se profundamente em recriar a beleza dos seres humanos e da natureza através da cor. Considerado um dos pioneiros na ligação das tendências impressionistas com aspirações modernistas e influenciado pelo expressionismo, o fauvismo e o abstracionismo.
• Cubismo – Tratava as formas da natureza por meio de figuras geométricas, representando todas as partes de um objeto no mesmo plano. A representação do mundo passava a não ter nenhum compromisso com a aparência real das coisas.
Pablo Picasso (1881-1973) – Fundamenta-se na destruição de harmonia clássica das figuras e na decomposição da realidade.
• Dadaísmo – Caracterizou-se pela oposição a qualquer tipo de equilíbrio – Combinação de pessimismo irônico e ingenuidade radical – ceticismo absoluto e improvisação. Enfatizou o ilógico e o absurdo.
Marcel Duchamp (1887-1968) – Abriu caminho para movimentos como a pop art das décadas de 1950 e 1960. Reinterpretou o cubismo a sua maneira.
• Surrealismo – Foi um movimento artístico e literário surgido em Paris, nos anos de 1920. Inserido no contexto das vanguardas, viria a definir o modernismo no período entre as duas Grandes Guerras Mundiais.
Salvador Dalí (1904-1989) – O trabalho de Dalí chama a atenção pela incrível combinação de imagens bizarras, oníricas, com excelente qualidade plástica.
• Cobra – Movimento artístico da vanguarda europeia, influenciado pela arte popular nórdica, expressionismo e surrealismo, entre 1949 e 1952.
• Pop Art – Movimento que usava figuras e ícones populares como tema de suas pinturas.
Roy Lichtenstein (1923-1997) – Usa histórias em quadrinhos como tema artístico.
Andy Warhol (1927-1987) – Mostrou sua concepção da produção mecânica da imagem em substituição ao trabalho manual numa série de retratos de ídolos da música popular e do cinema.
• Grafite – Forma de manifestação artística em espaços públicos. A definição mais popular diz que o grafite é um tipo de inscrição feita em paredes.
Jean Michel Basquiat?(1960-1988) – Seus grafites mostravam símbolos de variadas culturas, de obras famosas e principalmente ícones da cultura e consumo americanos.
*Com a consultoria do professor do curso de pós-graduação em arte pública ?da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da Universidade de São Paulo (USP), João Spinelli, e o curador Josué de Mattos (mestre pela Universidade ?de Paris-Sorbonne).
Articulação criativa
Sesc São Paulo reúne diversas exposições de arte contemporânea em suas unidades
Em convergência com a 29ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, aberta para o público de 25 de setembro a 12 de dezembro, o Sesc São Paulo preparou várias ações em suas unidades. Essas iniciativas estão sendo articuladas numa rede de 28 instituições culturais, com o objetivo de oferecer exposições de inúmeros artistas e propostas para ampliar o acesso à cultura, além de marcar a relevância da cidade no cenário internacional da arte – prevista no projeto São Paulo Polo de Arte Contemporânea.
Entre essas ações, está a mostra Lugar Algum, a ser realizada de 17 a 7 de novembro, no Sesc Pinheiros, cujos trabalhos abrem a investigação sobre os diálogos possíveis entre lugar e obra, a partir da ideia de ocupação e subversão dos limites percebidos. “As unidades do Sesc, que são apropriadas pelo público, têm muitas atividades e possibilidades de uso. Mas entendemos que os espaços são olhados quase da mesma forma”, avalia Fabiana Delboni, técnica de Artes Visuais do Sesc Pinheiros. “Por isso, a mostra deve questionar como os espaços expositivos são ocupados e procurar alterá-los de maneira que as pessoas busquem outras perspectivas de relacionamento com as obras.”
Por apresentar as relações entre paisagem e arquitetura, o trabalho do artista Eduardo Coimbra, intitulado Lugar na Paisagem, figura como uma das intervenções na mostra do Pinheiros. “O trabalho será criado no gramado da praça em frente à entrada do prédio da instituição e vai estar limitado por paredes espelhadas, sugerindo uma paisagem transversal sob a arquitetura”, sintetiza Coimbra, que também se apresenta na Bienal com o trabalho Luz Natural. “A proposta é a vivência de um espaço inventado flutuante, a partir de um elemento natural, provocando o confronto entre a arquitetura e essa aparente paisagem.”
Já a exposição Por Aqui, Formas Tornaram-se Atitudes, que ocorre de 30 de setembro a 30 de novembro, na unidade Vila Mariana, foi concebida a partir de uma pesquisa de mestrado em curadoria realizada por Josué Mattos, na Universidade de Paris-Sorbonne, e determina um território geográfico e cultural produzido no Brasil. Faz ainda uma análise da história das exposições a partir da segunda metade do século 20, na qual se percebe a particularidade da produção brasileira feita por alguns artistas “incontornáveis” da história da arte. “Foram artistas que construíram propostas cujo conceito não estava apenas na linguagem próxima do expressionismo, mas também na linguagem contestatória”, teoriza Mattos.
“Diante dessa conjuntura artística, invertemos o nome da exposição que era chamada Quando as Atitudes Tornam-se Forma, concebida, em 1969, pelo curador Harald Szeemann (historiador suíço, 1933-2005), na Kunsthalle de Berna.” A exposição conta com obras históricas da estética relacional, de artistas como Albano Afonso, Lygia Clark, Sandra Cinto, Rochelle Costi, Lenora de Barros, Caetano Dias, Maurício Dias e Walter Riedweg, Anna Bella Geiger, Carmela Gross, Laura Lima, Hélio Oiticica, Lygia Pape, entre outros.
O Sesc Consolação também organiza uma mostra alinhada às ações da Bienal: Diálogos com Jean Plantu, que ocorre do dia 24 deste mês a 30 de outubro e traz desenhos e charges criados pelo jornalista e caricaturista Jean Plantu publicados em jornais franceses, ao longo de mais de 30 anos de carreira. Com o tema da política francesa e internacional, abre-se um diálogo com os cartunistas brasileiros Chico Caruso, Angeli e Loredano, que participam da mostra com trabalhos sobre a política brasileira.