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Roleta russa

Entre o vício do jogo e a virtude da religião, o desejo humanista e o antissemitismo, Fiódor Dostoiévski viveu e escreveu sob o signo da contradição

Um dos maiores escritores da história da literatura. Esse é o lugar comum quando o assunto é o escritor russo Fiódor Mikhailovich Dostoiévski. Humanista e ao mesmo tempo antijudeu, defensor de uma sociedade mais justa, mas um “nacionalista estreito, um chauvinista”, como define o tradutor, escritor e ensaísta Boris Schnaiderman. Assíduo frequentador de um grupo de revolucionários – atividade pela qual foi condenado à prisão, onde se descobriu epilético –, tempos depois tornou-se simpatizantedo do czar Alexandre II (1818-1881), cujas reformas incluíram a libertação dos camponeses da opressão, mas ainda assim considerado por muitos um autocrata.

“Tudo isso num homem que tinha realmente uma elevada moral”, segue Schnaiderman, tradutor das obras de Dostoiévski para o português. “Quer dizer, é uma complexidade de sua personalidade.”
Segundo dos sete filhos de Mikhail Dostoiévski e Maria Fedorovna, o autor de Crime e Castigo (1866) e Os Irmãos Karamazov (1881) cresceu sob ordens de um pai autoritário, mas que lhe deu boa formação. Em 1844, aos 23 anos, traduziu do francês Eugenia Grandet, de Honoré de Balzac, e com o dinheiro saldou uma dívida com um agiota – muitas outras, geradas das mais diversas formas, viriam depois dessa. No mesmo ano já morava em São Petersburgo, havia largado o exército – onde já alcançara a patente de tenente – e se dedicava somente à escrita.

Em 1846, publicou seu primeiro romance, Gente Pobre, bem recebido pelo público e pela crítica e seguido, poucos meses depois, por O Duplo. O início promissor se comprovou ao longo da vida, durante a qual produziu, entre romances, novelas, contos, cartas e textos de não ficção, uma obra que serve de testemunho da história da Rússia e da própria natureza humana. “Dostoiévski soube colocar, no papel, os problemas cruciais do homem, desenvolvendo isso de forma ficcional”, analisa Schnaiderman.

“Ele trata, em sua obra, dos problemas mais candentes do ser humano, da sociedade, da política, da história. Problemas que tinham sido levantados, antes dele, por filósofos, mas que ele consegue tratar na sua ficção. Nisso está a sua grande importância.” O ensaísta cita como exemplo o romance O Eterno Marido (1870), no qual um personagem afirma que as grandes ideias vêm mais do coração que da inteligência. “É a questão do pensar e do sentir”, explica o tradutor. “A importância de como não se podem separar as duas coisas. O mesmo que depois Fernando Pessoa colocaria em sua famosa [poesia] Autopsicografia (1930), onde temos também o pensar e o sentir juntos, um dependendo do outro.”

O também ensaísta e tradutor de obras de Dostoiévski Paulo Bezerra aborda a importância do russo para a literatura universal ressaltando os aspectos, de um lado, filosóficos e, de outro, estéticos de sua obra. “[em Dostoiévski] O homem é visto na sua amplitude”, analisa. “Nem somente mal nem somente bom, mas sim um conglomerado de características positivas e negativas. Enfim, um conjunto que diz bem aquilo que é o ser humano na sua configuração mais profunda.”

Quanto à estética, o especialista aponta as “infinitas novidades” que os escritos do autor trouxeram para a literatura. “Primeiro porque ele, talvez, seja o único que dá voz a todos os segmentos sociais, a todos os aspectos da existência humana”, declara. “Nesse sentido, seu romance é de uma abrangência imensa também, justamente porque ele traz um painel de toda uma sociedade, representada pelas vozes que falam em pé de igualdade. É isso que faz do romance de Dostoiévski uma coisa tão universal, tão abrangente e tão encantadora.”


Personagens recorrentes


A riqueza descrita pelos especialistas se acumula na ação dos personagens, cujos tipos são recorrentes. Em comum a eles, o fato de serem espécies de “mensageiros” da visão de Dostoiévski sobre a Rússia, sobre o final do século 19, sobre o capitalismo triunfante na Europa, enfim, sobre o mundo. “A figura do revolucionário, por exemplo, aparece com frequência na obra de Dostoiévski”, afirma Bezerra.

“Ela está no [Príncipe Lev Nikoláevitch] Míchkin, de O Idiota (1869), aparece numa reflexão de Os Irmãos Karamazov, no capítulo em que Ivã [Karamazov, um dos irmãos do título] narra a morte de uma criança pelos cães do general, e no Raskólnikov, de Crime e Castigo, o revolucionário possível do século 19 russo.”
Assim como seus personagens, o escritor não só viu os acontecimentos do seu tempo como participou ativamente deles. Seu envolvimento com um grupo político de resistência lhe rendeu uma condenação, em 1849. Foram quatro anos de trabalhos forçados numa prisão na Sibéria, e mais seis de residência também compulsória numa cidade daquele daquela região.

“Dostoiévski não era nenhuma ovelhinha inocente”, retoma Schnaiderman. “Ele fazia parte de um grupo que se reunia para discutir textos literários, filosofia, mas frequentava, na verdade, um subgrupo dentro deste, mais atuante e que pretendia realmente passar à ação prática, não ficar apenas na discussão.”

Nessa passagem da biografia, novamente a contradição marca a natureza de seus atos. “Depois que ele volta da Sibéria, há uma reviravolta, uma surpresa muito grande”, segue o ensaísta. “Porque aquele homem que todo mundo esperava que fosse um revolucionário passa a pregar a adesão completa ao sistema czarista. Ele tinha um entusiasmo muito grande pelas reformas do reinado de Alexandre II.” Essa dualidade passava da mão à pena em Dostoiévski. E um exemplo, aponta Schnaiderman, é o estereótipo da mulher decaída, mas de grande dignidade moral.

“Em Crime e Castigo, temos a prostituta que é uma verdadeira santa, Sófia Siemionovna Marmiéladova; em O Idiota, temos Nastássia Filíppovna, um tipo magnífico de mulher, que tinha um passado considerado duvidoso pela sociedade e, no entanto, era uma criatura de grande elevação moral; e temos a mesma característica na personagem Grushenka, de Os Irmãos Karamazov”, lista o tradutor.


Grande diálogo


Conforme explica Paulo Bezerra, a obra de Dostoiévski, em si, “é um grande diálogo com toda a história da cultura, e particularmente com a da literatura”. O especialista informa que os livros do russo estabeleceram pontes sólidas com a filosofia de sua época e com todo o pensamento sociológico de então. “E nesse diálogo há espaço para todas as correntes de pensamento”, continua Bezerra.

“Lá está uma grande polêmica com o racionalismo, com o iluminismo, com o pensamento social da Rússia do século 19, com a história antiga e moderna do país.” Segundo o tradutor, em Memórias do Subsolo (1846), o autor trava embate com a razão cartesiana que, em Crime e Castigo, manifesta seu “horror” à burguesia sedimentada pelo iluminismo. “Dostoiévski era uma alma antiburguesa por excelência”, conta Bezerra. “O burguês em Dostoiévski até lembra um pouco o que aparece em Paulicéia Desvairada (1922) de Mário de Andrade. Suas representações do tipo beiram a caricatura, que é o caso de Lújin, em Crime e Castigo.”


O jogo


A ferrenha convicção política, no entanto, não intimida sua ambiguidade latente. Sobretudo, quando se via diante de uma – lá vai um segundo lugar comum – “paixão proibida”: o jogo. “E também uma atração pelo ?dinheiro”, complementa Paulo Bezerra. “Havia em Dostoiévski um sentimento ambíguo com relação ao dinheiro, uma atração irresistível e ao mesmo tempo uma repulsa, ele via no dinheiro um fator de destruição do psiquismo humano.” Ao mesmo tempo, o impulso que o levava à ruína também o tirava dela.

“Havia um segundo aspecto da sua relação com o jogo que era vê-lo como criação – e vice-versa: a criação literária como um jogo”, declara Bezerra, que aproveita para narrar o contexto de criação de O Jogador, romance de 1867: “Dostoiévski tinha feito um contrato com um livreiro que estipulava a entrega de um romance em três meses”, conta o tradutor. “Se ele não respeitasse esse prazo perderia o direito sobre tudo o que havia publicado até então. Quando faltavam 26 dias, ele se concentra e escreve, a tempo, O Jogador. Então, veja, o próprio romance se transforma em jogo. Havia a roleta, mas também o desafio – de, por exemplo, escrever um romance em 26 dias.”

Dostoiévski morreu em fevereiro de 1881, vítima de uma hemorragia pulmonar, na cidade de São Petersburgo. Pouco meses depois de concluir Os Irmãos Karamazov.



Presença no Brasil

O criador de Os Irmãos Karamazov e Recordações da Casa dos Mortos encontrou interlocução entre autores e leitores brasileiros

Segundo afirma o tradutor, escritor e ensaísta Boris Schnaiderman, Dostoiévski teve “uma grande presença” entre os escritores brasileiros. Conhecida no Brasil a partir do final do século 19, por meio de versões em francês de seus livros, sua obra, garante Schnaiderman, teve grande repercussão. “Um texto com a angústia de Graciliano Ramos [1892-1953], por exemplo, está todo marcado por Dostoiévski”, declara o tradutor.

Em Memórias do Cárcere (1953), Graciliano dialoga abertamente com Recordações da Casa dos Mortos (1862), de Dostoiévski. O ensaísta e tradutor Paulo Bezerra reforça a dialética com Graciliano e cita outro exemplo: “Há muitos pontos de contato entre São Bernardo (1934) e Uma Criatura Gentil [também traduzido para o português com o título A Dócil] (1876)”.

Bezerra cita ainda convergências – às vezes no estilo, às vezes em passagens das histórias – entre o russo e Guimarães Rosa (1908-1967). “Em Grande Sertão: Veredas (1956)”, diz. E em Machado de Assis (1839-1908). “No modo de construir personagens, no distanciamento do autor em relação a eles”, detalha Bezerra.

 

Em cena com Dostoiévski

A diretora Cibele Forjaz fala dos bastidores do espetáculo O Idiota, adaptação de livro do escritor russo

Parte da programação do Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, onde será apresentado, de 6 a 11 de setembro, o espetáculo O Idiota – Uma Novela Teatral, é uma adaptação do livro O Idiota (1869), de Fiódor Dostoiévski, e explora um conceito de dramaturgia que até agora parecia ser exclusivo da TV, o da novela – como o título adianta. A peça é dividida em três partes e cada uma é apresentada num dia. Nos dias 6 e 9 a primeira, 7 e 10 a segunda, e finalmente a terceira nos dias 8 e 11.

“Muitas obras de Dostoiévski foram sendo escritas e publicadas antes de acabar, como um folhetim ou como uma novela mesmo”, justifica a diretora do espetáculo, Cibele Forjaz. “Ele não tinha tempo para escrever, mas vivia disso, e estava sempre endividado, então ele não conseguia escrever a obra inteira antes de entregar.”
A peça, que conta a história do Príncipe Míchkin, um visionário, misto de Jesus Cristo e Dom Quixote, que retorna à Rússia após um tratamento de epilepsia, é resultado de um processo que teve início em 2008, quando o ator Aury Porto, que assina a dramaturgia juntamente com Cibele, a atriz Luah Guimarãez e o tradutor Vadim Nikitin conseguiram pôr em prática o antigo projeto de montar o livro. “Esses dois anos foram para pesquisa, dramaturgia, estudo cênico com os atores, finalização da dramaturgia e os ensaios”, diz a diretora.

No primeiro estágio do processo foi feita uma roteirização do livro. Em seguida, veio a escolha das ações dramáticas que comporiam o espetáculo, uma “peneira” que deixou passar apenas os momentos de maior tensão. Cibele e o grupo de atores da Companhia Livre se envolveram no projeto a partir do que poderia ser chamado de terceiro estágio do processo, quando a dramaturgia, já com um molde mais definido, foi sendo preenchida com as improvisações dos atores. “A gente fez um estudo cênico”, detalha.

“A gente fez na Casa Livre, que é o teatro da companhia, e esses estudos eram abertos ao público.” O primeiro roteiro foi dividido pelo grupo em 12 capítulos e, durante 12 dias, cada um deles era explorado com a presença de uma plateia. “Fizemos um roteiro de ação de cada capítulo e improvisávamos a partir de cada um deles”, informa.

“É interessante porque houve um estudo da obra, mas também teve uma parte do trabalho que foi dos atores devorando o romance.” A diretora define esse momento do processo como “fundamental”, dado o fato de que foi a partir dele que o espetáculo começou a assumir as formas com as quais ele estreou, no palco do Sesc Pompeia, no ano passado. “Foi aí que a gente determinou que seria uma novela teatral”, exemplifica Cibele.