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Todo Homem é um Artista

O professor de arte contemporânea Antonio d’Avossa narra passagens ?da vida de Joseph Beuys determinantes para a criação de uma das obras mais impactantes no cenário artístico do século 20

 
Grande conhecedor da obra do artista alemão Joseph Beuys (1921-1986), o professor de arte contemporânea da Academia di Brera, em Milão, Antonio d’Avossa, deu uma “aula” à plateia que lotou no dia 27 de julho o auditório do Sesc Pinheiros. Em mais de três horas de palestra, d’Avossa discorreu sobre a vida e a trajetória de Beuys, considerado um dos artistas mais importantes do século 20. Durante a conversa, o professor deu seu depoimento sobre a primeira vez em que se deparou com uma exposição do alemão, fato surpreendente para ele. “Era um artista estranhíssimo. Imediatamente percebi que não tinha os instrumentos adequados para entendê-lo, mesmo eu sendo um bom aluno de universidade”, disse o especialista.


Também curador da exposição Joseph Beuys: A Revolução Somos Nós, a ser realizada de 15 de setembro a 28 de novembro no Sesc Pompeia, em parceria com a Associação Cultural Videobrasil, Antonio relatou as experiências vividas por Beuys, que o transformaram em notável nas artes. A seguir, trechos:

Artista estranho

No dia 13 de novembro de 1971, quando eu tinha apenas 20 anos, o galerista Lucio Amélio me convidou a uma exposição do Joseph Beuys, em Capri, na Itália. Fui com a presunção que acompanha os jovens estudantes de entender outro artista conceitual ou outro artista minimalista. Acreditava ter os instrumentos para entender o trabalho de Beuys, do qual já tinha ouvido falar. Naquela noite mal dava para entrar, galeristas e artistas tinham vindo de toda a Itália.

E foi difícil entrar para ver esse homem [Beuys] com seu chapéu, casaco, calça jeans e seus sapatos. Nas paredes havia tantos desenhos e obras que eram múltiplos. E havia uma máquina de projeção de ?16 mm que projetava um filme. Todas as pessoas estavam sentadas no chão e Beuys falava de um conceito de arte que considerávamos já estar superado, introspectado.

Era um artista estranhíssimo. Imediatamente percebi que não tinha os instrumentos adequados para entendê-lo, mesmo eu sendo um bom aluno de universidade. Uma coisa, porém, eu entendia: que não se tratava apenas da uniformidade de Beuys. Mas era o carisma emanado por ele, cuja qualidade não é para todos. Para mim em 1971, Beuys era Beuys.

Abatido no front

Beuys foi um artista que viveu sua época. Trabalhou frequentemente na pequena fábrica de manteiga dos pais. E, durante essa infância, assistiu à grande mudança da Alemanha a partir de 1933, com a chegada ao poder de Adolf Hitler e do nacional-socialismo. Estudou música, violoncelo, piano, e assim que terminou o colegial exprimiu o desejo de fazer medicina. Mas não teve tempo de realizar esse desejo porque em 1939 foi chamado ao serviço militar.

Sua experiência fundamental foi especializar-se como radiotelegrafista, e depois fazer um curso para piloto no exército. Entre o período de 1941 e 1943, ele participou de numerosas ações no front que ia dos Bálcãs no sentido da Rússia. Durante uma delas, o avião de Beuys foi atingido e caiu na Crimeia, em plena tempestade de neve. Sobre esse episódio, ele disse: “Lembro que foi muito tarde para pular e abrir o paraquedas, porque foram alguns segundos antes de atingir o solo.


Por sorte eu não estava preso no cinto de segurança, sempre preferi ficar solto. Meu amigo [outro piloto] foi desintegrado pelo impacto. Eu, mesmo depois de jogado contra o parabrisa, quase que na mesma velocidade do avião, tive muitas feridas, sobretudo no maxilar e no crânio. Depois fui totalmente sepultado pela neve até os tártaros me encontrarem alguns dias mais tarde”.


Em feltro e gordura

Esse episódio vivido por um jovem, piloto da Lufftwafe, o salvou. Mas antes de salvá-lo o faz morrer, pois Beuys ficou inconsciente durante 12 dias e de alguma maneira passou por uma morte para renascer. Os tártaros [grupo étnico turco que originalmente habitava a Crimeia] o encontraram na neve, cobriram seu corpo com gordura e o envolveram num feltro. E, com aquele ponto de energia térmica que o corpo ainda manteve porque estava vivo, regenerou-se.

A experiência extraordinária pela qual Beuys passou, frequentemente, os antropólogos e estudiosos do xamanismo indicam como uma experiência da Chamada, quando ocorre uma transferência de conhecimento através da morte e do renascimento.

Beuys foi conduzido a um hospital militar. E se recuperou no sul da Itália. Mas infelizmente a guerra continuou e ele foi chamado novamente em uma nova equipe. Até que foi preso num campo inglês de prisioneiros, de onde saiu no final da guerra. Ele conseguiu voltar para a sua cidade [Kleve], quase destruída. Após fazer estudos em alguns lugares da cidade, ele decidiu se inscrever na Academia de Belas Artes de Dusseldorf. Terminou o curso de cinco anos e em seguida começou a fazer pequenos trabalhos, ?sobretudo, com desenhos. Sempre fez figuras de animais, homens e mulheres, e vegetais. Os três mundos que se encontram.


Autonomia artística

Em 1961, Beuys tornou-se professor da Academia de Dusseldorf. Mais tarde conheceu George Maciunas [artista plástico, músico, teórico e historiador de arte lituano, 1931-1978], então criador do movimento artístico Fluxus [conhecido pela mescla de diferentes artes]. Eles criaram um festival na Academia, que naquele momento se tornou o centro do cenário artístico alemão e europeu. Entre 1965 e 1966, no entanto, separou-se do grupo Fluxus e assumiu sua concreta e substancial autonomia no mundo da arte. Ele começou com aquele slogan:

“Todo homem é um artista”.


Beuys passou não só a praticar ações importantes passadas no vídeo, mas ações que se deparavam com o mito do conceitualismo, ?do dadaísmo e da antiarte europeia e norte-americana. Tinha decidido usar como instrumento principal a comunicação: a voz, a palavra e o ruído que se opõem ao silêncio.

A não comunicação foi imediatamente rejeitada por ele. O silêncio é isolamento, semelhante ao infiltramento, o envolver em feltro. Beuys superavaliou o silêncio, desenvolvendo a ação entre silêncio e palavra nos estúdios de TV. Ele estava totalmente consciente de que por meio da televisão não atingia só o publico da arte, mas todas as casas.


Material invisível

Não há dúvida, Beuys entendeu perfeitamente os meios de comunicação. Não apenas enfrentava um assunto fundamental para a nossa civilização, a nossa democracia, mas enfrentava o material, ou seja, a palavra, cujo material é totalmente invisível. Beuys rejeitava o termo das artes visuais através de uma visão fundamental com o princípio do primata, da vista, da visão sobre os outros sentidos. Hoje vivemos na época da hiperimagem, em que tudo passa pela visão e onde os outros sentidos são penalizados.

A obra de Beuys vai tentar ativar todos os sentidos contemporâneos, principalmente nas grandes instalações. Até chegar naquele conceito dos cientistas chamado de sinestesia [relação de planos sensoriais diferentes provocados por uma condição neurológica]. Beuys teve aquela experiência com os tártaros. E sentiu o cheiro, foi alimentado e envolvido no feltro com gordura. Tinha o tato, via e não via. Naquela experiência extrassensorial, todos os sentidos contemporaneamente estavam ativados: morte e salvação.

“A obra de Beuys vai tentar ativar todos os sentidos ?contemporâneos, principalmente nas grandes instalações. ?Até chegar naquele conceito dos cientistas chamado de sinestesia”