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Memória Viva
Emanoel Araújo, diretor do Museu Afro Brasil, percorre trajetória ímpar no ambiente artístico do país. Gravador, escultor e museólogo, esteve à frente de importantes equipamentos culturais em vários estados – emprestando sua experiência, também, a outros países preocupados com a organização de acervos. Responsável pela recuperação museográfica e restauração, em meados de 1990, da Pinacoteca do Estado de São Paulo, fez do espaço referência das artes na cidade.
Em conversa com o conselho editorial da Revista E, falou sobre as dificuldades enfrentadas para transpor preconceitos e consolidar-se como agente transformador da cultura brasileira: “Eu pensava ‘aqui dentro, um negro, baiano, artista, como posso resolver essas questões?’”. Atualmente, tem se dedicado à afirmação do Museu Afro Brasil como polo de difusão da memória e contribuição histórica dos negros para a nossa sociedade.
Direto da Bahia
Nasci em 1940 numa pequena cidade, Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. Muito rica por causa do açúcar, havia contradições sociais devido à mão de obra escrava. Venho de uma família de ourives. Caetano Veloso e eu fomos colegas no ginásio – lembro que ele trazia uma novidade para nosso grupo, por ter vivido em uma cidade grande como o Rio de Janeiro. Gostava de música, pintava e desenhava. Caetano diz que me ensinou a desenhar.
Fomos para Salvador fazer o científico. Eu queria fazer arquitetura, mas optei pelas Belas-Artes. Recentemente, ao visitar minha terra natal, perguntaram por que tinha me envolvido com museus. Para essa pergunta, há duas respostas: em 1963, Lina Bo Bardi [arquiteta responsável por obras como o Museu de Arte de São Paulo (Masp) e o projeto arquitetônico do Sesc Pompeia, entre outras] fez a exposição Civilização do Nordeste, no Museu de Arte Popular, e me convidou para ajudar na montagem.
Posteriormente, o jornalista Odorico Tavares, na época diretor dos Diários Associados da Bahia, elogiou em sua coluna um cartaz meu. Mais tarde, ele me convidou para não só produzir os cartazes do projeto de construção de museus regionais, patrocinados por Assis Chateaubriand, mas também para a montagem. Havia uma equipe de arquitetos para organizar o que seria o Museu Regional de Feira de Santana. O Chatô conseguiu uma coleção de obras de artistas ingleses muito importante.
Fui trabalhar no museu. Nessa época, também fiz muita coisa para o Centro Popular de Cultura (CPC) do Partido Comunista. Não tinha uma posição política partidária, mas era simpatizante do PC. Sempre exerci múltiplas atividades ligadas à cultura, fiz cenografia e figurino para a Escola de Teatro da Universidade da Bahia. Trabalhei com Carlos Murtinho, fiz a peça Boca de Ouro e A Falecida, de Nelson Rodrigues, até ocorrer a “gloriosa” Revolução de 1964 [que instaurou a ditadura militar no Brasil].
Pinacoteca renovada
Nos anos de 1990, o Secretário de Cultura Adilson Monteiro Alves me chamou para dirigir a Pinacoteca do Estado de São Paulo. Aceitei, porque era um desafio. Apesar de ser um museu da elite paulista, estava abandonado. Durante anos, funcionou no prédio a escola de Belas-Artes da família Cardim. Ao assumir, substitui a historiadora e crítica de arte Maria Alice Milliet, da Universidade de São Paulo (USP).
Sofri muita resistência ao assumir o cargo, porque professores da USP fizeram um abaixo-assinado. Diziam: “Como um baiano vai dirigir a Pinacoteca?”. Confesso que fiquei espantado com a situação do museu. Vários intelectuais e pensadores da arte haviam passado por lá e não enxergaram a situação crítica. No segundo dia de mandato, a segurança do prédio me ligou às três horas da manhã para avisar que um temporal tinha inundado a parte térrea. Aquilo era um problema sistemático, havia obras apodrecidas.
Eu pensava “aqui dentro, um negro, baiano, artista, como posso resolver essas questões?”. Chamei todas as pessoas envolvidas com o museu para se estabelecerem critérios – fizemos um seminário de uma semana com arquitetos, museólogos, críticos de arte, como Aracy Amaral e Carlos Lemos. Chamei uma série de pessoas envolvidas com a história da arte e arquitetura de São Paulo para discutirmos os rumos do museu a partir dali. A contribuição do Paulo Mendes da Rocha [arquiteto e urbanista] foi importantíssima.
Cedi um ateliê de arquitetura dentro da Pinacoteca para ele a fim de fazer o levantamento topográfico de todo o espaço. E, caso o Paulo Mendes conseguisse descobrir qual era a intenção do arquiteto Ramos de Azevedo ao construir aquele prédio inacabado, poderíamos restaurá-lo. Nesse período, Francisco Weffort, ministro da Cultura, foi visitar o museu. Mostrei toda a precariedade, ficou horrorizado.
Passado um tempo, ligou e ofereceu quatro milhões de dólares para a recuperação do espaço. Também negociei com o Mário Covas a outra parte e aquele museu se tornou o que é hoje, com toda sua importância para as artes em São Paulo.
Coleção Allende
Recebi o convite, por meio de um amigo que era embaixador do Chile, para ir até o país ajudar Isabel Allende a organizar a coleção de Salvador Allende [presidente do Chile eleito em 1970, pela coligação Unidade Popular]. O Museu da Solidariedade era um local muito importante, que se constituiu com a ajuda do crítico de arte brasileiro Mário Pedrosa, quando estava exilado no país.
Mas o museu sofreu muitos percalços com a ditadura de Pinochet [general responsável pela queda de Salvador Allende, em 1973. Implantou a ditadura no Chile]. Ajudei a valorizar a coleção de arte, em 2007 trouxe parte para o Brasil para ser exposta no Centro Cultural Fiesp/Sesi. Consegui que a instituição ajudasse a restaurar as obras vindas do Chile. Planejei com arquitetos a museografia e a restauração da nova sede do museu. Trabalhar ao lado da Isabel Allende foi bom, ela é uma mulher muito interessante.
Museu Afro Brasil
Em meados dos anos 2000, Marta Suplicy, durante seu mandato na prefeitura de São Paulo, chamou-me para fazer o Museu Afro Brasil. Eu tinha uma coleção particular, reunida desde 1987, organizada a partir da exposição Mão Afro-Brasileira – a pesquisa que norteava meu trabalho era a questão do negro no Brasil, sobretudo o artista.
Por que existiam tantos negros nas artes e na literatura e ninguém mencionava nada a respeito. Essa coleção somada à minha pesquisa serviram de base para a construção do museu. O espaço, voltado para a temática afro-brasileira, é único em todo o mundo. Os Estados Unidos ainda não conseguiram fazer seu museu afroamericano, embora existam recursos suficientes para tal.
Sinto que o Museu Afro Brasil tem muito mais valor para os estrangeiros que o visitam do que para os brasileiros. Sinto que há certo descaso por parte da mídia. Doei parte substancial de meu acervo para o estado de São Paulo para transformá-lo em museu do estado. Fiz com que se tornasse um lugar voltado para a História, a Arte e a Memória. Não é um espaço de gueto.
A intenção é que sirva de espelho para todos, a fim de recuperar a autoestima das pessoas, nesse universo tão complexo socialmente como o nosso. O museu serve para responder perguntas àqueles que não sabem quem são e de onde vêm. Serve para dar uma contribuição para uma sociedade que não aceita a diferença.
“O museu serve para responder perguntas àqueles que não sabem quem são e de onde vêm. Serve para dar uma contribuição para uma sociedade que não aceita a diferença”