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Emoção à flor da pele

Ilustração: Werner Schulz

Ele é conhecido como o rei da música popular brasileira. E, ao contrário de “outras majestades”, foi coroado pelos próprios súditos. Estamos falando de Roberto Carlos. Símbolo do iê iê iê, amado amante, nome ainda importante na lista dos mais vendidos em plena era do mp3, grande apoteose na Sapucaí no Carnaval 2011, ao ser o homenageado da escola de samba Beija Flor. E ainda por cima, pé quentíssimo: a escola foi a campeã deste ano. 

Acontece que Robertão não é o único nobre da MPB. Antes dele, outros mereceram semelhantes reverências, ainda que reinassem em estilos musicais distintos e por meio de veículos diferentes – se na primeira metade do século 20 não era o especial de fim de ano da TV Globo, era o rádio nosso de cada dia.

No entanto mais importante do que analisar as diferenças, é observar as semelhanças: de Ary Barroso e seu “hino nacional” extra-oficial Aquarela do Brasil, de 1939, a O Charme dos Seus Óculos, canção do Rei de 1995, sucesso popular que garantiu o cetro e a coroa a esses artistas.

Independentemente das análises dos intelectuais e das críticas especializadas de cada época, o povo e a canção popular vivem um histórico caso de amor. “O gosto popular é muito mais aberto, muito mais abrangente, não está preso aos critérios das elites culturais”, analisa o jornalista, historiador e pesquisador Paulo César Araújo, autor de Eu Não Sou Cachorro, Não (Record, 2005), que traça um paralelo entre a ditadura militar no Brasil e os cantores populares da década de 1970. “O povão escuta Cartola, Nelson Cavaquinho, Zeca Pagodinho e Waldick Soriano. Não há preconceito.”

Na opinião de Araújo, preconceito há, sim, entre o que ele chama de “elites culturais”. “Aquelas que escrevem os livros e as críticas nos jornais, que organizam museus, que fazem as enciclopédias”, afirma. Essas, ainda segundo o especialista, medem a qualidade do que ouvem por dois “elementos de valorização”: a identificação com as raízes da música brasileira (mais precisamente, o samba) ou com a vanguarda artística (o jazz ou a bossa nova), e a ligação com os movimentos de resistência política durante a ditadura militar. “Quem não se enquadra nisso não tem valor.”

Porém, como disse o próprio pesquisador, a maioria não obedece a essa cartilha. “A população não quer saber se a música está identificada com a tradição ou não. Essa é uma preocupação das elites”, completa.

Fascinação

Para o também historiador e pesquisador Jairo Severiano, autor de livros como Yes, Nós Temos Braguinha (Martins, 1987) e Uma História da Música Popular Brasileira (Editora 34, 2008), além da generosidade popular para com seus artistas, a qualidade das produções também pesa na balança da memória, explicando por que até hoje reconhecemos de cara – ou melhor, de ouvido – o inesquecível chorinho Carinhoso (1916/1917), de Pixinguinha, ou a marchinha Uma Andorinha Não Faz Verão, parceria de 1931 de João de Barro, o Braguinha, e Lamartine Babo. Sobretudo, quando falamos da “época de ouro” da música popular brasileira, conforme batizou o historiador Ary Vasconcelos se referindo à virada da década de 1920 para 1930.

“Para sorte da música brasileira surgiu, nessa época, uma excepcional geração de compositores, cantores e músicos em geral”, explica Severiano. “Uma conjugação verdadeiramente surpreendente de talentos, da qual fizeram parte figuras como Ary Barroso, Noel Rosa, Herivelto Martins e vários outros, que se misturaram inclusive com artistas que vinham da geração anterior, como Pixinguinha e Radamés Gnattali, os pais da orquestração na música brasileira.”

O mais brasileiro dos gêneros musicais, o samba, também contribuiu por ser um terreno fértil para o talento da trupe, que conseguia aliar simplicidade e sofisticação em suas composições. “O samba é, sem dúvida alguma, o ritmo brasileiro de maior importância, por conta do fascínio que ele desperta nas pessoas”, analisa o historiador. “A música é composta de harmonia, melodia e ritmo”, segue. “E o samba mistura melodia e harmonia de inspiração europeia com o ritmo de inspiração africana. Essa mescla, que também acontece na música do Caribe, é fascinante.”

Redescoberta

Paulo Cesar Araújo acrescenta que também fazem parte desse processo os momentos de resgate que, vez ou outra, seja por meio de livros, de filmes ou discos de tributo, servem para reacender a chama da música popular. “A elite lá dos anos de 1930 e 1940, por exemplo, menosprezava Carmem Miranda, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues e Luiz Gonzaga”, diz. “Porém, nos anos de 1960, nós já temos outra elite, com outro olhar. Essa elite, a partir do movimento da bossa nova, já vai ser mais generosa com a produção popular do passado.”

O historiador atenta ainda para o fato de que estaríamos vivendo um desses momentos de redescoberta. E os “resgatados”, na sua concepção, seriam os nomes populares de 40 anos atrás – entenda-se Agnaldo Timóteo e seu Amor Perdido, de 1974, Benito de Paula, com Retalhos de Cetim, de 1973, entre outras, Nelson Ned com a dramática Tudo Passará, de 1969.

“As pedras estão rolando”, afirma. “Não dá para identificar uma mudança, mas as coisas estão se movendo. O meu livro, por exemplo, revelou que aqueles artistas fizeram músicas de crítica social, o que fez mudar o olhar sobre eles, a impressão melhorou.” Araújo dá ainda o exemplo do CD Vou Tirar Você Desse Lugar: Tributo a Odair José, lançado em 2006, no qual nomes como Pato Fu, Mundo Livre S/A e Zeca Baleiro deram cara nova ao repertório do ?compositor de Uma Vida Só, de 1975. Ah, não se lembra? Eis o refrão: “Pare de tomar a pílula/Por que/ Ela não deixa/Nosso filho nascer?” Araújo conta que, na época, “muita gente” que ouviu o tributo foi elogiar as canções. “Disseram: ‘Paulo, tal música é boa!”’, relata ele. “E eu respondi: ‘Pois é, mudou o arranjo, mais moderno etc., mas a letra é a mesma’”.

Direto ao coração

Outro sinal de um novo fôlego para essa geração de 70 e sua produção promete ser o documentário Vou Tirar Você Desse Lugar, de Helena Tassara, doutora em cinema e pesquisadora do Laboratório de Pesquisas sobre Infância, Imaginário e Comunicação (Lapic) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP).

O projeto, ainda em fase de captação de recursos, está registrando imagens. “Estou filmando as coisas que vão acontecendo com esses artistas”, diz Helena, que já dirigiu os documentários de curta-metragem Era Uma Vez o Brasil (1995) e Frutas do Brasil – Bacuri, Graviola, Pitanga (1997). “Recentemente, filmei o Odair José, por exemplo, durante as gravações do último CD dele – depois de sete anos.

Fui também atrás da Cláudia, onde ela costuma fazer shows, no interior do Nordeste.” Outro momento de registros foi a série de shows Viva o Compositor Popular!, realizada pelo Sesc Pompeia (veja boxe Roda e avisa).

A cineasta adianta que uma coisa é certa sobre seu documentário: não há o menor interesse em “defender” os artistas da pecha de bregas. “Evito esse termo, não o uso nem para dizer por que eles não o são”, afirma. “Estou falando de artistas populares, por isso o projeto de shows chama-se Salve o Compositor Popular!”. A diretora diz ainda que o universo com o qual está lidando é amplo, formado por artistas com estilos muito diferentes.

“A gente tem sambistas, tem cantores de bolero, há os mais românticos, os mais pops. Então, não tenho um conjunto com uma unidade, uma identidade.” Sua matéria-prima, explica, é “um conjunto de artistas que ficou à margem da história da música brasileira, como se fossem artistas de menor valor.”

A diretora finaliza esclarecendo que pretende investigar o motivo de tanto sucesso daqueles nomes entre as camadas mais populares. Mesmo ainda distante de concluir o projeto, Helena já tem um palpite: “Eles falavam ao coração das pessoas”, analisa. “Falavam da vida delas, e num momento em que ninguém fazia isso. Então o documentário é uma maneira de trazer à tona essa crônica da vida social do Brasil nesse período, por meio de músicas que falavam ao coração e à vida da população brasileira.”

E, para finalizar com o Rei, vale lembrar que um dos trunfos de sua majestade sempre foi exatamente esse: saber o que dizer e a quem dizer. “Roberto Carlos foi cantor da classe média, da classe baixa, do povão, só não foi dos intelectuais”, conclui o pesquisador Paulo César Araújo, também autor da biografia não autorizada Roberto Carlos em Detalhes (Planeta, 2006), cuja venda foi proibida após uma ação movida pelo cantor. “Nesse livro, eu digo que ele sempre teve todo o Brasil com ele.”

Roda e avisa

Shows do projeto Salve o Compositor Popular! do Sesc Pompeia trazem ídolos populares

Uma viagem no tempo. Assim poderia ser descrita a série de shows realizada pelo Sesc Pompeia, nos dias 19, 20, 26 e 27 de março. Sob o nome de Salve o Compositor Popular!, as apresentações de Odair José, Cláudia Barroso e Agnaldo Timóteo, Vanusa e Benito de Paula, e Luiz Airão e Márcio Greyck foram dignas do título e do ponto de exclamação que o acompanha. Drama puro.

“Eu queria esses artistas um pouco fora do contexto no qual eles costumam trabalhar, gravar e cantar”, afirma Helena Tassara, doutora em cinema e pesquisadora do Laboratório de Pesquisas sobre Infância, Imaginário e Comunicação (Lapic) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). A ideia é que imagens dos shows façam parte do documentário Vou Tirar Você Desse Lugar, dirigido por Helena.

“Eu queria colocá-los num teatro, onde eles não costumam tocar, e em condições diferentes. Não é, claro, uma encenação, mas eu queria levar essas canções e esses cantores para um lugar com um pouco mais de controle, para eu poder mostrar a qualidade da produção deles.” A direção musical foi de Zeca Baleiro, que cumpriu também o papel de mestre de cerimônias nos shows.