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O homem contemporâneo

Convidados pela Revista E, o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), e o professor adjunto do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Marcos T. Mercadante escrevem sobre as mudanças de condição, papel e comportamento do homem no século 21. Em artigos exclusivos, os estudiosos repassam a história e a evolução dos gêneros ao longo dos séculos e analisam, entre outras questões, a relação entre homens e mulheres no mundo de hoje, alicerçada em bases novas por conta da emancipação do um dia chamado sexo frágil.


O homem sem exemplos

por Renato Janine Ribeiro

Muito se tem discutido, nos últimos anos, a crise do papel masculino. Este ano completa 60 anos O Segundo Sexo, o livro em que Simone de Beauvoir fez um ataque em regra ao papel submisso que era o da mulher, desmontando os mitos em que se fundava. Nos tempos que se seguiram, a afirmação do lugar da mulher não deu muito espaço para se debater bem de que modo ela fazia o homem entrar em crise. Mas, de dez anos para cá, esse tem sido assunto frequente.

Se a crise da condição masculina foi assim um efeito retardado da mudança na condição da mulher, ela também é sinal de que a emancipação feminina avançou. A militância feminista ou feminina precisava convencer, conquistar, mudar. Os homens se sentem, diante dela, precisando adaptar-se, adequar-se. São duas formas de mudança. Um papel não muda sem o outro. Mas, enquanto a mudança feminina é propositiva e ocupa novos espaços, a mudança masculina é tímida, na defensiva, sem saber se defende espaços, se os cede, se os cria.

Daí que, se é legítimo hoje um movimento feminista, já uma ação machista ou mesmo “masculinista” soaria estranha, para dizer o mínimo – da mesma forma que são legitimadas social e politicamente propostas que vêm dos negros, dos homossexuais, dos indígenas, mas dificilmente o seriam iniciativas em nome dos brancos, dos heterossexuais e dos não-índios. Esse recorte entre movimentos que têm maior legitimidade junto à opinião pública (mesmo que se defrontem com oposição) e outros que não a têm acentua o mal-estar na masculinidade.

Por outro lado, não dá para dizer que os três movimentos de reivindicação de direitos à diferença (no Sul, Sudeste e Nordeste), ou quatro (incluindo os índios, na Amazônia e partes do Centro-Oeste), desenhem todos um mesmo modelo em face da sociedade. Negros e indígenas não pertencem, geralmente, à mesma classe social que seus “outros”. Já os homossexuais podem estar em qualquer família. E as mulheres, por definição, convivem e geralmente até se casam com homens. Então, os conflitos ou dissensos são de natureza diferente. O preconceito contra o negro pode ser mais difícil de vencer, mas ele também pode ser mais fácil de ignorar. No caso de mulheres e homens, porém, o conflito e a necessidade de mudança estão em cada casa. Interpelam marido e mulher, irmão e irmã, pai e filhas, mãe e filhos. Talvez por isso, das mudanças a que aludi, seja a mais radical.

Cornelius Castoriadis dizia que a maior revolução do século 20 – feita sem manifesto, sem comitê central, sem luta armada – foi a feminina. Ela é a mudança universal, por excelência, na condição humana.

Lembro uma história de que participei, como ouvinte e narrador. Conheci uma professora que, paulistana, mudou para uma cidade bem do interior, com o marido. Os dois estavam muito isolados lá. O marido fez um amigo que, infelizmente, era muito machista. Um dia, recebendo-o em casa e depois de ouvir pela enésima vez do amigo (do marido) que mulheres eram inferiores, ela esperou que ele fosse embora e falou ao marido: “Ele nunca mais pisa em casa. Não me respeita, não o recebo”. Ela tinha formação para sentir-se mal com as agressões do machista, mas precisou de coragem para, sozinha, enfrentar o machismo. E certamente foi difícil para ela tomar uma atitude que afastava o marido do único amigo que fizera na cidadezinha. O que quero dizer: ela captou o ar do tempo.

Há algo, hoje, que passa de maneira fluida, até na TV, e mobiliza comportamentos de pessoas que nem se conhecem.

A história não termina aí. Poucos anos depois, fui convidado a falar num congresso de políticas (no sentido de mulheres que fazem política) paranaenses. Logo antes de eu falar, uma vereadora da fronteira do Paraguai mandou uma carta à mesa. Dizia que exercia o mandato havia dez meses e que, toda vez que ia falar, seus colegas de Câmara lhe davam as costas e começavam a rir. Contou que, antes de ir a Curitiba, disse ao marido que era o último compromisso político. Voltando, ia renunciar. Mas, ao ver tantas mulheres unidas, de tudo o que era partido, ela mudara de ideia. Ia lutar. Foi aplaudidíssima. Então, quando comecei a falar, contei a história de minha amiga. E ela, sem o saber, a mais de mil quilômetros de distância, recebeu uma ovação das políticas paranaenses.

Essas histórias mostram que para as mulheres se tornou possível, desde um certo momento, fortalecer-se com textos que leem (uma minoria, que vai a Simone de Beauvoir) ou histórias que conhecem (TV, rádio, conversas e até congressos). Era, já antes da internet, uma ideia de rede. Não há isso para os homens. Não temos um estoque de obras teóricas ou de narrativas vividas para nos orientar. Nossa mudança de comportamento é minoritária. O que era da condição feminina – o silêncio a seu respeito, a falta de exemplos, o vazio – hoje se aplica à condição dos homens. Isso precisa mudar.

Mas há outro ponto importante. Quando o conflito diz respeito a negros ou indígenas, ele é geralmente exterior à casa e isso lhe confere, de imediato, caráter social. Também lhe dá um sentido mais agudo de conflito. No caso de homens e mulheres, o convívio existe na própria casa. Inclusive os homossexuais convivem, ainda que não sexualmente, com pessoas do outro sexo. Ou seja, se o conflito pode ser mais íntimo e inescapável, por outro lado a cooperação é imprescindível. É um conflito que precisa ter final feliz. Na verdade, a opressão sobre as mulheres também tornava a vida masculina incompleta. Mulheres mais realizadas deverão ser companheiras melhores. Isso não ocorre de imediato, mas faz sentido. Como pode uma pessoa ser feliz à custa da infelicidade da pessoa que lhe é a mais próxima no mundo? Essa felicidade é genuína ou mera aparência?

Isso não é fácil, de todo modo. Porque a igualdade dos sexos significa que ali, onde um decidia a vida pública e outra conduzia a vida privada, hoje os dois deliberam sobre os dois âmbitos, sobre a rua e a casa. Nem sempre chegam a acordo. Casais que se amam podem se separar, se seus projetos de vida divergem. Aprender a conviver com essas diferenças é tarefa de muito longo prazo – talvez, de gerações. Parte da dificuldade está em continuarmos acreditando que o amor é paixão. O amor apaixonado não aguenta as negociações que a diferença impõe. Para aceitá-las, precisa haver amor de verdade – aquele que passou pela decepção, que viu as rugas no rosto e as rugosidades da alma, mas mesmo assim ainda ama. No fim das contas, devo dizer que sou otimista. Acredito que ganharemos todos com essas mudanças.

“Enquanto a mudança feminina é propositiva e ocupa novos espaços, a mudança masculina é tímida, na defensiva, sem saber se defende espaços, se os cede, se os cria”



Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo (USP)

 

O homem ultramoderno

por Marcos T. Mercadante


Para a ciência, o homem “moderno” (Homo sapiens) é bem antigo, tendo surgido possivelmente há mais de 100 mil anos. Existem evidências de que esse homem moderno teria convivido com outro tipo de homem, o Neandertal (o famoso homem das cavernas). O tempo passou e o homem das cavernas desapareceu, sobramos nós. Por que esses homens das cavernas sumiram? Eles eram muito mais adaptados ao ambiente em que viviam. Entre as várias hipóteses, uma é intrigante. A mulher das cavernas, parece, já era feminista, e não aceitava ser excluída das atividades do grupo; realizando as mesmas atividades que os homens, por exemplo a caça. Essa atividade era muito mais perigosa, pois exigia uma proximidade com as presas (que falta fazia arma de fogo, ou mesmo arco e flecha), e não raro os caçadores acabavam mortos. Admite-se que essa falta de especialização de tarefas fez com que morressem tantas mulheres quantos homens das cavernas. Para a sobrevivência de um grupo, mulheres férteis são preciosas (um homem ?com cinco mulheres pode ter cinco filhos, uma mulher com cinco homens só terá um filho...). Talvez por isso, tenham desaparecido! Por outro lado, nossos antepassados desde cedo dividiram os papéis, homens iam à caça, mulheres coletavam frutos e raízes. Com isso, as taxas de mortalidade entre homens e mulheres sempre foram diferentes, e nos multiplicamos.

Milhares de anos e milhares de mudanças fizeram com que os cérebros femininos ficassem cada vez mais diferentes dos masculinos. No geral, mulheres têm preferencialmente comportamento afiliativo, isto é, tendem a ter como prioridade a criação dos filhos. Esse comportamento está mais relacionado, em termos evolutivos, à porção mais recente do cérebro (neocortex). Por outro lado, homens têm preferencialmente comportamento competitivo e combativo, comportamentos mais relacionados às unidades subcorticais (mais primitivas). Mulheres foram se especializando, isto é, melhorando suas habilidades para comunicação, tarefas sociais, gerenciamento do grupo. Homens foram melhorando suas capacidades de orientação espacial, solução de problemas do mundo físico, tornando-se mais hábeis para explorar o ambiente e para caçar. Se por um lado essas especializações parecem ter trazido uma série de vantagens para a raça humana, por outro, como toda especialização, implicaram limitações. Os caçadores não eram tão livres, e desde o princípio perseguiam (ou seguiam) as mulheres, a elas estavam presos, e procuravam conquistá-las.

Esse padrão é tão conservado que vem se repetindo, com raríssimas exceções, geração após geração nas diferentes culturas do homem moderno. Mas e os últimos anos? Como está o nosso homem-ultramoderno? Caçar só no PSP, orientação espacial por GPS, comunicar-se por SMS, casar pela WEB... O ambiente, sem dúvida, mudou.

Muito tempo foi necessário para que nossa espécie se especializasse cada vez mais baseada na distinção de tarefas entre homens e mulheres. Estaríamos hoje perdendo essa conquista evolutiva? Estaríamos sofrendo novas pressões evolutivas? Para onde iremos? Mulheres que sustentam a família, homens solteiros adotando e criando filhos, mulheres independentes e em posição de liderança, casais homossexuais, residências automatizadas, comidas pré-preparadas, um esvaziamento das tarefas domésticas, uma equiparação de papéis, uma aproximação dos Neandertais?

Predizer o futuro é tarefa ingrata, se não impossível; porém, procurar reflexões acerca das possibilidades futuras pode ser um bom exercício. É interessante que a maioria das previsões sobre o futuro da humanidade e da Terra tendem a ser catastróficas, ou, ao menos, pessimistas. Guerra fria, bomba de hidrogênio, camada de ozônio, efeito estufa, explosão demográfica, bebê de proveta, aids, colesterol etc. etc., nosso mundo sempre prestes a terminar. No entanto, se olharmos nossa história dos últimos 10 mil anos, as coisas só têm melhorado! Basta compararmos como era a vida para a maioria da população há 100 anos e como é hoje. Na média, hoje se vive mais e melhor, come-se mais e melhor. Por lógica, tudo indica que não precisamos nos desesperar com as mudanças nos padrões de comportamentos. Assim, podemos ficar mais confortáveis com nossas escolhas, que não implicarão o fim do mundo.

Sem dúvida, é tentador admitir que as escolhas que temos feito ou apenas observado terão um enorme impacto nas gerações futuras. Num certo sentido, é até prazeroso imaginar que o futuro estaria em nossas mãos. Mas a história demonstra que não é bem assim. O número de variáveis é incontrolável, e a solução final não depende daquilo que podemos detectar e muito menos controlar... Um exemplo fantástico que a história nos mostra é de uma previsão francesa do início do século 19 segundo a qual, devido ao crescimento da utilização de cavalos em Paris, essa cidade estaria submersa a um metro e meio de estrume de cavalo no final daquele século. À época não era possível prever o surgimento do automóvel, que ocorreu ao final daquele século. Nessa mesma linha, não devemos nos expor; porém, é interessante conjecturar que as mudanças de comportamento que observamos no homem ultramoderno influenciam o ambiente e acabam exercendo novas pressões evolutivas sobre a raça humana.

O mundo informatizado, a disseminação da informação, a internet e os computadores têm participado desse novo cenário. Hoje é possível que uma criança de 10 anos ensine ao pai algo no computador ou no manuseio da internet que poderá ajudá-lo no trabalho. O homem ultramoderno não é mais o soberano da família e com todos tem que dividir o poder. O milenar equilíbrio dos papéis familiares, em que os pais detêm todos os poderes, começa a ser abalado. Mas o futuro não está escrito; é possível que essas modificações nos façam mais vulneráveis e menos adaptados e fadados ao desaparecimento ou, por outro lado, que essas novas adaptações possam nos colocar em melhor situação. Cérebros mais potentes, com maiores habilidades para a compreensão do mundo virtual, unidades de agrupamento mais flexíveis, maior extensão de alianças entre grupos, maior aproximação entre os gêneros, menor intolerância às diferenças podem ser resultantes favorecedoras à nossa sobrevivência como espécie.

É fato que a especialização hoje está na capacidade de compreender um mundo globalizado, ter a habilidade de intuir sobre influências de múltiplas variáveis, ter habilidade de comunicação, e muita, muita flexibilidade. Sobreviver hoje é muito mais fácil que em qualquer outra época, porém sobressair está cada vez mais difícil. Essas parecem ser as novas regras que precisam ser seguidas para a adaptação. Em si, não parecem ruins, e, no geral, parecem ser bem adequadas ao nosso homem ultramoderno, que, afinal, ao que parece, não tem quase nenhuma semelhança comportamental com nosso extinto competidor.

“O homem ultramoderno não é mais o soberano da família e com todos tem que dividir o poder. O milenar equilíbrio dos papéis familiares, em que os pais detêm todos os poderes, começa a ser abalado”



Marcos T. Mercadante é professor adjunto do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)