Postado em 01/10/2009
O homem contemporâneo
Convidados pela Revista E, o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), e o professor adjunto do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina (EPM) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Marcos T. Mercadante escrevem sobre as mudanças de condição, papel e comportamento do homem no século 21. Em artigos exclusivos, os estudiosos repassam a história e a evolução dos gêneros ao longo dos séculos e analisam, entre outras questões, a relação entre homens e mulheres no mundo de hoje, alicerçada em bases novas por conta da emancipação do um dia chamado sexo frágil.
O homem sem exemplos
por Renato Janine Ribeiro
Muito se tem discutido, nos últimos anos, a crise do papel masculino. Este ano completa 60 anos O Segundo Sexo, o livro em que Simone de Beauvoir fez um ataque em regra ao papel submisso que era o da mulher, desmontando os mitos em que se fundava. Nos tempos que se seguiram, a afirmação do lugar da mulher não deu muito espaço para se debater bem de que modo ela fazia o homem entrar em crise. Mas, de dez anos para cá, esse tem sido assunto frequente.
Se a crise da condição masculina foi assim um efeito retardado da mudança na condição da mulher, ela também é sinal de que a emancipação feminina avançou. A militância feminista ou feminina precisava convencer, conquistar, mudar. Os homens se sentem, diante dela, precisando adaptar-se, adequar-se. São duas formas de mudança. Um papel não muda sem o outro. Mas, enquanto a mudança feminina é propositiva e ocupa novos espaços, a mudança masculina é tímida, na defensiva, sem saber se defende espaços, se os cede, se os cria.
Daí que, se é legítimo hoje um movimento feminista, já uma ação machista ou mesmo “masculinista” soaria estranha, para dizer o mínimo – da mesma forma que são legitimadas social e politicamente propostas que vêm dos negros, dos homossexuais, dos indígenas, mas dificilmente o seriam iniciativas em nome dos brancos, dos heterossexuais e dos não-índios. Esse recorte entre movimentos que têm maior legitimidade junto à opinião pública (mesmo que se defrontem com oposição) e outros que não a têm acentua o mal-estar na masculinidade.
Por outro lado, não dá para dizer que os três movimentos de reivindicação de direitos à diferença (no Sul, Sudeste e Nordeste), ou quatro (incluindo os índios, na Amazônia e partes do Centro-Oeste), desenhem todos um mesmo modelo em face da sociedade. Negros e indígenas não pertencem, geralmente, à mesma classe social que seus “outros”. Já os homossexuais podem estar em qualquer família. E as mulheres, por definição, convivem e geralmente até se casam com homens. Então, os conflitos ou dissensos são de natureza diferente. O preconceito contra o negro pode ser mais difícil de vencer, mas ele também pode ser mais fácil de ignorar. No caso de mulheres e homens, porém, o conflito e a necessidade de mudança estão em cada casa. Interpelam marido e mulher, irmão e irmã, pai e filhas, mãe e filhos. Talvez por isso, das mudanças a que aludi, seja a mais radical.
Cornelius Castoriadis dizia que a maior revolução do século 20 – feita sem manifesto, sem comitê central, sem luta armada – foi a feminina. Ela é a mudança universal, por excelência, na condição humana.
Lembro uma história de que participei, como ouvinte e narrador. Conheci uma professora que, paulistana, mudou para uma cidade bem do interior, com o marido. Os dois estavam muito isolados lá. O marido fez um amigo que, infelizmente, era muito machista. Um dia, recebendo-o em casa e depois de ouvir pela enésima vez do amigo (do marido) que mulheres eram inferiores, ela esperou que ele fosse embora e falou ao marido: “Ele nunca mais pisa em casa. Não me respeita, não o recebo”. Ela tinha formação para sentir-se mal com as agressões do machista, mas precisou de coragem para, sozinha, enfrentar o machismo. E certamente foi difícil para ela tomar uma atitude que afastava o marido do único amigo que fizera na cidadezinha. O que quero dizer: ela captou o ar do tempo.
Há algo, hoje, que passa de maneira fluida, até na TV, e mobiliza comportamentos de pessoas que nem se conhecem.
A história não termina aí. Poucos anos depois, fui convidado a falar num congresso de políticas (no sentido de mulheres que fazem política) paranaenses. Logo antes de eu falar, uma vereadora da fronteira do Paraguai mandou uma carta à mesa. Dizia que exercia o mandato havia dez meses e que, toda vez que ia falar, seus colegas de Câmara lhe davam as costas e começavam a rir. Contou que, antes de ir a Curitiba, disse ao marido que era o último compromisso político. Voltando, ia renunciar. Mas, ao ver tantas mulheres unidas, de tudo o que era partido, ela mudara de ideia. Ia lutar. Foi aplaudidíssima. Então, quando comecei a falar, contei a história de minha amiga. E ela, sem o saber, a mais de mil quilômetros de distância, recebeu uma ovação das políticas paranaenses.
Essas histórias mostram que para as mulheres se tornou possível, desde um certo momento, fortalecer-se com textos que leem (uma minoria, que vai a Simone de Beauvoir) ou histórias que conhecem (TV, rádio, conversas e até congressos). Era, já antes da internet, uma ideia de rede. Não há isso para os homens. Não temos um estoque de obras teóricas ou de narrativas vividas para nos orientar. Nossa mudança de comportamento é minoritária. O que era da condição feminina – o silêncio a seu respeito, a falta de exemplos, o vazio – hoje se aplica à condição dos homens. Isso precisa mudar.
Mas há outro ponto importante. Quando o conflito diz respeito a negros ou indígenas, ele é geralmente exterior à casa e isso lhe confere, de imediato, caráter social. Também lhe dá um sentido mais agudo de conflito. No caso de homens e mulheres, o convívio existe na própria casa. Inclusive os homossexuais convivem, ainda que não sexualmente, com pessoas do outro sexo. Ou seja, se o conflito pode ser mais íntimo e inescapável, por outro lado a cooperação é imprescindível. É um conflito que precisa ter final feliz. Na verdade, a opressão sobre as mulheres também tornava a vida masculina incompleta. Mulheres mais realizadas deverão ser companheiras melhores. Isso não ocorre de imediato, mas faz sentido. Como pode uma pessoa ser feliz à custa da infelicidade da pessoa que lhe é a mais próxima no mundo? Essa felicidade é genuína ou mera aparência?
Isso não é fácil, de todo modo. Porque a igualdade dos sexos significa que ali, onde um decidia a vida pública e outra conduzia a vida privada, hoje os dois deliberam sobre os dois âmbitos, sobre a rua e a casa. Nem sempre chegam a acordo. Casais que se amam podem se separar, se seus projetos de vida divergem. Aprender a conviver com essas diferenças é tarefa de muito longo prazo – talvez, de gerações. Parte da dificuldade está em continuarmos acreditando que o amor é paixão. O amor apaixonado não aguenta as negociações que a diferença impõe. Para aceitá-las, precisa haver amor de verdade – aquele que passou pela decepção, que viu as rugas no rosto e as rugosidades da alma, mas mesmo assim ainda ama. No fim das contas, devo dizer que sou otimista. Acredito que ganharemos todos com essas mudanças.
“Enquanto a mudança feminina é propositiva e ocupa novos espaços, a mudança masculina é tímida, na defensiva, sem saber se defende espaços, se os cede, se os cria”
O homem ultramoderno
por Marcos T. Mercadante
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“O homem ultramoderno não é mais o soberano da família e com todos tem que dividir o poder. O milenar equilíbrio dos papéis familiares, em que os pais detêm todos os poderes, começa a ser abalado”