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Ficção Inédita

Presentes de Natal

por Nelson Albissú

Na tarde da véspera de Natal, a menininha veio do seu quarto e, à queima-roupa, perguntou a sua mãe:

– O pai tem amante?

Como se, de repente, tivesse enfiado o dedo em uma tomada, tomou um choque, perdeu o fôlego e sussurrou: “não!”. Só depois de respirar fundo foi capaz de complementar:

– Claro que não!
– Ah....

Totalmente desconsertada e já com dez milhões de minhocas pululantes na cabeça, questionou:

– Por que você me pergunta isso?
– Pra saber.

Nisso a empregada entrou na sala, indagando o que devia fazer.

– Descongela o peru!

Vendo a moça retornar à cozinha, avaliou a possibilidade do marido ser seu amante. Tratava-se de uma jovem bonita, corpo bem feito, simpática, modos finos, dormia na casa e, como diz o ditado, a ocasião faz o ladrão. A menina devia ter visto alguma coisa. Ia tirar isso a limpo, quando, ao julgar o comportamento do esposo acima de qualquer suspeita, rejeitou esse juízo. Em seguida, readmitiu a idéia, pois a filha não podia falar aquilo do nada. Se não flagrou a cena em casa, soube na rua. Também podia ser a secretária do marido. Mas essa era feia e...

 

– Mãe! – a menina chamou, resgatando-a daquele caos de suposições.
– Quê?
– A senhora tem certeza?
– Certeza de quê? – tentou a oportunidade de ouvir outra coisa. Mas era aquilo mesmo.
– Que o pai não tem amante.
– Que eu saiba ainda não – respondeu, sentindo-se a maior otária, pois até a filha já indagava aquilo jamais suspeitado por ela.  
– Então, a senhora não tem certeza?
– Certeza absoluta, minha filha, só seu pai pode ter. 
– Tá! – admitiu a menina saindo da presença da mãe que a chamou:
– Fernanda!
– Quê?

Embora seu desejo fosse de chacoalhar a filha, para ela vomitar o que sabia, tentou se acalmar:

– Por que você me pergunta isso, minha filha?
– Não posso perguntar?
– Sei lá!
– Não é pra eu perguntar tudo o que quero saber?
– É...
– Então, perguntei.
– Não entendo o motivo de você perguntar isso.
– Nada não.
– Como nada? – explodiu. – Você me faz uma pergunta dessa e depois me responde “nada não”.
– Não precisa estressar! A senhora não sabe, vou perguntar pro meu pai – revoltada, protestou a menina e, chorando, foi se trancar no quarto.

 

Ela tentou detê-la, mas a empregada a interrompeu:

– Faz trinta e cinco minutos que o peru tá no forno. O que faço agora?
– Faça como quiser! – respondeu com rispidez. Já não queria saber de mais nada, muito menos olhar para a moça. Precisava de uma resposta, de uma pista, de uma conclusão e foi bater com o nariz na porta fechada do quarto da filha.
– Fernanda!
– Quê?
– Abre essa porta!
– Não.
– Abre, Fernanda! 
– Não abro.

Abre. Não abro. A menina continuou trancada. Melhor assim, admitiu. Se a filha tivesse aberto, não saberia administrar a situação. Não conseguia nem controlar seu coração disparado e saltando pela boca. Odiando o marido, mergulhou o rosto entre as mãos e seus pensamentos desabaram sobre o inferno das possibilidades de ter sido traída. Com certeza, a menina devia ter ouvido ou visto algo, para estar perguntando a respeito. Crianças são sensíveis: captam coisas no ar. Não são como a vítima que é sempre a última a tomar conhecimento da infidelidade do cônjuge. 

Quando o esposo chegou de uma confraternização com os amigos e quis saber o motivo daquele bico maior do que o do peru queimado no forno, por descuido da empregada, ela berrou para ele ir perguntar à filha.
Sem abrir a boca, o marido obedeceu à ordem da sua mulher e seguiu para o quarto da menina, que lhe inquiriu de pronto:

– Pai, você tem amante?
– Eu?!
– É.
– Não!
– Tem certeza?
– Absoluta.
– Tem mesmo?
– Por que você está me perguntando isso?
– Porque quero que o senhor tenha uma amante.
– Quê?!
– É isso mesmo.
– Amante?!
– O senhor precisa ter uma amante.
– Por que vou ter uma amante?
– Porque eu quero.
– Não estou entendendo nada.
– O senhor não faz sempre o que eu quero?
– Você sabe o que é amante, Fernanda?
– Não.
– Então, por que você quer que eu tenha uma?
– Porque os pais das minhas amigas têm.
– Ah, é!?
– Sou a única da classe que o pai não tem amante – e chorou de tristeza nos braços do pai.
– Não chora, querida!
– Então, arrume uma amante. Vai ser meu presente de Natal – empolgou-se.

Ao ouvir toda a conversa atrás da porta, a esposa suspirou aliviada:

– Ufa! Tudo bem! Ganhei meu presente! Hoje, posso até cear peru queimado.



Nelson Albissú é autor, entre outros livros, de Avôs e Avós (Editora Cortez, 2005)