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O Mais Vendido
Meninas dos olhos dos mercados editorais do mundo, os best-sellers – termo em inglês que quer dizer algo como “os que mais vendem” – costumam ser alvo de polêmica e dividem opiniões entre o público e a crítica especializada. Enquanto alguns os defendem com o argumento do sucesso e do conseqüente poder de injetar dinheiro no segmento, outros questionam sua qualidade literária. A pergunta é: vende mais porque é melhor ou é melhor porque vende mais? Em artigos inéditos e exclusivos, o crítico literário e ficcionista Fábio Lucas e o doutor em literatura Welington Andrade buscam esclarecer esse impasse.
Os Best-Sellers e as Práticas Confortáveis de Leitura
por Welington Andrade
A alentada quantidade de best-sellers que o mercado editorial brasileiro despeja, sistematicamente, nas livrarias convida à reflexão sobre o papel da literatura em um país inculto e belo como o nosso.
Poucos são os leitores que podem fruir plenamente as experimentações literárias de maior envergadura produzidas por aqui, dadas as precárias condições socioculturais que, desde sempre, mantêm boa parte dos cidadãos brasileiros à margem de sua própria língua. Por isso, então, a grande acorrida aos best-sellers, por meio dos quais o leitor médio acredita estar sintonizado ao exótico mundo da leitura.
A rigor, o que convencionamos chamar de língua portuguesa constitui o conjunto de seis variedades discursivas formadas a partir do contraste entre as seguintes noções de base: falado/escrito, culto/inculto, formal/informal.
O primeiro par remete à especificidade de cada um desses códigos propriamente. Não falamos como escrevemos, tampouco escrevemos como falamos. (Por isso, querer impor ao código falado as características próprias do código escrito ou vice-versa não passa de grande tolice). O segundo par refere-se ao nível de complexidade do repertório cultural que o usuário da língua invoca ao ler e escrever, normalmente adquirido ao longo dos anos de formação escolar. Já o terceiro par alude às condições de tensão ou relaxamento existentes na situação de comunicação. Quando os interlocutores são pessoas alheias a nossa intimidade, por exemplo, tendemos a ser informais com eles, seja pela fala, seja pela escrita, assim como a presença de um chefe ou de um indivíduo desconhecido nos convida a falar ou a escrever com maior grau de formalidade.
O cruzamento dessas variáveis e a atenuação das diferenças específicas existentes entre elas fazem surgir uma norma intermediária, necessariamente conciliadora e eclética, que se transforma na língua da comunicação de massa, por excelência. Até aí, nada haveria de errado, não fosse o fato de a escola brasileira fracassar no ensino completo das seis variáveis, levando os alunos a ficarem aprisionados ao uso da norma média, a partir da qual, a rigor, nenhuma visão consistentemente crítica do mundo pode ser construída.
Assim é que chegamos a uma complexa questão ligada à política de ensino da língua. Se, por um lado, foi a norma média a responsável pela homogeneização lingüística de um país tão vasto como o Brasil, por outro, ela acabou por invadir a sala de aula, constituindo a língua do ensino, por excelência.
É a norma média que serve como meio de expressão de jornais e revistas, televisão, cinema, livros paradidáticos e best-sellers, por exemplo, convidando, com raríssimas exceções, nossos alunos a reproduzirem o mesmo padrão lingüístico, os mesmos clichês, a mesma forma banal e precária de encarar o mundo – o que mais tardiamente irá favorecer o surgimento de uma massa universitária semiqualificada e pouco exigente para o mercado de trabalho.
O meio editorial brasileiro, por sua vez, nada mais faz do que reclamar passivamente dessa situação, oferecendo como antídoto contra ela somente maciças doses de efeméride e espetáculo. Acomodados e pouco inventivos, os homens de negócio por detrás das grandes casas editoriais preferem vociferar contra a formação escolar deficiente do cidadão brasileiro, advertindo para a impossibilidade da ampliação de um público leitor proficiente e mais bem preparado. Por isso, editoras e livrarias (e também centros culturais, museus e até mesmo instituições formais de ensino) têm optado nos últimos anos por promover eventos literários destinados ao indivíduo-massa, um “sujeito faminto de uma leitura especular e espetacular” de acordo com a feliz definição do crítico e ensaísta Alfredo Bosi.
A fórmula do fracasso é bastante simples: formação educacional precária + política editorial indigente = consumo prioritário de best-sellers, que podem muito bem ser definidos como aquele tipo de literatura de apelo, composta por realismos brutos ou fantasias de superfície, cujo maior compromisso, em ambos os casos, é o de configurar inócuos divertimentos passageiros.
“A priori, não há nada a obstar contra os best-sellers. Eles são textos aprazíveis que contentam, preenchem e propiciam euforia” |
A priori, não há nada a obstar contra os best-sellers. Eles são textos aprazíveis que contentam, preenchem e propiciam euforia. Entretanto, por estarem ligados àquilo que o crítico e ensaísta francês Roland Barthes chamou de “práticas confortáveis de leitura”, os best-sellers acabam por não garantir ao leitor aquisições de maior fôlego, sejam elas de cunho histórico, cultural ou psicológico. A grande obra literária, ainda segundo Barthes, é um discurso inquieto que faz o leitor rever a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, levando-o a entrar em crise com o mundo da linguagem.
Somente por meio do contato com as linguagens críticas e de sua fruição – incluídas nelas a literatura, a ciência, a filosofia –, o leitor pode interagir de modo sofisticado com a tradição cultural e a memória social. Para o caso particular da literatura, a vida constitui objeto de busca e construção e a tensão eu/mundo se exprime de maneira ativa, levando o leitor a outras possibilidades que escapam ao discurso ideológico do indivíduo médio.
Podemos nos deliciar, sim, com a estrutura invariavelmente melodramática que sustenta os livros-reportagens de cunho histórico (a verdadeira coqueluche dos tempos modernos), os relatos biográficos que mal disfarçam o tom edificante e moralizador ou os manuais de auto-ajuda apresentados sob o disfarce da filosofia mais barata. Mas, a rigor, não adquirimos nada com eles que não esteja ligado a um objetivo meramente cronológico: passar o tempo e se distrair (etimologicamente, dis-trahere, “puxar para o outro lado”).
Algum problema nisso? A priori, não, mas o serviço que eles prestam é muito precário, dada a grande defasagem sociocultural presente nos mais diversos cenários da vida brasileira. Os jornais, as revistas, os programas de televisão, os filmes, os livros paradidáticos e os best-sellers constantemente trocam o escrito pela falado, o culto pelo inculto, o formal pelo informal, ajudando, sob o pretexto de instituir uma comunicação instantânea e agradável, a reforçar estereótipos e a difundir obscurantismo e imprecisão travestidos de informação imediata.
Ao leitor realmente disposto a um confronto com o mundo da linguagem cabem as formas lidas em Homero, Cervantes, Shakespeare, Brecht, Dostoievski, Proust, Pirandello, Machado, Guimarães, Clarice, Drummond..., autores cujas obras encarnam a tensão fecunda entre criação e tradição, sem a qual o imediato e o agradável sempre são vazios de sentido.
Por essa razão, talvez, o grande desafio das futuras gerações de leitores resida na idéia de que elas precisam ser suficientemente proficientes em conhecimentos de língua, literatura e cultura para a satisfatória fruição de obras complexas que ultrapassam em muito o terreno das saciedades especulares e espetaculares.
Cabe aos novos leitores brasileiros do século XXI, então, entrar em contato vertical com as grandes obras, explorando suas possibilidades literárias, filosóficas, éticas e políticas. Afinal, os autores de prestígio aliam uma dimensão estilística bastante particular a uma vibração espiritual irrepetível – o que leva muitos críticos a declararem que obras feitas de papel e tinta, imaginação e observação também fazem um país.
A Doutrinação do Best-Seller
por Fábio Lucas
A consagração do best-seller e de seus componentes na história da produção e circulação do livro constitui fenômeno específico da indústria cultural. É que parte do consumo de obras literárias se surpreende orientada pelo espírito de demonstração, imitativo das decisões supostamente superiores, que a cultura de massa introduziu nas decisões do leitor comum. Desse modo, em vez de o comprador de livros sugerir-se pela crítica literária, prefere motivar-se de acordo com a lista das obras momentaneamente mais vendidas.
O best-seller destronou o crítico e o expulsou dos meios de comunicação de massa, substituindo-o pelos dispositivos medidores do mercado. Tem-se, portanto, a sutil confusão da qualidade com a quantidade. Para empregarmos o jargão da Ciência da Economia, diríamos que o valor de uso da obra literária se viu superado pelo valor de troca.
A escolha do leitor encaminhou-se paulatinamente para a reação mais instintiva: aquela que, de forma resumida, atende mais rapidamente ao prazer da leitura. Fala-se de literatura descartável. Lembro-me, a propósito, de minha temporada nos EUA, quando a faxina dos hotéis recolhia dezenas de obras jogadas no lixo pelos leitores consumistas.
O best-seller vem a ser parcela do que se consagrou como literatura trivial. Se o leitor brasileiro reparar nos chamados suplementos culturais e compará-los com os suplementos literários dos anos de 1940, 1950 e 1960 do século passado, notará de imediato como a literatura perdeu sua aura. Todos os jornais de maior circulação ofereciam ao leitor um suplemento literário semanal; cada suplemento se orgulhava de manter um rodapé de crítica. Além do mais, a imprensa diária oferecia uma coluna só de notícias de livros.
Hoje, nos suplementos culturais da grande imprensa, a literatura se perde em meio de notícias de ídolos da TV, do esporte e da música popular. Das Letras, o que predomina são notícias de autores estrangeiros, sumários de press release, de preferência estadunidense, de tal modo que o autor brasileiro, ali, se tornou exceção.
“No caso do best-seller, só se retém, da literatura, o aspecto mercantil, o mais frágil e efêmero. O que faz durar a obra não será o apelo aos estereótipos, mas, ao contrário, a fuga do vulgar” |
Tudo isso, em grande parte, integra a indústria da cultura, que, por sua vez, dada a velocidade dos acontecimentos, consagra a literatura trivial, descartável. Para efeito de mercado, tornou-se importante que tudo o que se torna mercadoria tenha duração efêmera e guarde, desde o nascimento, o caráter de objeto sujeito a precoce obsolescência.
As vanguardas, em grande parte, observaram o espírito de evento comercial. Não foi outra a razão pela qual assimilaram a linguagem insinuante e frágil da publicidade, com seus trocadilhos, suas formas repetitivas, sua retórica exuberante, excessivamente visual e vazia.
Quando se nota a queda da aura do autor nacional, a substituição deste pelo estrangeiro, presumivelmente mais bem situado na escala de valores, quando o consumidor de livros aceita passivamente sua descaracterização e até mesmo sua despolitização, não há como ignorar o efeito global da colonização, que leva à bovina dependência cultural.
No caso do best-seller, só se retém, da literatura, o aspecto mercantil, o mais frágil e efêmero. O que faz durar a obra não será o apelo aos estereótipos, mas, ao contrário, a fuga do vulgar. A literatura é essencial para o questionamento da condição humana. É a mais intimista e, conseqüentemente, a mais subjetiva das artes. Por isso, é muito mais do que simples mercadoria.
A publicidade tende a sugerir o paraíso em cada objeto exposto à venda. A fim de seduzir o grande público, procura a falsa elitização da literatura. Impõe o cunho do trivial nas histórias em quadrinhos, nas fotonovelas, nas telenovelas, nas coleções cor-de-rosa, no desenho animado, eivados todos de luxo e preconceitos. Os best-sellers, em geral, formulam respostas de acomodação ao meio presumivelmente chique. No fundo, participam da doutrinação massificadora da inércia travestida de prazer. Não estimulam o sonho de mudança, nem induzem à ação criadora ou à investigação analítica. Sendo triviais na essência, não ajudam a consciência crítica para a ação transformadora. Inibem a arte considerada finalidade sem fim, não utilitária, resgatadora da condição humana.
Nem todo best-seller é necessariamente desprezível. Grandes obras podem gozar dos favores do mercado. Mas essa não é a lógica do mercado.