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O cenógrafo carioca Hélio Eichbauer fala dos amigos e dos projetos e dá a dica:
“um cenógrafo trabalha com a sua vivência”
 

 

Nascido no Rio de Janeiro, em 1941, ?Hélio Eichbauer encontrou o teatro cedo, na infância, vendo os fantoches conhecidos como guinhol, que, segundo ele, eram comuns no Rio naquela época. “Essa foi minha primeira relação de menino com o teatro”, revelou durante palestra no projeto Encontros Cenográficos, realizado no Sesc Consolação, em setembro. O segundo grande encontro se deu com Eichbauer já na faculdade de filosofia, nos primeiros anos da década de 1960. “Fui a uma exposição do [encenador tcheco] Josef Svoboda”, lembra. “Eu vi que queria estudar cenografia e realmente voltar ao teatro, ao teatro da infância. Essa caixa mágica e fantástica do teatro. Eu falei: ‘Eu quero esse mundo para mim!’”. Ele foi atrás desse mundo sonhado. Embarcou para Praga, capital da então Tchecoslováquia, atual República Tcheca, e foi atrás de conhecer o renomado cenógrafo.

Entre 1962 e 1966, Eichbauer foi aluno particular de Svoboda e, de volta ao Brasil – depois de uma temporada em Cuba –, ingressou no Teatro Oficina, trabalho do qual o ponto alto foi a cenografia para o espetáculo O Rei da Vela, peça escrita pelo modernista Oswald de Andrade. Todo aquele mundo fantástico europeu, cinza, ficou, de certa forma, colorido”, afirma. Durante o encontro no Sesc Consolação, Hélio Eichbauer conversou com os presentes sobre a relação com o teatro de Svoboda, sobre a amizade com Zé Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi no Oficina e sobre como põe sua “memória afetiva” a serviço de sua arte. A seguir trechos.

 

Aprendiz de um Mestre

Hélio Eichbauer, que participou do ciclo de palestras Encontros Cenográficos, no dia 1º de setembro

Quando eu ainda fazia filosofia [início dos anos de 1960], fui a uma exposição do [encenador tcheco] Josef Svoboda, que participou da Bienal de São Paulo de 1962. Eu vi que queria estudar cenografia e realmente voltar ao teatro, ao teatro da infância. Essa caixa mágica e fantástica do teatro. Eu falei: “Eu quero esse mundo para mim!”. Peguei um navio da marinha mercante brasileira, que levava café para a Itália, cruzei o Atlântico, entrei no Mediterrâneo, mar Adriático, Trieste, e fui para Praga, fui conhecer o Svoboda. Ele era diretor de três teatros magníficos, entre eles o teatro de Praga. Ele viu minhas pinturas e falou: vou fazer uma experiência com você.

Fui o primeiro aluno dele, tive esse privilégio, essa sorte grande de ser aluno de um gênio, era um grande cenógrafo, um nome mundial, e eu tive a sorte de ser aluno dele ainda em sua juventude, quando ele tinha 38, 39 anos.

Entrei no teatro nacional [da então Tchecoslováquia], trabalhei nos ateliês do teatro nacional, todos eles: carpintaria, marcenaria, serralheria, pintura de arte. Eu fui um aluno particular, era como o aprendiz de um mestre renascentista. Ele me instruía, me fez viajar, fui muitas vezes à Alemanha, França, Itália, eu não parava de estudar. Fui matriculado na Universidade de Praga, mas era aluno particular do Svoboda, não cursava a universidade, mas sim o ateliê dele. Pude ver as maiores maravilhas nesse começo dos anos de 1960, eu conheci grandes gênios, pessoas que sobreviveram à Segunda Guerra e ainda eram jovens, pessoas heróicas, grandes artistas, tive esse encantamento. Foi um aprendizado. Fiquei alguns anos na Europa e voltei para o Brasil.

 

O Rei da Vela

Nessa época em que estava estudando, três grandes artistas do Teatro Oficina foram visitar Praga, a caminho de Berlim: José Celso Martinez Corrêa, muito jovem; Fernando Peixoto; e Renato Borghi. Travei conhecimento com eles e fiquei muito amigo dessa tríade, a ponto de eles me convidarem para trabalhar aqui em São Paulo, no Teatro Oficina, quando voltasse ao Brasil. Foram para a Alemanha para conhecer as encenações do Svoboda, depois nos encontramos novamente num festival em Paris, e eles estavam novamente a caminho de Berlim. Eu, nessa época, freqüentava muito a Ópera de Berlim, na parte oriental da cidade. Pois bem, voltei ao Brasil, vim para São Paulo e ingressei no Teatro Oficina. Nessa época, o teatro tinha pegado fogo, então estavam fazendo uma retrospectiva para angariar fundos no teatro Cacilda Becker, e o Zé Celso me colocou em cena, com o Flávio Império [coreógrafo, diretor e autor de teatro], para fazer uma peça de Max Frisch chamada Andorra. Ele [Zé Celso] falou: “Se você vai entrar no Teatro Oficina, você tem que entrar em cena”. Aí eu tive minha primeira experiência de ator também, um elenco fantástico. Depois fomos para o Rio de Janeiro, o Flávio Império não quis ir, então eu montei o cenário dele lá. Eu era muito amigo do Flávio, tive grandes amigos na vida. Recebi um convite para ir para Cuba, para participar de um festival latino-americano de teatro promovido pela Casa das Américas. Fui para Cuba, em plena ditadura militar [brasileira] e fiquei lá um ano trabalhando.

Quando voltei para o Brasil, voltei para o Teatro Oficina e então fiz O Rei da Vela. O Zé Celso me chamou para fazer os cenários e a caracterização, objetos de cena, maquiagens. Fizemos a peça, um marco do teatro brasileiro, uma grande revolução do Oswald de Andrade [escritor modernista e autor do texto da peça]. Todo aquele mundo fantástico europeu, cinza [ao qual Eichbauer estava acostumado enquanto estudava com Svoboda] ficou, de certa forma, colorido. Passei de um filme preto e branco, cinza e prata, para um mundo tropicalista fantástico de cor, mas isso foi possível porque eu fiz O Rei da Vela “via” Cuba, que me devolveu o ritmo, a cor e a luz dos trópicos.

“Trabalho com memória afetiva. Essa é a vantagem de ser mais velho, você vai acumulando alegria, tristeza, mistério, perdas e momentos de grande satisfação e de grande felicidade”

Memória Afetiva

Trabalho com memória afetiva. Essa é a vantagem de ser mais velho, você vai acumulando alegria, tristeza, mistério, perdas e momentos de grande satisfação e de grande felicidade. Um cenógrafo trabalha com a sua vivência, com a sua memória, e transforma isso. Entrei em universidades, participei da 10ª Bienal [Internacional] de São Paulo, ganhei prêmio, fui para a Quadrienal de Praga e ganhei prêmio lá também, então minha vida era de muita alegria, fui muito premiado, tive essa sorte e lutei por isso também. Depois ingressei na Universidade Federal do Rio de Janeiro, fui professor e coordenador do curso de cenografia, nos anos de 1970, no Parque Laje, na escola de artes visuais dirigida por Rubens Gerchman. Vi o Masp [Museu de Artes de São Paulo] nascer, vi o Sesc Pompéia nascer – fui muito amigo de Lina Bo Bardi [arquiteta responsável pelo projeto da unidade]. Vi a Avenida Paulista cheia de casas ainda, o Teatro Oficina era em uma rua calma, pacata, cheia de pensões; durante os ensaios, íamos almoçar nas pensões. Depois fui professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro também, dei cursos livres, e agora tenho reunido umas pessoas para trabalhar no Teatro Poeira, da Marieta Severo, a convite do Aderbal Freire. A Marieta e a Andréa Beltrão me convidaram para dar uns cursos lá, este ano realizei o terceiro. Eu sempre começo meus trabalhos com uma sentença de um grande poeta russo chamado Vielimir Khliébnikov [1885-1922], talvez o maior poeta da invenção da vanguarda russa no início do século 20, que diz o seguinte: “A pátria da criação está situada no futuro. É de lá que procede o vento que nos manda os deuses do verbo”. Quando ele fala que a pátria da criação está situada no futuro e é de lá que vêm os ventos, é porque os grandes artistas do começo do século 20 acreditavam muito no futuro. Mas, na realidade, entre o futuro e o passado existe uma ponte muito sutil. Um vínculo muito especial nesses dois tempos.