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Bamba entre os Bambas


Pintor e compositor, Heitor dos Prazeres ajudou a escrever a história do samba brasileiro
 

Um bom ponto de partida para falar de Heitor dos Prazeres é saber que é dele, em parceria com Noel Rosa, a marchinha Pierrô Apaixonado (1936), obrigatória até hoje em qualquer baile de Carnaval. Dito isso, diversos outros fatos demonstram a importância do sambista para a história da música popular brasileira. “Heitor fez parte, junto com Donga, João da Baiana e Mauro de Almeida, entre outros, do time de compositores a quem se atribui a autoria de Pelo Telefone (1916), o primeiro samba registrado no Brasil”, revela a terapeuta musical Alba Lírio, que, junto com Heitor dos Prazeres Filho, escreveu a biografia Heitor dos Prazeres – Sua Arte e Seu Tempo (Novas Direções, 2003). No Carnaval de 1917, só se ouviram os versos “O Chefe da folia/Pelo telefone/Manda me avisar/Que com alegria/Não se questione para se brincar”, de Pelo Telefone, cujo manuscrito foi reencontrado recentemente no Projeto Inventário do Acervo Memória, na Divisão de Música e Arquivo Sonoro (Dimas), do Ministério da Cultura.

O samba teria sido composto no quintal da Tia Ciata, a famosa baiana que reunia em sua casa as mais diferentes estirpes da sociedade carioca. No domicílio, em frente à Praça Onze, no centro do Rio de Janeiro, cruzavam-se políticos influentes e músicos, como Pixinguinha e o próprio Heitor dos Prazeres, levado ao local desde os 12 anos pelo tio Hilário Jovino. Ali o samba nasceu e, na primeira metade do século 20, foram “gestadas”, além de Pierrô Apaixonado, outras famosas marchinhas, como Mamãe Eu Quero (1937), de Jararaca e Vicente Paiva.

Os bares da Lapa e da Praça Onze, nas décadas de 1930 e 1940, tornaram-se ponto de encontro para beber, fazer música e cair na vida – não necessariamente nessa ordem. Faziam parte da turma Heitor, Noel, Ismael Silva, Cartola e tantos outros que participaram da fundação das escolas de samba do Rio. “Nesta época, formavam-se nos bares nos arredores da Praça Onze e da Lapa os primeiros grupamentos de samba, que deram origem ao que hoje são as escolas de samba”, explica o filho do compositor, Heitorzinho dos Prazeres. Foi assim que Heitor e amigos participaram, por exemplo, da fundação da Estação Primeira de Mangueira e do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, cujas cores azul e branco foram escolhidas pelo sambista.


Muitos Amores, Sambas e Filhos

Heitor dos Prazeres nasceu em 1898, na Praça Onze, filho da costureira Celestina Gonçalves Martins e do marceneiro Eduardo Alexandre dos Prazeres, que também trabalhava como músico na banda da Guarda Nacional.

Aos 7 anos, Heitor perdeu o pai e começou a se aproximar do tio, Hilário Jovino, modelo de compositor para ele ao longo da vida, e que o presenteou com seu primeiro cavaquinho.

A partir de meados da década de 1920, o jovem conheceu a popularidade. Foi quando compôs Estás Farto da Minha Vida (1926) e Deixaste Meu Lar (1930), ambas gravadas por Francisco Alves, intérprete da linha de frente do cenário musical brasileiro da época. “Junto com Chico Alves, Paulo da Portela, João da Gente e Herivelto Martins passaram a ser seus parceiros mais próximos”, afirma o filho do sambista. 

O companheirismo na música e na boemia também tinha reveses. Em 1927, deu-se a famosa polêmica entre Heitor dos Prazeres e outro célebre compositor, Sinhô. A confusão começou depois de Heitor saber que Cassino Maxixe (1927), sucesso na voz de Francisco Alves, estava sendo atribuída somente a Sinhô. Chateado, foi brigar pela inclusão do seu nome na autoria da canção. Ao que, segundo afirma Heitorzinho no site que mantém em homenagem ao pai (www.heitordosprazeres.com.br), Sinhô teria respondido: “Samba é como passarinho, a gente pega no ar”. E assim começou um tremendo qüiproquó que rendeu mais e mais sambas. Heitor escreveu Olha ele, Cuidado (1933) e recebeu como resposta Segura o Boi (1933). Por fim, de acordo com Heitorzinho, o pai conseguiu chamar a atenção para a co-autoria da música, mas nunca recebeu indenização por seus direitos autorais.

Em 1931, Heitor dos Prazeres casou-se com Glória, com quem viveu até 1936, ano da morte dela. Do primeiro casamento nasceram Ivete, Iriete e Ionete Maria. No fim da década de 1930, ocorreu a união com Nativa Paiva, com quem teve dois filhos, Idrolete e Heitorzinho. Além desses cinco filhos, o compositor teve mais duas: Dirce, com uma moça que ele conhecera em São Paulo. E Laura, a filha mais velha, fruto de uma relação com Tia Carlinda, uma de suas musas, e inspiração para algumas composições.

O temperamento passional foi marcante na obra de Heitor, a começar pelos temas de suas canções – separações, amores arrebatadores e muita desilusão amorosa. Além de Deixaste Meu Lar e Estás Farto da Minha Vida, seu repertório é recheado por títulos que não deixam dúvida da veia dramática: Depois da Nossa Separação (1939), Depois que te Abandonei (1940), Bate, Meu bem, Me bate (1946) são alguns deles. “Um tema recorrente das canções é o abandono pela amada”, diz Letícia Coura, do grupo Revista do Samba, que interpretou músicas de Heitor em show no Sesc Campinas (veja boxe Produto interno – nada – bruto).


Talento para a Pintura

A dor pela morte de sua primeira esposa, em 1936, foi um dos combustíveis para a dedicação à pintura. Um talento revelado cedo, quando ele criou uma série de desenhos inspirados pela canção Pierrô Apaixonado.

Naquela época, ele era presença constante nas emissoras de rádio do Rio de Janeiro e no Cassino da Urca, onde trabalhava com Grande Otelo e Josephine Backer. “Músico, poeta, artista plástico, coreógrafo, figurinista. Tudo que ele fez foi autêntico”, afirma Beto Bianchi, também integrante do Revista do Samba. Heitor dos Prazeres passou a participar de mostras no Brasil e no exterior no início dos anos de 1940. Uma delas foi a exposição da Royal Air Force, a força aérea britânica, em benefício das vítimas da Segunda Guerra Mundial. Na ocasião Heitor vendeu a tela Festa de São João à rainha Elizabeth II. O reconhecimento viria com a participação na I Bienal de Arte Moderna, em 1951 (veja boxe Eles também pintam e sambam).

Além de ser sambista e pintor, Heitor dos Prazeres chamou a atenção pela elegância nos trajes – hábito mantido até a morte, em 1966. “Ele foi o primeiro negro a entrar para o time dos considerados mais elegantes do Brasil.

Era um bamba no meio dos bambas”, diz o músico Beto Bianchi. A fina estampa e a atenção dos turistas estrangeiros que atraía com os shows no Cassino da Urca renderam-lhe uma parceria improvável: um trabalho com o cineasta norte-americano Orson Welles, que o contratou para arregimentar os figurantes do filme Samba e Carnaval (1942).


Produto interno – nada – bruto
Projeto no Sesc Campinas homenageia o samba de Heitor dos Prazeres e de outros mestres
 

Já é tradição. Todo domingo, há quatro anos, no Sesc Campinas, diversos ritmos populares brasileiros dão o tom na unidade. É o Sombalanço, um hit da programação. Em novembro, o projeto homenageou o samba. A idéia era apresentar repertórios de grandes sambistas mortos que deixaram um importante legado para o cenário musical brasileiro. Os shows aconteceram entre os dias 2 e 30 de novembro. “Partindo do pressuposto de que a saudade é o que fica, não teria por que não evidenciar a saudade de um ponto de vista positivo e alegre”, afirma Maurício Ricci, técnico da unidade, referindo-se ao fato de o projeto ter início bem no Dia de Finados. “Além disso, mesmo que em lamento, o samba acaba por libertar da angústia e da dor.” Além de Heitor dos Prazeres, foram homenageados Noel Rosa, João Nogueira e Adoniran Barbosa. A escolha dos grupos que subiriam ao palco para interpretar os sucessos dos bambas seguiu o critério mais lógico, o da afinidade com as obras. Para cantar Heitor dos Prazeres, o Sesc Campinas convidou o Revista do Samba (foto), grupo que também faz trilhas para teatro e dança – graças à forte ligação com o Teatro Oficina. O técnico da unidade justifica a escolha dizendo que o Revista é formado por “artistas múltiplos como Heitor dos Prazeres, que se destacou também nas artes plásticas”. Letícia Coura, cantora e terapeuta musical que forma o Revista juntamente com os músicos Beto Bianchi e Heitor da Trindade resume a importância da iniciativa: “É sempre um presente [interpretar canções de Heitor]. Conhecemos um repertório maravilhoso e que fica escondido nas bibliotecas e em discotecas particulares. Agora novamente temos a chance de contribuir para mostrar uma obra tão especial, que nos dá tantos prazeres”. Sobre o repertório do show Beto Bianchi destaca as composições menos conhecidas. “Suas canções merecem ser relembradas e divulgadas.”


 


Eles também pintam e sambam
Um grupo de músicos juntou cor à cadência do pandeiro e do cavaquinho
 

Embora tenha sido pioneiro, Heitor dos Prazeres não foi o único a unir partituras a telas. Na década de 1980, outros sambistas-artistas plásticos chegaram até a se juntar para uma ação coletiva, parte do projeto Sambistas Pintores. Na época, reuniram-se Nelson Sargento, Wanderley Caramba, Heitor dos Prazeres Filho, Sérgio Vidal, Fumaça e Guilherme de Brito. “Eles tinham o hábito de expor suas obras durante as apresentações”, explica Leonardo Pirovano, cineasta e diretor de comunicação da Casa do Artista Plástico Afro-brasileiro (Capa). O Capa organizou no Centro Cultural Cartola (CCC), no Rio de Janeiro, a exposição Pintores Sambistas, que esteve em cartaz de junho a outubro deste ano. O evento provou que samba e pintura se encontram com mais freqüência do que se pode imaginar. Desta vez foram nomes como Mestre Saul, Sinésio Brandão, Rui B. Silva (foto), Gina Barcelos, Oton Teixeira e Jorginho Bahia que mostraram trabalhos.
Atualmente, parte da exposição está no Espaço Batucadas Brasileiras, também no Rio de Janeiro, uma galeria do Capa. “A música e a pintura são expressões artísticas gêmeas, como se fossem elos inseparáveis com o mesmo DNA”, define Heitor dos Prazeres Filho. “O samba, como poesia, para além do ritmo, se apresenta quase sempre como crônica de costumes do cotidiano”, analisa Pirovano. “É esse mesmo cotidiano que também se apresenta nas telas desses artistas”. Segundo ele, muitos dos sambistas pintores afirmam que compõem os sambas enquanto pintam. “Suas temáticas invariavelmente se cruzam. As cenas do Carnaval, por exemplo, são comuns na pintura deles.”