ZONA
FANTASMA
por
Teixeira Coelho

Meses depois dos graves acontecimentos de abertura do século
21, num janeiro, recolhi-me a uma pequena cidade do norte da Itália,
passagem para a Suíça, à beira de um grande lago,
para escrever um livro e discutir, em grupo, sobre um mesmo tema, nada
óbvio: As chances da democracia no século 21. Recolhi-me
é modo de dizer, em ocasiões assim acontece o contrário:
uma ampliação, a esfera de presença do ser se amplia,
como queria Montesquieu. Não escrevi o livro, o grupo não
se reuniu e, portanto, não se definiu o projeto que daria uma
resposta à pergunta contida naquele tema. Mas essa é outra
história.
Fui o primeiro a chegar à imensa villa onde passaria duas semanas
(deveriam ser oito, mas tudo seria abreviado). O primeiro hóspede,
essa era a palavra oficial. Estava sozinho na mansão do século
16. Eu, os empregados e a governanta que, no século 21, chama-se
gerente. Com eles, mas sozinho. À noite, depois do jantar, nem
meus passos eu ouvia sobre o tapete da Galeria dos Espelhos, iluminada
por candelabros que poderiam ter sido de velas mas eram, agora, elétricos.
Da janela do apartamento que me designaram eu via toda manhã,
cercados pelas montanhas juntas como se fossem uma só, os dois
lagos ou as duas partes do mesmo lago naquele ponto separadas por um
braço de terra porém unidas mais à frente e que
têm dois nomes apenas para atender à sensibilidade regionalista
dos escassos habitantes de cada uma. Pela manhã, a fantástica
imagem das águas calmas cercadas pelas imensas montanhas nevadas
permanecia longo tempo imersa em densa neblina. Não era ano de
inverno forte, com este aquecimento progressivo do planeta: as baixas
temperaturas não impediam manhãs de sol límpido
depois da bruma inicial.
A cidade, deserta. Cidade de veraneio - veraneio do norte da Itália,
enfim. Velhos e grande hotéis - os Grand Hôtel, como nos
romances de Thomas Mann - que só lotam no verão e onde
as pessoas passam o tempo caminhando, conversando e lendo, como no século
19. No inverno, fechados. A cidade são duas ruas paralelas, uma
no nível da água, outra vários metros acima, aberta
na encosta. Uma só rua, de fato, que passa junto à água,
sobe pela encosta, faz uma curva à direita e transforma-se na
rua de cima que segue em sentido contrário ao da primeira antes
de descer e retornar ao mesmo ponto, a entrada da cidade. Em janeiro,
tudo fechado, menos dois bares e uma loja indefinida que pela manhã
vende uns poucos exemplares dos poucos jornais que chegam.
Tudo vazio e silencioso. Um fascínio, essa imagem do silêncio
- como na imagem do mundo lá fora visto desde um trem em movimento:
por trás do vidro grosso que não deixa passar som algum,
a imagem de um mundo silencioso do outro lado. Na estrada que sempre
existe ao lado da linha do trem, os carros e caminhões passam
rápidos e silentes e atravessam povoados onde se vêem algumas
poucas pessoas que também andam em silêncio, umas atrás
das outras a intervalos regulares, como os carros. Não é
que não as ouço: elas não fazem ruído, estão
sozinhas e caladas. Um mundo silencioso. Não mudo, nem taciturno:
silencioso. Como as pinturas dos grandes mestres: silenciosas. Não
sei se primeiro descobri o mundo silencioso da arte ou o mundo silencioso
do outro lado de uma grossa janela de trem. Arte silenciosa é
a que se fez, claro, até o final do século 19: Michelangelo,
Leonardo, Turner, Monet, Cézanne, essa arte básica. As
telas cubistas de Picasso - desenho de violão sobre recorte de
jornal, as Demoiselles d'Avignon - não são silenciosas:
umas são taciturnas (as demoiselles), outras são definitivamente
mudas, como as de Mondrian e as latas de sopa de Warhol. As silenciosas
me atraem mais.
A
cidade aonde eu fora para me recolher era esse mundo silencioso. Enquanto
os outros hóspedes não chegavam, passei horas na varanda
da villa, ainda mais acima da segunda rua, olhando, lá embaixo,
as chegadas e partidas do ferry vindo quase vazio desde a outra margem.
Àquela distância, nem o ferry fazia barulho: encostava
no cais, deixava sair um carro ou dois e partia. Pouco depois chegou
outro hóspede, uma mulher. Notei que ela passou as primeiras
tardes à janela de seu apartamento na villa observando o mesmo
ferry (eram de fato dois ferries, quase idênticos, depois percebi).
Quando começamos a nos falar, referi-me a ela como a ferry watcher,
assim como se diz bird watchers, esses que passam os dias observando
pássaros, binóculo na mão. Ficou intrigada quando
usei a expressão. E levemente irritada. Claro que ferry watcher
era eu, mas isso ela nunca soube.
Dizer que eu e ela passávamos horas olhando os ferries é
puro hábito cultural. No século 21 ninguém passa
horas olhando ferries ou o que for. Alguns poucos minutos, e só.
Mas, essa também é outra história do século
21.
Alguns dias depois, chegaram mais três hóspedes. Não
nos conhecíamos. Éramos cinco, seis outros deveriam vir.
Nunca vieram. Mais alguns dias e ficou evidente que o projeto fracassara,
não haveria discussão alguma. Resolvemos de todo modo
fazer uma reunião, informal. Na hora do café (serviram-nos
café mesmo assim), estava claro o consenso entre nós quanto
às chances da democracia no século 21. A "especialidade"
dos que estávamos ali eram as Américas - incluindo esse
país grande chamado Brasil - e o Oriente, que por hábito
cultural continua a dizer-se Próximo: nenhum Oriente jamais foi
ou está próximo, mas essa também é outra
história. Como a pauta inicial estava abolida, ensaiamos um balanço
informal, para passar o tempo. Quando a franqueza se impôs entre
nós, a franqueza que resulta do cansaço com a história,
alguém disse que as chances estavam em tirar de cena umas 35
mil pessoas. Um estádio de futebol inteiro. Chegamos aos nomes
com enorme rapidez, e, quando não os tínhamos à
mão, bastavam os cargos, as funções e as siglas.
Como tirá-los de cena? Terrorismo e assassinato não eram
para nós. Sugeri mandá-los para a Zona Fantasma. Para
alguma surpresa minha, todos sabiam do que eu falava. Idéia simpática,
disseram. Talvez a única saída, nos dissemos, sem nada
do politicamente correto que se esperaria de hóspedes como nós
mas que não praticaríamos. Zona Fantasma. Que figura poderia
ter no mundo real?
Não havia como construir projeto algum, sem os outros hóspedes.
Por que não vieram, nunca soube. Emblemático, me pareceu.
Então, nada me impedia, no dia seguinte, de tomar o ônibus
azul interurbano e ir a Como, uma hora de distância. Viagem inquietante:
o ônibus era tão largo (ou estreito) quanto a estrada,
espremida entre altos rochedos de um lado e o precipício do outro.
Quando vinha um raro carro em sentido contrário, não sei
como faziam. E, lá embaixo, o lago - o tempo todo. Chumbo líquido.
Na outra margem, minúscula, alguma coisa cinza se movia: um trem.
Em silêncio.
Desci em Como perto da hora do almoço, as ruas quase vazias,
todos indo para casa, as lojas fechando até o meio da tarde:
um resto de civilização preservada nas montanhas. Andando
sem objetivo pelas ruelas antigas, passo por uma livraria com o nome
numa placa sobre a porta: Plinio il Vecchio. Por outra coincidência
em minha vida, mais uma, naqueles dias mesmo, na villa, eu havia lido
sua História Natural. Ler é modo de dizer, não
se lê um livro desses: se percorre. Entrei. De história
natural, nada, só livros de arte, de vinhos, carros, culinária,
fotos. A nova história natural. À coincidência inicial
seguiu-se, então, uma descoincidência: na livraria de Plínio,
o Velho, não havia livros de história natural. As coincidências
sempre me fazem pensar, as descoincidências também. Atrás
do balcão, uma mulher fortemente atraente, que pretendia não
saber que era assim sensual, e um homem, mais velho, idoso (não
pelos cabelos brancos mas por parecer idoso). Perguntei-lhe por que
a livraria tinha aquele nome. Porque eu me chamo Plínio, disse,
quase sem sorrir. E por causa do outro, também, claro, ele disse.
Mas porque eu me chamo Plínio e sou velho.
Do outro Plínio, o que sempre me interessara saber era que escrevera
a História Natural. Não sabia que nascera em Como, como
este outro Plínio, nem que foi o comandante de uma flotilha baseada
em Miseno, de onde partiu, em 79 d.C., para ver de perto a erupção
do Vesúvio que soterraria Pompéia e Herculano. Não
sabia que ele tivera esse cargo, nem que, tendo ido ver em pessoa o
que se passava e tentar ajudar as pessoas, foi alcançado em Stabiae
pela nuvem de gás tóxico do vulcão e morreu, ele
também. Ele, que escrevera uma história natural em 37
volumes, toda a ciência disponível no mundo até
o século XVII, morreu por respirar gás tóxico de
vulcão... Eu nunca teria imaginado, como ficção,
esses meandros da história natural.
Não comprei nenhum daqueles livros que não eram de história
natural e saí: fecharam a livraria atrás de mim. Bem ao
lado, havia um restaurante modesto, uma osteria. Dentro, muitas mesas,
muito juntas, muita gente. Em duas almoçavam pedreiros vestidos
de branco, como é hábito na Itália: vistosos, quase
imponentes nas roupas insólitas. Ao lado deles, a classe média
dos pequenos negócios. Sentaram-me à única mesa
livre. Em seguida, sem me perguntarem nada, trouxeram duas mulheres:
mesas comunitárias. O vinho chegou e a comida. A conversa foi
fácil: uma era dali, a outra uma enfermeira suíça
visitando a amiga. Falamos de coisa alguma comendo a comida comum: polenta
com gorgonzola. À saída, tirei uma foto delas, dizendo
que depois lhes enviaria uma cópia. A foto saiu escura, era um
dia cinza de inverno: não se via o rosto delas, poderiam ser
quaisquer duas mulheres. Nunca lhes mandei aquela foto silenciosa.
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TEIXEIRA COELHO
É AUTOR, ENTRE OUTROS LIVROS, DE
HISTÓRIA NATURAL DA DITADURA (EDITORA ILUMINURAS, 2007)
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