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REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

UMA RELAÇÃO POSSÍVEL

 

por Ana Carla Fonseca Reis

 

 

 

Especialista numa área que vem ocupando cada vez mais espaço nos trâmites da produção cultural como bem de consumo, conhecida como economia criativa, a administradora pública formada pela Faculdade Getulio Vargas (FGV) e economista e mestre em administração pela Universidade de São Paulo (USP) Ana Carla Fonseca Reis acumulou várias experiências antes de achar o campo no qual atua hoje, como consultora da Organização das Nações Unidas (ONU). Nascida numa família de médicos, achou que seu destino estaria nos corredores dos hospitais, mas mudou de idéia ainda no último ano do ensino médio, quando foi levada pelo pai a assistir a uma aula de medicina e não se sentiu muito atraída pelo que viu. Depois de um período de indecisão acerca do curso que melhor traduziria seu sonho juvenil de "resolver os males da humanidade", acabou optando pela administração pública e a economia. Esta última, segundo ela, escolhida por ser capaz de fazê-la descobrir como as coisas funcionavam, já que o dinheiro "é a mola do mundo". Autora, entre outros livros, de Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável (Editora Manole, 2006), Ana Carla passou ainda pelo departamento de marketing da empresa Unilever e pelo Consulado da França, onde atuava na área de serviço cultural, fazendo uma ponte entre empresas francesas e "a fila incomensurável de artistas, curadores e produtores que estavam atrás de patrocínio". Em conversa com o Conselho Editorial da Revista E, a consultora da ONU falou um pouco sobre em que consiste a economia criativa - ou economia da cultura - e deu exemplos de como a produção cultural, tanto em grandes cidades como em pequenas comunidades, pode contribuir para o desenvolvimento socioeconômico de um país. A seguir, trechos.


Quando comecei a me aprofundar na área da economia da cultura, fui motivada justamente pelo fato de que aqui no Brasil se falava muito pouco a respeito. Embora os agentes culturais produzissem, era raro encontrar gestores culturais ou economistas com uma visão de fluxo econômico da cultura. Após anos de estudo, publiquei ao final do ano passado o livro Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável. A idéia nessa obra não é abordar apenas a relação entre economia e cultura - que é histórica, foi cindida e agora está sendo retomada -, mas também discutir como uma estratégia baseada em nossos produtos e serviços culturais pode conduzir ao desenvolvimento socioeconômico. Algo que vai além do impacto no PIB [produto interno bruto, índice que representa a soma, em valores monetários, de todos os bens e serviços finais produzidos em um país, estado ou município], no número de empregos e na arrecadação tributária. Ao contrário de todos os outros produtos e serviços da economia, os culturais engendram dois fluxos paralelos: um econômico (referente ao que é produzido, distribuído e consumido) e um simbólico (que diz respeito à transmissão de valores, mensagens, símbolos de uma sociedade), aspectos que seguem paralelamente e em harmonia. O desenvolvimento não pode ser entendido se não pensarmos no econômico e no social ao mesmo tempo. Em função disso, a cultura apresenta um potencial único para promover o desenvolvimento socioeconômico. Isso é claro quando damos aos mestres de ofício a possibilidade de sobreviver de sua produção cultural, em vez de ser obrigados a se dedicar a atividades remuneradas que não aproveitam esse talento. Além de individualmente eles serem violentados em sua vontade, a sociedade acaba não tendo acesso a seus próprios bens culturais, que não raro se extinguem por falta de aprendizes.

 

ECONOMIA DA CULTURA NA PRÁTICA
A economia da cultura abarca o público, o privado e o terceiro setor. Cada um deles traz uma contribuição ímpar a essa equação. Em uma sociedade capitalista, é muito complicado não pensarmos no privado, até porque sua estrutura se baseia nas relações de capital - e quem traz o capital privado participa, inclusive por meio de investimentos. Um dos grandes gargalos que acabam ocorrendo nesse setor é justamente o financiamento dos empreendimentos culturais, porque a criatividade não é facilmente traduzida em números. Ao setor público cabe definir políticas de longo prazo que, através de instrumentos de intervenção, como as leis de incentivo, isenções de impostos, programas de incentivo à participação cultural e articulação com pastas como Educação, Turismo e Trabalho, corrijam as distorções de mercado e promovam o acesso às várias vertentes de cultura em um cenário globalizado, o reconhecimento das múltiplas facetas da identidade do povo etc. Já o terceiro setor é um celeiro de inovações, de modelos alternativos, de novas propostas para resolver velhos problemas. Esses três agentes, juntos, azeitam a cadeia da economia da cultura.

 

SUSTENTABILIDADE, CULTURA E INTERAÇÃO ECONÔMICA
É muito interessante analisar a relação entre sustentabilidade, cultura e economia tomando como exemplos o caso de um grande centro e de uma pequena comunidade. Para ilustrar o primeiro, podemos falar do que aconteceu em Bilbao [cidade da região chamada de País Basco, na Espanha]. Trata-se de uma cidade industrial e portuária que vinha degringolando com a decadência do porto, até então base de sua economia. Além disso, com a deterioração, as pessoas deixam de sair de casa porque a cidade fica violenta - a cidade fica mais violenta justamente porque as pessoas não saem de casa e todo o tecido social e econômico é prejudicado. Após uma análise de um consórcio público e privado da região, foi traçada uma nova estratégia de desenvolvimento. Constatou-se que era preciso investir tanto em infra-estrutura quanto na retomada das relações sociais, em educação e em atração de investimentos, em um conjunto de oito pilares estratégicos. Um deles, que se tornou símbolo mundial da cidade, é o Museu Guggenheim. E, quando analisamos hoje os dados econômicos de Bilbao quanto à visitação e geração de empregos do museu, percebemos que, além do impacto econômico alcançado, sua atuação promove atividades educacionais, eleva a auto-estima dos habitantes e incrementa a qualidade de vida da região.
Quanto ao exemplo de uma pequena comunidade, vale citar o caso da Associação Quilombola de Conceição das Crioulas, o terceiro maior quilombo do Brasil. A comunidade viveu durante séculos do cultivo de algodão, até que a praga do bicudo, somada à demanda crescente dos fios sintéticos, acabou por eliminar essa base de sustento e decompor o tecido social. A mudança desse cenário ocorreu em 2001, em parceria com o Sebrae [Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas] e a Universidade Federal de Pernambuco. Por meio de um programa de resgate da cultura tradicional, o artesanato, fortemente baseado em matérias-primas da diversidade ambiental local, tornou-se a alavanca de desenvolvimento da comunidade. Hoje, ele garante o sustento direto de 45 famílias e, indiretamente, de outras 200 pessoas. Mais do que gerar trabalho e renda, o artesanato promove a inclusão social por meio da valorização da identidade cultural, do resgate da história, e oferece às pessoas a possibilidade de não migrar para os grandes centros urbanos, engrossando o cinturão de trabalhadores desqualificados. Com isso, a comunidade galgou vários degraus a caminho do verdadeiro desenvolvimento: aquele que, seguindo o conceito do economista Amartya Sen [Prêmio Nobel de Economia de 1998, cujas propostas se destacam pela relação entre ética, economia e racionalidade no tratamento da desigualdade e da pobreza], nos permite ampliar nossa liberdade de escolhas, definir e perseguir o que queremos para nós mesmos.

 

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