PALAVRA
LIBERTÁRIA
A
escritora franco-senegalesa Fatou Diome conta um pouco da longa trajetória
que teve de percorrer até despontar como uma das revelações
da literatura contemporânea
Fatou Diome, nascida
na ilha de Niodor, no Senegal, em 1968, sempre se dedicou a uma literatura
que estivesse ligada às suas raízes culturais. Algumas experiências
de vida serviram de fonte para que ela produzisse obras como a coletânea
de contos La Préférence Nationale (2001) e os romances Le
Ventre de l'Atlantique, (2003) e Kétala (2006) - recém-publicado
-, que abordam temas como a imigração africana para a Europa,
o exílio e o racismo. Dona de um estilo expressivo e cheio de vivacidade,
fornece ao leitor elementos que dão um passaporte para o conhecimento
da memória, da tradição e da cultura africanas, misturando
ficção e realidade.
Em sua primeira visita ao Brasil, a escritora - hoje com obras publicadas
em dez idiomas - participou de dois encontros em comemoração
aos 60 anos do Sesc que fizeram parte da programação da
Temporada Sesc de Artes. Leia a seguir, trechos da palestra de Fatou Diome
no Sesc São Caetano, mediada pela professora de história
da África da Universidade de São Paulo (USP), Leila Leite
Hernandez, autora do livro A África na Sala da Aula - Visita à
África Contemporânea (2005).
Fatou
por suas próprias palavras
Escrevo desde os 13 anos, quando deixei a pequena aldeia onde nasci, à
margem esquerda do pequeno Rio Gâmbia, para estudar em outras cidades
do Senegal. A solidão na cidade, o prazer em brincar com as palavras
da língua francesa e também o de responder a algumas perguntas
que os adultos não sabiam me explicar é que me incentivaram
a ser escritora. Às vezes, se terminava um livro e achava que não
havia um desfecho, era capaz de voltar e escrever o livro novamente para
chegar ao fim que eu desejava. De onde venho, existe a tradição
mulçumana - o Senegal tem uma população de 95% de
mulçumanos. Uma garota bem comportada, no meu país, não
pode falar muito nem falar alto, o que significa, pouca possibilidade
de ser ouvida. Por isso, o fato de escrever, de tomar a palavra por meio
de um livro, de certa forma, serviu como uma maneira para eu ocupar um
lugar reservado aos homens, afinal o poder é sempre tomado pelos
que falam. Não dá para imaginar um presidente que não
fale a seu povo, por exemplo. Ter a palavra significa ter a liberdade,
seja na América, seja na Europa ou na África. Manifestar
sua palavra é o mesmo que manifestar sua vontade. Uma mulher que
fala, independentemente de onde ou em qual continente ela esteja, denota
rebeldia, e, no lugar onde nasci, ser feminista é quase uma necessidade
genética.
Tradição
e feminismo
Ao contrário do que os conservadores senegaleses pensam, quando
se é feminista não se é contra a tradição,
mas sim a favor da liberdade. Existem duas práticas comuns, as
quais sou contra: a poligamia e a circuncisão. A poligamia é
uma doença que nunca vou pegar, e por toda a minha vida lutarei
contra a circuncisão. Isso não significa que eu não
goste da África. Muito pelo contrário, é por gostar
muito que desejo que ela evolua. Para isso, acredito que todos os valores
inúteis que nos põem em atraso devem ser jogados fora. Na
África, nós, mulheres, éramos empregadas de nossos
irmãos e tínhamos o dever de executar todas as atividades
domésticas para eles. Quando fui para Europa, pouca coisa mudou,
era considerada uma mulher rebelde, pois era mulçumana, negra e
divorciada. Deixei de me tornar escrava dos meus irmãos para me
tornar escrava do preconceito.
Imigração
A primeira onda de imigração para a Europa foi depois da
Segunda Guerra Mundial [1939-1945]. Em 1974, fizeram uma lei na França
que tratava do reagrupamento familiar e, apoiados nessa lei, os primeiros
imigrantes que chegaram para trabalhar como operários tiveram o
direito de também trazer suas famílias. Geralmente, essas
mulheres que vinham com seus maridos não trabalhavam e não
estudavam, e, com isso, reconstituía-se o sistema familiar africano
nas periferias para onde essas famílias imigravam. Depois dessa
época, mas ainda nos anos 70, houve a imigração de
muitos jovens que iam estudar na Europa. Agora, claro, isso se aplicava
apenas aos homens. O movimento migratório das mulheres africanas
é recente, só começa nos anos 90.
No meu caso, eu não era uma imigrante que estava sonhando com a
Europa. Era casada com um francês que estava trabalhando no Senegal,
quando eu ainda estava na universidade. Nós nos conhecemos, casamo-nos
e eu o acompanhei para Estrasburgo [França]. Quando lá chegamos,
não fui bem recebida pela família dele. Eles esperavam uma
Branca de Neve e não uma negra. Nós nos separamos e resolvi
permanecer em Estrasburgo. Lá vivi muitas situações
de racismo. No começo, eu ia para casa, trancava-me no meu quarto
e chorava tentando entender o porquê. Depois de um tempo morando
lá, decidi inverter a situação. Os racistas são
pessoas muito covardes, se eles lhe disserem uma palavra, você tem
de devolver dez, com certeza eles vão recuar. Certa vez, eu estava
procurando trabalho e alguém me perguntou por que eu não
trabalhava em meu país. Eu respondi que, caso ela não soubesse,
havia mais de 20 mil franceses que trabalhavam no Senegal e que eu estava,
então, apenas pegando o emprego que eles haviam deixado para trás.
Em contrapartida, já fui discriminada em meu país por pessoas
como eu. Então, isso significa que a idiotice não tem nacionalidade.
Obras passadas
e futuras
Muitas vezes, na África, não sei se em outros lugares também,
o que se espera de um escritor é apenas um testemunho ou uma obra
mais combativa, não se dá tanto valor à estética,
que para mim é tão importante quanto a harmonia entre as
palavras e a oralidade. Utilizo em minhas obras uma escrita franco-senegalesa.
Escrevo em francês, utilizando os elementos culturais de meu país.
Sinto-me completamente integrada a ambas as culturas. Exemplo disso é
a palavra de minha língua natal kétala, que significa passar
por uma experiência religiosa e é o título de uma
de minhas obras. Eu a utilizei justamente por sonhar em dar um sentido
em francês para essa palavra. Ainda quero vê-la nos dicionários
franceses. Durante um tempo, existia uma moda de utilizar várias
palavras das línguas africanas nos romances. Nunca fiz isso, não
gosto. É como se houvesse a necessidade de mostrar que nós
temos e sabemos usar várias palavras das línguas locais.
Isso denota um certo complexo, que nunca tive. Quanto a minhas outras
obras, tenho alguns livros já terminados. Tenho um que deverá
se chamar Betty, a Lupa, que faz referência aos olhos arregalados
da [personagem de quadrinhos e desenhos animados] Betty Boop e
também é uma referência à escritora [belga]
Marguerite Yourcenar [1903-1987, pseudônimo de Marguerite Cleenewerck
de Crayencour], que me traz um prazer enorme com seus livros. Há
também outro livro [ainda sem título] que retrata
a vida de uma mulher do sul da África que foi levada para a Inglaterra
e foi exibida em feiras como uma curiosidade.
"As Áfricas"
Na Europa, a tendência é colocar todos no mesmo saco. O que
mais me chocou quando cheguei lá, foi quanto os europeus ignoravam
a África. Durante muito tempo meu continente só interessava
aos antropólogos e etnólogos. Então, viver na Europa
significou certo confronto. Eu tinha de ter a coragem de muitas vezes
corrigir idéias errôneas que haviam sido afirmadas como certas.
Só para dar um exemplo, uma vez na universidade uma colega me perguntou
como eu me sentia morando em um prédio de alvenaria, já
que eu havia nascido em uma cabana. Tive de explicar que, ao contrário
do que ela pensava, eu tinha nascido em uma casa de alvenaria e não
em uma cabana. O que as pessoas ignoram é que a África de
Angola e Moçambique é completamente diferente da África
do Senegal, que, por sua vez, é diferente da África da Argélia,
do Marrocos, da Tunísia e assim por diante. Esses lugares são
completamente diferentes da minha aldeia. É verdade também
que hoje em dia, devido ao turismo, os europeus conhecem mais a África,
e talvez, um dia, isso ajude para que eles a respeitem mais. Chegará
um momento em que não se dirá mais "a África",
e sim "as Áfricas".
A escritora franco-senegalesa
Fatou Diome, que esteve presente nas unidades do Sesc de São Caetano
e Pinheiros
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