
O
MESTRE DOS PÁSSAROS
por
Sílvio Fiorani
Rosa Rovelli Rovelli.
Assim se chamava porque se casara com tio Augusto, seu primo por parte
de pai. Augusto, que era o irmão mais velho de meu avô, morreu
alguns anos depois do casamento, deixando Rosa com três filhos.
Ela conseguiu manter com firmeza as rédeas da casa e da propriedade
de médio tamanho que possuíam perto de Ouriçanga,
a meia légua, se tanto, da fazenda de meu avô. Não
conseguiu ampliar a extensão de suas terras, mas conservou com
eficiência o patrimônio que Augusto Rovelli havia conquistado
a duras penas. Criou os três filhos sozinha, sem nenhuma ajuda dos
parentes - recusou qualquer auxílio -, e, assim que eles se tornaram
adultos, deixou de vez o trato da pequena fazenda, passando a dedicar-se
apenas à sede da propriedade que, com os sucessivos casamentos,
começou a encher de crianças. Além do trabalho doméstico,
voltou a dedicar-se com fervor aos seus "espíritos",
e continuou a causar em toda a família o costumeiro desconforto,
notadamente em minha avó Elisa, pois Rosa era, entre todos os parentes,
a única pessoa que não poderia ser considerada, a rigor,
católica apostólica romana. Vivíamos todos então
assolados pelo fato tremendo e inquestionável de que só
a Igreja Católica era a verdadeira Igreja de Cristo, porque era,
entre outras coisas, santa, posto que tinha por fim santificar os homens,
conduzindo-os à vida eterna; assim, exatamente, como proclamava
o padre Jesus Bujanda (em seu Manual de Teologia Dogmática) a respeito
das verdades que nos falavam de Deus e de suas obras, de sua essência,
de seus atributos.
O espiritismo era ainda desconhecido e temível, e assim havia uma
tendência generalizada em tratar Rosa com reservas, com a agravante
de que chegava a amedrontar as crianças com os casos de aparições
e possessões que costumava contar com dramaticidade. De hábito,
só se dirigia aos adultos, mas suas histórias exerciam sobre
nós, mais que temor, um irresistível fascínio, e
não podíamos deixar de ouvi-la com toda a atenção,
ainda que soubéssemos que aqueles fatos acabariam fatalmente por
resultar em noites maldormidas, cheias de sobressaltos, povoadas de pesadelos.
Rosa tinha muitos pressentimentos, e interpretava-os à sua maneira,
como obra e graça da multidão de espíritos que perambulava
por aquela espécie de universo invisível que existia entremeado
ao nosso. A história de sua conversão ao espiritismo era
um tanto obscura, e se perdia na longa história da família,
remontando aos tempos em que o projeto de deixar a Itália com destino
ao Brasil não passava de um sonho ainda mal definido.
Em Ouriçanga, o espiritismo só veio a ter verdadeiros adeptos
lá por volta de 1930, quando foi construída a primeira sede
de seus "trabalhos", um barracão tosco de alvenaria,
pintado de amarelo, e em cuja fachada foi colocada a inscrição:
Centro Espírita Fé, Esperança e Caridade. Tratou-se
da primeira manifestação concreta na região daquilo
que seus seguidores, brandindo os exemplares precursores do Livro dos
Espíritos, chamavam de "espiritismo moderno". Rosa chegou
a freqüentar o "Centro" de forma esporádica, mas
sem grande entusiasmo. Parece não ter tido então interesse
suficiente para querer "desenvolver-se espiritualmente" como
preconizavam os líderes daquilo que então o comum das pessoas
chamava de "seita". Deve ter bastado a Rosa apenas a crença
que tinha naquela espécie de universo paralelo para onde se encaminhavam
os "espíritos desencarnados", e onde permaneciam até
que a Providência, se este termo é justo, determinasse a
sua volta ao mundo de antes, a este "vale de lágrimas"
a que Rosa Rovelli Rovelli de hábito se referia. É possível
que não necessitasse mais que isso para compor a sua vida religiosa;
além, é claro, da contraditória e inabalável
fé que continuou mantendo nos santos da Igreja, sem falar no fato
de que jamais se atreveu a deixar de confessar-se e comungar pelo menos
uma vez por ano, pela Páscoa da Ressurreição. Jamais
fez proselitismo acerca de sua fé pessoal. Contava os seus casos
apenas pelo prazer de contá-los e de mostrar que possuía
o privilegiado dom de parlamentar com entidades de um mundo cheio de mistérios
e possibilidades.
Todos os anos, uma ou duas semanas antes das Festas, ela visitava minha
avó, trazendo sempre, além de algum presente muito simples,
um novo repertório de casos de visitantes noturnos, muitas vezes
parentes próximos já falecidos, com os quais dialogava e
dos quais obtinha freqüentes graças e recebia recados de outros
parentes e amigos também desaparecidos. Estava visto que não
precisava mesmo "desenvolver-se".
Vinha sempre numa charrete, guiando ela mesma o cavalo, sempre de preto,
lenço atado à cabeça com um nó atrás
da nuca e os inseparáveis e enormes brincos de ouro, uma herança
ancestral, único luxo a que se permitia. O mais que se fazia era
ouvir com a costumeira reserva e condescendência os seus inesgotáveis
relatos, que, à parte o diálogo com os mortos, davam conta
ainda de mesas que em sua casa se erguiam sozinhas do chão, cadeiras
que se arrastavam, talheres que se remexiam nervosamente em gavetas fechadas.
A
nós, as crianças da casa, contava, à parte, histórias
sobre o Menino Jesus; isso porque, sempre quando nos visitava, estávamos
nas vésperas do Natal; e essas histórias eram muito simples,
baseadas quase sempre nos Evangelhos, como eu constataria muito mais tarde.
Mas ela possuía um talento especial para contá-las de uma
forma singela e comovente ao mesmo tempo. Eram histórias que, de
resto, já conhecíamos desde o catecismo ou a partir dos
relatos morais de minha avó ou de minha mãe. No entanto,
as versões de Rosa nos golpeavam como se fossem histórias
novas, dado o empenho dramático que nossa tia-avó nelas
colocava, exaltando certos pormenores, agravando o conteúdo de
certas situações, acrescentando detalhes de sua lavra (foi
assim que ficamos sabendo, entre outras coisas, que também a vaca
do presépio havia parido um "lindo bezerrinho" no início
daquele dia que Rosa qualificava como o mais belo já vivido pela
humanidade). Nosso Senhor, como ela dizia ao referir-se a Jesus, havia
sido um menino muito belo e gracioso, mas muito pobre também. A
pobreza, no entanto, havia sido grandiosa; o nascimento fora anunciado
por anjos, e uma enorme estrela esteve a indicar o local onde estava o
bebê, para que até ali viessem ter, indistintamente, pobres
pastores e ao mesmo tempo gente importante daqueles tempos. Dizia tais
coisas para em seguida contar-nos alguma história edificante sobre
o Menino. Eram relatos, pois, plenos de anjos, com os reis magos vestindo
roupas suntuosas, e mais a estrela-guia, a matança dos inocentes,
Herodes, o cruel mandatário, a fuga para o Egito no burrico, a
volta do Egito, e tudo mais. Enfim, os episódios de sempre, ocorridos
até o tempo em que o Menino Jesus viveu a parte oculta de sua vida,
crescendo, tornando-se robusto, como dizem as Escrituras (sem exaltar
nenhum fato em especial), enchendo-se de sabedoria, estando a graça
de Deus sempre com ele. É desse tempo misterioso o último
relato de Rosa Rovelli. Ela morreria ("de morte natural", segundo
o que ficou documentado) cerca de seis meses depois de ter-nos visitado
pela última vez; às vésperas das Festas, como sempre.
E esse relato derradeiro, eu constataria muito depois, foi o único
que as Escrituras não haviam registrado, e o único também
do qual não havíamos tido conhecimento prévio; nem
nas lições morais de minha mãe ou minha avó,
muito menos nas lições do velho Catecismo da Doutrina Cristã.
Jesus tinha então 5 anos e estava brincando à margem de
um riacho, e, vendo o barro branco e macio que havia junto à água,
apanhou certa quantidade daquela massa e dela fez 12 pássaros.
Era um sábado, e outros meninos estavam brincando com ele. Um judeu
da sinagoga, que passava por ali, vendo o que o Menino Jesus acabara de
fazer num dia santificado, em que era proibido todo tipo de trabalho,
foi até José e lhe deu conta da "profanação".
Ao chegar ao local, José admoestou severamente o filho. Mas ele
era muito criança ainda e não procedeu como procederia muito
tempo depois, nos anos de seu ministério, em situações
como aquela, diante da hipocrisia dos fariseus (Quem de vós?, que
tendo cem ovelhas e perdeu uma num sábado, não deixa as
outras noventa e nove e vai em busca da que se perdeu até encontrá-la;
ou qual mulher? que, tendo dez dracmas, e perdeu uma, não varre
a casa à sua procura até que a encontre.) Ele era, pois,
muito criança; não possuía ainda a indignação
dos justos, e então, sem rancor, fez o que lhe pareceu o melhor
a ser feito naquele momento. Voltou-se para os 12 pássaros perfilados
e bateu palmas; com o que, eles ganharam vida e voaram, libertos, gorjeando
alegremente.
Sílvio Fiorani
é autor, entre outros livros, de O Envabgelho Segundo Judas e Ivestigação
sobre Ariel (editora A Girafa, 2005)
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