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Matérias da edição

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Ficção inédita

REVISTA E Dezembro - 2006

 

 

 



O MESTRE DOS PÁSSAROS

 

 

por Sílvio Fiorani

 

 

Rosa Rovelli Rovelli. Assim se chamava porque se casara com tio Augusto, seu primo por parte de pai. Augusto, que era o irmão mais velho de meu avô, morreu alguns anos depois do casamento, deixando Rosa com três filhos. Ela conseguiu manter com firmeza as rédeas da casa e da propriedade de médio tamanho que possuíam perto de Ouriçanga, a meia légua, se tanto, da fazenda de meu avô. Não conseguiu ampliar a extensão de suas terras, mas conservou com eficiência o patrimônio que Augusto Rovelli havia conquistado a duras penas. Criou os três filhos sozinha, sem nenhuma ajuda dos parentes - recusou qualquer auxílio -, e, assim que eles se tornaram adultos, deixou de vez o trato da pequena fazenda, passando a dedicar-se apenas à sede da propriedade que, com os sucessivos casamentos, começou a encher de crianças. Além do trabalho doméstico, voltou a dedicar-se com fervor aos seus "espíritos", e continuou a causar em toda a família o costumeiro desconforto, notadamente em minha avó Elisa, pois Rosa era, entre todos os parentes, a única pessoa que não poderia ser considerada, a rigor, católica apostólica romana. Vivíamos todos então assolados pelo fato tremendo e inquestionável de que só a Igreja Católica era a verdadeira Igreja de Cristo, porque era, entre outras coisas, santa, posto que tinha por fim santificar os homens, conduzindo-os à vida eterna; assim, exatamente, como proclamava o padre Jesus Bujanda (em seu Manual de Teologia Dogmática) a respeito das verdades que nos falavam de Deus e de suas obras, de sua essência, de seus atributos.



O espiritismo era ainda desconhecido e temível, e assim havia uma tendência generalizada em tratar Rosa com reservas, com a agravante de que chegava a amedrontar as crianças com os casos de aparições e possessões que costumava contar com dramaticidade. De hábito, só se dirigia aos adultos, mas suas histórias exerciam sobre nós, mais que temor, um irresistível fascínio, e não podíamos deixar de ouvi-la com toda a atenção, ainda que soubéssemos que aqueles fatos acabariam fatalmente por resultar em noites maldormidas, cheias de sobressaltos, povoadas de pesadelos.




Rosa tinha muitos pressentimentos, e interpretava-os à sua maneira, como obra e graça da multidão de espíritos que perambulava por aquela espécie de universo invisível que existia entremeado ao nosso. A história de sua conversão ao espiritismo era um tanto obscura, e se perdia na longa história da família, remontando aos tempos em que o projeto de deixar a Itália com destino ao Brasil não passava de um sonho ainda mal definido.



Em Ouriçanga, o espiritismo só veio a ter verdadeiros adeptos lá por volta de 1930, quando foi construída a primeira sede de seus "trabalhos", um barracão tosco de alvenaria, pintado de amarelo, e em cuja fachada foi colocada a inscrição: Centro Espírita Fé, Esperança e Caridade. Tratou-se da primeira manifestação concreta na região daquilo que seus seguidores, brandindo os exemplares precursores do Livro dos Espíritos, chamavam de "espiritismo moderno". Rosa chegou a freqüentar o "Centro" de forma esporádica, mas sem grande entusiasmo. Parece não ter tido então interesse suficiente para querer "desenvolver-se espiritualmente" como preconizavam os líderes daquilo que então o comum das pessoas chamava de "seita". Deve ter bastado a Rosa apenas a crença que tinha naquela espécie de universo paralelo para onde se encaminhavam os "espíritos desencarnados", e onde permaneciam até que a Providência, se este termo é justo, determinasse a sua volta ao mundo de antes, a este "vale de lágrimas" a que Rosa Rovelli Rovelli de hábito se referia. É possível que não necessitasse mais que isso para compor a sua vida religiosa; além, é claro, da contraditória e inabalável fé que continuou mantendo nos santos da Igreja, sem falar no fato de que jamais se atreveu a deixar de confessar-se e comungar pelo menos uma vez por ano, pela Páscoa da Ressurreição. Jamais fez proselitismo acerca de sua fé pessoal. Contava os seus casos apenas pelo prazer de contá-los e de mostrar que possuía o privilegiado dom de parlamentar com entidades de um mundo cheio de mistérios e possibilidades.
Todos os anos, uma ou duas semanas antes das Festas, ela visitava minha avó, trazendo sempre, além de algum presente muito simples, um novo repertório de casos de visitantes noturnos, muitas vezes parentes próximos já falecidos, com os quais dialogava e dos quais obtinha freqüentes graças e recebia recados de outros parentes e amigos também desaparecidos. Estava visto que não precisava mesmo "desenvolver-se".



Vinha sempre numa charrete, guiando ela mesma o cavalo, sempre de preto, lenço atado à cabeça com um nó atrás da nuca e os inseparáveis e enormes brincos de ouro, uma herança ancestral, único luxo a que se permitia. O mais que se fazia era ouvir com a costumeira reserva e condescendência os seus inesgotáveis relatos, que, à parte o diálogo com os mortos, davam conta ainda de mesas que em sua casa se erguiam sozinhas do chão, cadeiras que se arrastavam, talheres que se remexiam nervosamente em gavetas fechadas.

 




A nós, as crianças da casa, contava, à parte, histórias sobre o Menino Jesus; isso porque, sempre quando nos visitava, estávamos nas vésperas do Natal; e essas histórias eram muito simples, baseadas quase sempre nos Evangelhos, como eu constataria muito mais tarde. Mas ela possuía um talento especial para contá-las de uma forma singela e comovente ao mesmo tempo. Eram histórias que, de resto, já conhecíamos desde o catecismo ou a partir dos relatos morais de minha avó ou de minha mãe. No entanto, as versões de Rosa nos golpeavam como se fossem histórias novas, dado o empenho dramático que nossa tia-avó nelas colocava, exaltando certos pormenores, agravando o conteúdo de certas situações, acrescentando detalhes de sua lavra (foi assim que ficamos sabendo, entre outras coisas, que também a vaca do presépio havia parido um "lindo bezerrinho" no início daquele dia que Rosa qualificava como o mais belo já vivido pela humanidade). Nosso Senhor, como ela dizia ao referir-se a Jesus, havia sido um menino muito belo e gracioso, mas muito pobre também. A pobreza, no entanto, havia sido grandiosa; o nascimento fora anunciado por anjos, e uma enorme estrela esteve a indicar o local onde estava o bebê, para que até ali viessem ter, indistintamente, pobres pastores e ao mesmo tempo gente importante daqueles tempos. Dizia tais coisas para em seguida contar-nos alguma história edificante sobre o Menino. Eram relatos, pois, plenos de anjos, com os reis magos vestindo roupas suntuosas, e mais a estrela-guia, a matança dos inocentes, Herodes, o cruel mandatário, a fuga para o Egito no burrico, a volta do Egito, e tudo mais. Enfim, os episódios de sempre, ocorridos até o tempo em que o Menino Jesus viveu a parte oculta de sua vida, crescendo, tornando-se robusto, como dizem as Escrituras (sem exaltar nenhum fato em especial), enchendo-se de sabedoria, estando a graça de Deus sempre com ele. É desse tempo misterioso o último relato de Rosa Rovelli. Ela morreria ("de morte natural", segundo o que ficou documentado) cerca de seis meses depois de ter-nos visitado pela última vez; às vésperas das Festas, como sempre. E esse relato derradeiro, eu constataria muito depois, foi o único que as Escrituras não haviam registrado, e o único também do qual não havíamos tido conhecimento prévio; nem nas lições morais de minha mãe ou minha avó, muito menos nas lições do velho Catecismo da Doutrina Cristã.



Jesus tinha então 5 anos e estava brincando à margem de um riacho, e, vendo o barro branco e macio que havia junto à água, apanhou certa quantidade daquela massa e dela fez 12 pássaros. Era um sábado, e outros meninos estavam brincando com ele. Um judeu da sinagoga, que passava por ali, vendo o que o Menino Jesus acabara de fazer num dia santificado, em que era proibido todo tipo de trabalho, foi até José e lhe deu conta da "profanação". Ao chegar ao local, José admoestou severamente o filho. Mas ele era muito criança ainda e não procedeu como procederia muito tempo depois, nos anos de seu ministério, em situações como aquela, diante da hipocrisia dos fariseus (Quem de vós?, que tendo cem ovelhas e perdeu uma num sábado, não deixa as outras noventa e nove e vai em busca da que se perdeu até encontrá-la; ou qual mulher? que, tendo dez dracmas, e perdeu uma, não varre a casa à sua procura até que a encontre.) Ele era, pois, muito criança; não possuía ainda a indignação dos justos, e então, sem rancor, fez o que lhe pareceu o melhor a ser feito naquele momento. Voltou-se para os 12 pássaros perfilados e bateu palmas; com o que, eles ganharam vida e voaram, libertos, gorjeando alegremente.



 

Sílvio Fiorani é autor, entre outros livros, de O Envabgelho Segundo Judas e Ivestigação sobre Ariel (editora A Girafa, 2005)

 

 

 

 

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