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Matérias da edição

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Em Pauta

REVISTA E Dezembro - 2006

 

 

 

 

IDADE AVANÇADA

 

 

Ilustrações: www.marcosgaruti.com

 

 


A expectativa de vida vem aumentando e, hoje, o Brasil conta com cerca de 14,5 milhões de habitantes acima de 60 anos. No entanto, à medida que as pessoas alcançam idades avançadas, limitações físicas - e muitas vezes psicológicas - tendem a se acentuar, comprometendo a autonomia do indivíduo. Esse foi o foco das discussões do Seminário Nacional Velhice Fragilizada, realizado em novembro pelo Sesc São Paulo na unidade provisória Avenida Paulista. O objetivo foi refletir acerca de ações em favor da terceira idade por meio de debates sobre as necessidades dos idosos que se encontram em situação de dependência. No Em Pauta desta edição, a discussão continua com artigos exclusivos da psicanalista especializada em gerontologia Delia Catullo Goldfarb e da antropóloga Debora Diniz.

 

 

 

leia o artigo

A velhice
Fragilidade, envelhecimento e desamparo

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A velhice


por Debora Diniz

 

Como definir a velhice? Para Mário Quintana, a "velhice é quando um dia as moças começam a nos tratar com respeito e os rapazes sem respeito nenhum". A resposta do poeta gaúcho não deve ser entendida apenas como uma ironia entre as gerações. Quintana era um homem de meia-idade quando escreveu esse verso, por isso seu senso aguçado para compreender a velhice também como uma experiência de gênero entre homens e mulheres. Envelhecer é aproximar-se do espaço socialmente ocupado pelas mulheres. É fragilizar-se, enfraquecer-se, reconhecer a dependência e experimentar o cuidado. Esses são papéis tradicionalmente identificados como femininos e, por uma sobreposição de gênero, considerados como atributos das mulheres. A velhice nos força a uma experiência feminina do mundo social.



A velhice é uma condição humana. Ou ao menos uma condição humana para todas as pessoas vivas. Essa pode parecer uma afirmação tautológica - a velhice é uma condição humana para quem está vivo -, mas há uma forma mais profunda de compreendê-la. Apesar de ser uma condição humana, a experiência da velhice não está disponível para todas as pessoas: a possibilidade de uma vida extensa não é uma escolha cujas variáveis estão sob nosso controle. Doenças, infortúnios ou o acaso nos impedem de experimentar a velhice. Isso faz da velhice uma fase paradoxal de nossas vidas: por um lado, nos obriga a uma mudança radical de perspectiva diante da vida social, por outro, não basta a vontade de ser velho para experimentar a velhice. Há imponderáveis que impedem a chegada da velhice, mas também não basta se manter em sobrevida para conhecer a velhice como um fenômeno social.



O desenvolvimento material, em especial o avanço das técnicas médicas, aumentou nossas chances de viver e experimentar a velhice como um fenômeno social. O número de velhos cresceu e as definições sobre quem é o velho também se modificaram. Estendeu-se nosso ciclo de vida biológico e a conseqüência é que também se modificou a experiência social da velhice. Há quem diga que estamos em uma fase de transição - do velho de Quintana, desrespeitado pelos rapazes e respeitado pelas moças, para o velho, ícone da geriatria, que "experimenta a terceira idade com qualidade de vida". Mas, assim como qualquer outra experiência humana, há diferentes biografias na velhice. Há quem considere a velhice uma chatice, como Quintana a descreveu em uma entrevista, mas há quem a entenda como a melhor fase da vida.



Indiferentemente a como se descreva a velhice, pois essa é uma experiência tão plural quanto a diversidade humana, há algo em comum a todos os velhos. A velhice redefine o indivíduo, e essa redescrição do papel social é tanto mais intensa ou mais distante quanto o velho tiver construído sua biografia dos papéis sociais do feminino e do deficiente. Ser velho é necessitar de cuidado, é reconhecer limitações físicas, cognitivas ou mentais. Como regra geral, quanto mais velha uma pessoa, mais vulnerável. Vulnerabilidade, no entanto, não significa incapacidade para a vida social ou ausência de livre-arbítrio. A velhice não retira do indivíduo a capacidade de escolha ou de estabelecer preferências e tomar decisões livres e informadas. É simplesmente um descritor que identifica a fragilidade, a dependência e a demanda de um corpo por cuidado. Não é sinônimo de um julgamento moral sobre o sentido da vida na velhice, mas das relações sociais que se estabelecem em torno de um corpo velho.



A velhice desafia nosso sistema social em alguns de seus pilares. Um deles é o pressuposto de que somos seres autônomos e independentes. Ao contrário do que somos socializados a crer, não somos independentes. Acreditamos no valor moral da independência e da autonomia, mas nossa vida social é um exercício contínuo de interdependência e de autonomia relacional. Há, portanto, um jogo entre o que acreditamos ser e o que somos capazes de experimentar em nossa vida social. Apostamos na independência, mas só vivemos na interdependência. As mulheres são socializadas nessa ambigüidade de valores com mais intensidade que os homens. Talvez, por isso, a velhice seja uma experiência de maior continuidade para as mulheres: o feminino imposto pela velhice é já seu velho conhecido.
A fragilidade que acompanha a velhice não deve ser entendida como sinônimo de incapacidade para a vida social. A discriminação sofrida pela velhice não é ditada apenas pelo corpo velho e com limitações. É resultado de um jogo complexo entre limitações individuais e estrutura social pouco sensível à necessidade de cuidado. O pressuposto da independência permeia nossa estrutura social: desde a arquitetura do espaço à exigência de direitos. Esse pressuposto irrefletido, infelizmente, é o que aguça a fragilidade da velhice: para além do corpo velho, há a opressão de uma estrutura social pouco sensível à interdependência. Mas essa relação complexa entre corpo e sociedade é uma experiência de vida comum a outro grupo de pessoas - os deficientes. Ser velho é, portanto, um misto dos valores do feminino com a experiência da deficiência: necessita-se reconhecer a interdependência, o valor do cuidado e das limitações do corpo. É preciso acreditar na independência e na autonomia, mas reconhecer as limitações de seu exercício pleno.



Assim como as mulheres e os deficientes, os velhos também nos mostram que grande parte da fragilidade da velhice não é imposta pelo corpo com limitações ou dependências, mas por valores e práticas sociais pouco sensíveis à diversidade. É claro que é possível contestar que nossa vida social jamais será sensível a toda forma de diversidade e demanda por justiça. Mas isso não significa admitir que algo que é parte de nossa condição humana compartilhada, como é a deficiência ou a velhice, não deva ascender ao patamar de questão social central para nossas políticas públicas, para nossas lutas por justiça ou mesmo de virtude moral compartilhada. Uma sociedade que reconheça e assuma a centralidade do cuidado para a decência da vida humana e da cultura pública será certamente uma sociedade em que os velhos não estarão à margem da vida social.

 

 

Debora Diniz é doutora em antropologia e diretora da ONG Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero

 

 

 

 

 

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Fragilidade, envelhecimento e desamparo

 


por Delia Catullo Goldfarb

 

 

Finalmente, atingimos a tão sonhada longevidade, atualmente é possível chegar aos 90 anos e mais. Em pouco tempo, a esperança de vida ao nascer, aumentou quase 40 anos. As crianças que hoje nascem deverão organizar suas vidas para superar os 100 anos. Mas a vida mais longa e saudável nem sempre garante qualidade e bem-estar. A pesar de muitos idosos viverem muito bem até idades muito avançadas, é cada vez mais freqüente o aparecimento de situações de fragilidade física e vulnerabilidade social.



A chamada "condição de fragilidade" se relaciona com um declínio natural de todo organismo vivo, com uma crescente falta de equilíbrio das funções, com a falta de harmonia no funcionamento de nosso organismo. Quer dizer que é possível sofrer certo grau de fragilidade sem estar doente. Porém, o enfraquecimento geral provocado pelos múltiplos fatores que provocam a fragilidade acaba facilitando o aparecimento de doenças.



As mais recentes pesquisas associam a intensidade da condição de fragilidade à presença de estressores que aceleram o declínio e impedem a harmonização orgânica.



É importante destacar que esses estressores que afetam o organismo podem se originar em diversas situações, como pobreza, tristeza, dificuldades no cotidiano, falta de apoio, conflitos familiares, dor crônica, situações de injustiça, angústia, ou seja, fatores que, por causar alto nível de sofrimento e falta de satisfação prolongada, representam um excesso ante o qual corpo e alma sofrem sem encontrar uma saída. Então, serão sobre esses fatores que deverão ser aplicados os labores preventivos.



O panorama será ainda pior se a pessoa se sente desamparada e não encontra ajuda, amparo, proteção, solidariedade


. E a fragilidade se agravará se essa situação for ao encontro de uma estrutura de personalidade especialmente sensível a essa problemática. Então, além do declínio biológico e da vulnerabilidade social, há fatores psíquicos, culturais e políticos que contribuem para a montagem dessa condição de fragilidade, e é sobre isso que desejo chamar a atenção.



Embora seja normal sentir-se frágil e desamparado em diversas situações ao longo da vida, a fragilidade física é mais intensa e definitiva na velhice. Se a isso agregamos o sofrimento pela discriminação e o preconceito derivados de uma imagem social negativa, o descaso das políticas de proteção social e as mudanças sociais estruturais das últimas décadas - especialmente as que se referem à estrutura familiar -, vamos nos encontrar ante um quadro de difícil resolução. Perigos tão reais, como o aumento da violência urbana e a perda dos direitos previdenciários, trazem uma sensação de ameaça constante que, sem dúvida, provoca efeitos na saúde física e mental das pessoas.



Finalmente, quando se perde a esperança no futuro como o tempo no qual ainda alguma satisfação é possível, quando se valoriza demais o presente em detrimento do passado, o sofrimento humano aumenta. Nos idosos, a falta de projeção em direção ao futuro pode levar até à extinção do desejo de lutar pelo próprio bem-estar, pode afetar profundamente a saúde e mobilizar um desejo de isolamento tão forte que provocará encapsulamento, interrupção dos vínculos, desejo de esquecimento do mundo, podendo derivar em depressão, processo demencial ou alguma outra patologia.



Se pensarmos na origem da vida psíquica, podemos observar que o bebê nasce em condição de grande fragilidade, necessitando de um outro que cuide dele; é necessário que alguém o alimente, o proteja, senão ele morre, e o bebê deverá poder confiar nessa proteção. Essa condição de recém-nascido, de ser desamparado que precisa dos cuidados de outro, deixará marcas e será revivida cada vez que se apresentem situações de sofrimento, necessidade, abandono. Com o desamparo originário, inaugura-se então uma modalidade de confiança no vínculo, a confiança no fato de ser socorrido sempre que se precisar. Assim, a situação de desamparo originário atua como condição de estruturação psíquica que marca o modelo vincular e a forma dos laços sociais.



Desde o início da vida, ensaiam-se formas de relação com os outros dos quais se vai depender em diferentes situações ao longo da existência. Serão experiências de medo, confiança, prazer, agressividade ou amor, dependendo da qualidade dos cuidados que foram oferecidos ao bebê nessa primeira fase de sua vida. Isso trará como reação a necessidade e produção de vínculos solidários que ofereçam apoio e cuidados fundamentais sempre que a vida se apresente ameaçadora, cada vez que ela nos confronte com aquilo que sentimos que não podemos enfrentar em solidão. A partir dessa experiência, uma das maiores ameaças vitais será a fragilidade dos vínculos e o medo de perder o amor do outro, o que deixa o ser humano no maior desamparo, fragilizado, sem proteção ante uma série de perigos e sofrimentos.



Analisando alguns aspetos culturais, vemos que na contemporaneidade não há mais lugar para o velho exercer seu papel de transmissor da tradição e dos valores ancestrais, e tampouco há muitos lugares para aqueles que querem permanecer verdadeiramente ativos e socialmente atuantes. Produções como as culturais, artísticas, intelectuais, de lazer ou de cuidados, não têm investimentos nem são valorizadas quando realizadas por um idoso. Ainda não se reconhecem lugares sociais nos quais exista uma real necessidade dessa atividade. Assim, o velho deixou de ser um patrimônio, transformando-se em um encargo social. Os velhos são empurrados para as bordas da estrutura social, à perda de todo poder, até sobre si mesmos.



A cultura cria definições e promove uma linguagem que categoriza os cidadãos segundo gênero ou faixas etárias, determinando desse modo as relações sociais, tanto as de aliança, quanto as de conflito, de solidariedade ou dominação. Só para citar um exemplo de discurso social de exclusão, pensemos no preconceito embutido no uso da palavra "benefícios" quando realmente se trata de "direitos". Vemos que, segundo essas categorias, o velho é um problema - ou um favorecido, goza de favorecimento e não de direitos.



Quando um velho diz "no meu tempo", está dizendo que não tem presente, que só pode existir em relação ao passado, que o tempo atual não lhe pertence, e menos ainda o futuro, e aqui já entramos em uma consideração filosófico-existencial com grande poder de determinação sobre a forma como o ser humano pensa a vida (e a morte). Refiro-me à consciência de finitude, a esse sentimento de saber-se mortal. Tal consciência, em idades muito avançadas, encolhe o futuro, encurta as esperanças e não deixa tempo para projetos. O sentimento de finitude é elaborado ao longo da vida nos diversos contatos com a morte, podendo, em situações favoráveis, gerar um sentimento sublime de serenidade e sabedoria. Em situações adversas, quando o sofrimento é excessivo, a finitude não pode ser elaborada e será sentida como um limite intransponível, como o destino iniludível que se apresenta ao término de um caminho de declínio marcado por perdas intermináveis.



Para minimizar a condição de fragilidade inevitável quando a vida avança no tempo, aumentar o bem-estar é fundamental. Isso inclui a possibilidade real de realizar investimentos afetivos; contar com redes de apoio e laços permanentes, além de ter a oportunidade de criar vínculos renováveis e significativos.



Vínculos, enfim, que restaurem a auto-estima perdida junto com a perda dos papéis sociais; que contemplem um projeto de felicidade possível; que reconstruam a capacidade de desejar; que legitimem a palavra; que exijam o cumprimento dos deveres tanto quanto o exercício dos direitos. Que façam, enfim, de um cidadão idoso desabilitado e marginalizado, um cidadão pleno... apesar da fragilidade.

 

 

Delia Catullo Goldfarb é psicanalista com especializaçõa em gerontologia

 

 

 

 

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