
IDADE
AVANÇADA
Ilustrações:
www.marcosgaruti.com
A expectativa de vida vem aumentando e, hoje, o Brasil conta com cerca
de 14,5 milhões de habitantes acima de 60 anos. No entanto, à
medida que as pessoas alcançam idades avançadas, limitações
físicas - e muitas vezes psicológicas - tendem a se acentuar,
comprometendo a autonomia do indivíduo. Esse foi o foco das discussões
do Seminário Nacional Velhice Fragilizada, realizado em novembro
pelo Sesc São Paulo na unidade provisória Avenida Paulista.
O objetivo foi refletir acerca de ações em favor da terceira
idade por meio de debates sobre as necessidades dos idosos que se encontram
em situação de dependência. No Em Pauta desta edição,
a discussão continua com artigos exclusivos da psicanalista especializada
em gerontologia Delia Catullo Goldfarb e da antropóloga Debora
Diniz.
leia o artigo
A velhice
Fragilidade,
envelhecimento e desamparo

A
velhice
por
Debora Diniz
Como definir a velhice?
Para Mário Quintana, a "velhice é quando um dia as
moças começam a nos tratar com respeito e os rapazes sem
respeito nenhum". A resposta do poeta gaúcho não deve
ser entendida apenas como uma ironia entre as gerações.
Quintana era um homem de meia-idade quando escreveu esse verso, por isso
seu senso aguçado para compreender a velhice também como
uma experiência de gênero entre homens e mulheres. Envelhecer
é aproximar-se do espaço socialmente ocupado pelas mulheres.
É fragilizar-se, enfraquecer-se, reconhecer a dependência
e experimentar o cuidado. Esses são papéis tradicionalmente
identificados como femininos e, por uma sobreposição de
gênero, considerados como atributos das mulheres. A velhice nos
força a uma experiência feminina do mundo social.
A velhice é uma condição humana. Ou ao menos uma
condição humana para todas as pessoas vivas. Essa pode parecer
uma afirmação tautológica - a velhice é uma
condição humana para quem está vivo -, mas há
uma forma mais profunda de compreendê-la. Apesar de ser uma condição
humana, a experiência da velhice não está disponível
para todas as pessoas: a possibilidade de uma vida extensa não
é uma escolha cujas variáveis estão sob nosso controle.
Doenças, infortúnios ou o acaso nos impedem de experimentar
a velhice. Isso faz da velhice uma fase paradoxal de nossas vidas: por
um lado, nos obriga a uma mudança radical de perspectiva diante
da vida social, por outro, não basta a vontade de ser velho para
experimentar a velhice. Há imponderáveis que impedem a chegada
da velhice, mas também não basta se manter em sobrevida
para conhecer a velhice como um fenômeno social.
O desenvolvimento material, em especial o avanço das técnicas
médicas, aumentou nossas chances de viver e experimentar a velhice
como um fenômeno social. O número de velhos cresceu e as
definições sobre quem é o velho também se
modificaram. Estendeu-se nosso ciclo de vida biológico e a conseqüência
é que também se modificou a experiência social da
velhice. Há quem diga que estamos em uma fase de transição
- do velho de Quintana, desrespeitado pelos rapazes e respeitado pelas
moças, para o velho, ícone da geriatria, que "experimenta
a terceira idade com qualidade de vida". Mas, assim como qualquer
outra experiência humana, há diferentes biografias na velhice.
Há quem considere a velhice uma chatice, como Quintana a descreveu
em uma entrevista, mas há quem a entenda como a melhor fase da
vida.
Indiferentemente a como se descreva a velhice, pois essa é uma
experiência tão plural quanto a diversidade humana, há
algo em comum a todos os velhos. A velhice redefine o indivíduo,
e essa redescrição do papel social é tanto mais intensa
ou mais distante quanto o velho tiver construído sua biografia
dos papéis sociais do feminino e do deficiente. Ser velho é
necessitar de cuidado, é reconhecer limitações físicas,
cognitivas ou mentais. Como regra geral, quanto mais velha uma pessoa,
mais vulnerável. Vulnerabilidade, no entanto, não significa
incapacidade para a vida social ou ausência de livre-arbítrio.
A velhice não retira do indivíduo a capacidade de escolha
ou de estabelecer preferências e tomar decisões livres e
informadas. É simplesmente um descritor que identifica a fragilidade,
a dependência e a demanda de um corpo por cuidado. Não é
sinônimo de um julgamento moral sobre o sentido da vida na velhice,
mas das relações sociais que se estabelecem em torno de
um corpo velho.
A velhice desafia nosso sistema social em alguns de seus pilares. Um deles
é o pressuposto de que somos seres autônomos e independentes.
Ao contrário do que somos socializados a crer, não somos
independentes. Acreditamos no valor moral da independência e da
autonomia, mas nossa vida social é um exercício contínuo
de interdependência e de autonomia relacional. Há, portanto,
um jogo entre o que acreditamos ser e o que somos capazes de experimentar
em nossa vida social. Apostamos na independência, mas só
vivemos na interdependência. As mulheres são socializadas
nessa ambigüidade de valores com mais intensidade que os homens.
Talvez, por isso, a velhice seja uma experiência de maior continuidade
para as mulheres: o feminino imposto pela velhice é já seu
velho conhecido.
A fragilidade que acompanha a velhice não deve ser entendida como
sinônimo de incapacidade para a vida social. A discriminação
sofrida pela velhice não é ditada apenas pelo corpo velho
e com limitações. É resultado de um jogo complexo
entre limitações individuais e estrutura social pouco sensível
à necessidade de cuidado. O pressuposto da independência
permeia nossa estrutura social: desde a arquitetura do espaço à
exigência de direitos. Esse pressuposto irrefletido, infelizmente,
é o que aguça a fragilidade da velhice: para além
do corpo velho, há a opressão de uma estrutura social pouco
sensível à interdependência. Mas essa relação
complexa entre corpo e sociedade é uma experiência de vida
comum a outro grupo de pessoas - os deficientes. Ser velho é, portanto,
um misto dos valores do feminino com a experiência da deficiência:
necessita-se reconhecer a interdependência, o valor do cuidado e
das limitações do corpo. É preciso acreditar na independência
e na autonomia, mas reconhecer as limitações de seu exercício
pleno.
Assim como as mulheres e os deficientes, os velhos também nos mostram
que grande parte da fragilidade da velhice não é imposta
pelo corpo com limitações ou dependências, mas por
valores e práticas sociais pouco sensíveis à diversidade.
É claro que é possível contestar que nossa vida social
jamais será sensível a toda forma de diversidade e demanda
por justiça. Mas isso não significa admitir que algo que
é parte de nossa condição humana compartilhada, como
é a deficiência ou a velhice, não deva ascender ao
patamar de questão social central para nossas políticas
públicas, para nossas lutas por justiça ou mesmo de virtude
moral compartilhada. Uma sociedade que reconheça e assuma a centralidade
do cuidado para a decência da vida humana e da cultura pública
será certamente uma sociedade em que os velhos não estarão
à margem da vida social.
Debora Diniz é
doutora em antropologia e diretora da ONG Anis - Instituto de Bioética,
Direitos Humanos e Gênero
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Fragilidade,
envelhecimento e desamparo
por Delia Catullo Goldfarb
Finalmente, atingimos
a tão sonhada longevidade, atualmente é possível
chegar aos 90 anos e mais. Em pouco tempo, a esperança de vida
ao nascer, aumentou quase 40 anos. As crianças que hoje nascem
deverão organizar suas vidas para superar os 100 anos. Mas a vida
mais longa e saudável nem sempre garante qualidade e bem-estar.
A pesar de muitos idosos viverem muito bem até idades muito avançadas,
é cada vez mais freqüente o aparecimento de situações
de fragilidade física e vulnerabilidade social.
A chamada "condição de fragilidade" se relaciona
com um declínio natural de todo organismo vivo, com uma crescente
falta de equilíbrio das funções, com a falta de harmonia
no funcionamento de nosso organismo. Quer dizer que é possível
sofrer certo grau de fragilidade sem estar doente. Porém, o enfraquecimento
geral provocado pelos múltiplos fatores que provocam a fragilidade
acaba facilitando o aparecimento de doenças.
As mais recentes pesquisas associam a intensidade da condição
de fragilidade à presença de estressores que aceleram o
declínio e impedem a harmonização orgânica.
É importante destacar que esses estressores que afetam o organismo
podem se originar em diversas situações, como pobreza, tristeza,
dificuldades no cotidiano, falta de apoio, conflitos familiares, dor crônica,
situações de injustiça, angústia, ou seja,
fatores que, por causar alto nível de sofrimento e falta de satisfação
prolongada, representam um excesso ante o qual corpo e alma sofrem sem
encontrar uma saída. Então, serão sobre esses fatores
que deverão ser aplicados os labores preventivos.
O panorama será ainda pior se a pessoa se sente desamparada e não
encontra ajuda, amparo, proteção, solidariedade
. E a fragilidade se agravará se essa situação for
ao encontro de uma estrutura de personalidade especialmente sensível
a essa problemática. Então, além do declínio
biológico e da vulnerabilidade social, há fatores psíquicos,
culturais e políticos que contribuem para a montagem dessa condição
de fragilidade, e é sobre isso que desejo chamar a atenção.
Embora seja normal sentir-se frágil e desamparado em diversas situações
ao longo da vida, a fragilidade física é mais intensa e
definitiva na velhice. Se a isso agregamos o sofrimento pela discriminação
e o preconceito derivados de uma imagem social negativa, o descaso das
políticas de proteção social e as mudanças
sociais estruturais das últimas décadas - especialmente
as que se referem à estrutura familiar -, vamos nos encontrar ante
um quadro de difícil resolução. Perigos tão
reais, como o aumento da violência urbana e a perda dos direitos
previdenciários, trazem uma sensação de ameaça
constante que, sem dúvida, provoca efeitos na saúde física
e mental das pessoas.
Finalmente, quando se perde a esperança no futuro como o tempo
no qual ainda alguma satisfação é possível,
quando se valoriza demais o presente em detrimento do passado, o sofrimento
humano aumenta. Nos idosos, a falta de projeção em direção
ao futuro pode levar até à extinção do desejo
de lutar pelo próprio bem-estar, pode afetar profundamente a saúde
e mobilizar um desejo de isolamento tão forte que provocará
encapsulamento, interrupção dos vínculos, desejo
de esquecimento do mundo, podendo derivar em depressão, processo
demencial ou alguma outra patologia.
Se pensarmos na origem da vida psíquica, podemos observar que o
bebê nasce em condição de grande fragilidade, necessitando
de um outro que cuide dele; é necessário que alguém
o alimente, o proteja, senão ele morre, e o bebê deverá
poder confiar nessa proteção. Essa condição
de recém-nascido, de ser desamparado que precisa dos cuidados de
outro, deixará marcas e será revivida cada vez que se apresentem
situações de sofrimento, necessidade, abandono. Com o desamparo
originário, inaugura-se então uma modalidade de confiança
no vínculo, a confiança no fato de ser socorrido sempre
que se precisar. Assim, a situação de desamparo originário
atua como condição de estruturação psíquica
que marca o modelo vincular e a forma dos laços sociais.
Desde o início da vida, ensaiam-se formas de relação
com os outros dos quais se vai depender em diferentes situações
ao longo da existência. Serão experiências de medo,
confiança, prazer, agressividade ou amor, dependendo da qualidade
dos cuidados que foram oferecidos ao bebê nessa primeira fase de
sua vida. Isso trará como reação a necessidade e
produção de vínculos solidários que ofereçam
apoio e cuidados fundamentais sempre que a vida se apresente ameaçadora,
cada vez que ela nos confronte com aquilo que sentimos que não
podemos enfrentar em solidão. A partir dessa experiência,
uma das maiores ameaças vitais será a fragilidade dos vínculos
e o medo de perder o amor do outro, o que deixa o ser humano no maior
desamparo, fragilizado, sem proteção ante uma série
de perigos e sofrimentos.
Analisando alguns aspetos culturais, vemos que na contemporaneidade não
há mais lugar para o velho exercer seu papel de transmissor da
tradição e dos valores ancestrais, e tampouco há
muitos lugares para aqueles que querem permanecer verdadeiramente ativos
e socialmente atuantes. Produções como as culturais, artísticas,
intelectuais, de lazer ou de cuidados, não têm investimentos
nem são valorizadas quando realizadas por um idoso. Ainda não
se reconhecem lugares sociais nos quais exista uma real necessidade dessa
atividade. Assim, o velho deixou de ser um patrimônio, transformando-se
em um encargo social. Os velhos são empurrados para as bordas da
estrutura social, à perda de todo poder, até sobre si mesmos.
A cultura cria definições e promove uma linguagem que categoriza
os cidadãos segundo gênero ou faixas etárias, determinando
desse modo as relações sociais, tanto as de aliança,
quanto as de conflito, de solidariedade ou dominação. Só
para citar um exemplo de discurso social de exclusão, pensemos
no preconceito embutido no uso da palavra "benefícios"
quando realmente se trata de "direitos". Vemos que, segundo
essas categorias, o velho é um problema - ou um favorecido, goza
de favorecimento e não de direitos.
Quando um velho diz "no meu tempo", está dizendo que
não tem presente, que só pode existir em relação
ao passado, que o tempo atual não lhe pertence, e menos ainda o
futuro, e aqui já entramos em uma consideração filosófico-existencial
com grande poder de determinação sobre a forma como o ser
humano pensa a vida (e a morte). Refiro-me à consciência
de finitude, a esse sentimento de saber-se mortal. Tal consciência,
em idades muito avançadas, encolhe o futuro, encurta as esperanças
e não deixa tempo para projetos. O sentimento de finitude é
elaborado ao longo da vida nos diversos contatos com a morte, podendo,
em situações favoráveis, gerar um sentimento sublime
de serenidade e sabedoria. Em situações adversas, quando
o sofrimento é excessivo, a finitude não pode ser elaborada
e será sentida como um limite intransponível, como o destino
iniludível que se apresenta ao término de um caminho de
declínio marcado por perdas intermináveis.
Para minimizar a condição de fragilidade inevitável
quando a vida avança no tempo, aumentar o bem-estar é fundamental.
Isso inclui a possibilidade real de realizar investimentos afetivos; contar
com redes de apoio e laços permanentes, além de ter a oportunidade
de criar vínculos renováveis e significativos.
Vínculos, enfim, que restaurem a auto-estima perdida junto com
a perda dos papéis sociais; que contemplem um projeto de felicidade
possível; que reconstruam a capacidade de desejar; que legitimem
a palavra; que exijam o cumprimento dos deveres tanto quanto o exercício
dos direitos. Que façam, enfim, de um cidadão idoso desabilitado
e marginalizado, um cidadão pleno... apesar da fragilidade.
Delia Catullo Goldfarb
é psicanalista com especializaçõa em gerontologia
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