Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Entrevista

REVISTA E Dezembro - 2006

 

 

 

 

FRANZ KRAJCBERG

 

O artista plástico polonês radicado no Brasil fala de como usa seu trabalho em prol do meio ambiente

 

Franz Krajcberg nasceu em Kozienice, Polônia, no ano de 1921, e em 1945 entrou para a Academia de Belas-Artes de Stuttgart, na Alemanha, onde ficou até 1947. Ex-combatente do Exército Soviético durante a Segunda Guerra Mundial, emigrou para o Brasil em 1948, fixando-se inicialmente em São Paulo, período em que chegou a exercer as funções de pedreiro e faxineiro antes de se tornar ajudante de montagem da I Bienal de São Paulo, em 1951. Defensor ferrenho da natureza, o artista vive, desde 1973, na cidade de Nova Viçosa, sul da Bahia, onde mantém um ateliê até hoje. Tendo convivido com grandes nomes da pintura, como o catalão Pablo Picasso e o francês Georges Bracque, Krajcberg já expôs suas obras em algumas das mais importantes mostras do mundo, entre elas as bienais de São Paulo e de Veneza. Em entrevista exclusiva à Revista E, o artista plástico contou um pouco de sua atual fase de atividades, na qual trabalha com madeiras retiradas de árvores destruídas em queimadas, do motivo pelo qual trocou a Europa pelo Brasil e lamentou o descaso das autoridades acerca da questão da preservação do meio ambiente. A seguir, trechos.


Você constrói peças grandes, que necessitam de trabalho manual. Hoje, com 85 anos de idade, como está sua rotina?
Trabalho normalmente como antes. Desta vez, como tenho muitos compromissos aqui em São Paulo, Belo Horizonte, Ouro Preto e Rio de Janeiro, tenho ainda mais trabalho.



Esse aumento de atividade vem da necessidade de criar mais?
Não, isso não existe. Normalmente o trabalho e a criação estão juntos. A questão é que tenho compromissos para mostrar meus trabalhos. Antes era diferente, eu não tinha tantos compromissos.



Houve alguma modificação no seu modo de encarar sua produção ao longo da carreira?
Meu trabalho está mudando ou mostra mudanças porque, depois que as florestas foram destruídas, depois do fogo, achei a madeira diferente [Krajcberg atualmente usa em suas obras madeira retirada de árvores destruídas em queimadas]. Agora, eu nunca sei o que vai sair especificamente. Trabalho, crio e corto para mostrar uma peça que expresse minha revolta. Se não está mostrando isso é porque os pedaços de madeira que encontrei depois da destruição não foram muito felizes para eu poder fazer algo que cumpra essa função. Mas não é normal acontecer isso. Então, não há regras, tudo depende do material com o qual vou trabalhar.



Como surgiu a madeira queimada no seu processo de trabalho?
É uma história longa e tem um pouco de sensibilidade em relação à vida. Houve uma época em que viajava muito para o alto Mato Grosso e Amazônia. E lá eles destroem a floresta para plantar, por exemplo, soja transgênica. Só que para isso - não sei como andam as coisas agora - era preciso comprar sementes dos Estados Unidos. Achei o maior absurdo do mundo. Essa prática está destruindo a Amazônia, estão simplesmente botando fogo nela. Tudo isso se reflete muito no meu trabalho, quero mostrar a destruição da vida neste planeta. Não se deve esquecer que as florestas do sul da Bahia, do Espírito Santo e de Minas Gerais foram as mais lindas e ricas do planeta. No entanto, foram destruídas em 50 anos. Tenho consciência disso e quero exprimir minha revolta através do que faço. Porque não são somente os homens que vivem neste planeta, todos os animais e vegetais têm o direito de viver aqui em harmonia. Com isso, meu trabalho está na direção de defender a vida.



Quando você achou que era importante usar árvores calcinadas e transformá-las em obras de arte?
Eu não uso essa expressão "obra de arte". O Museu Franz Krajcberg [previsto para ser instalado no Parque do Ibirapuera] é um lugar que deve apresentar o diálogo entre ecologia e vida. Meu diálogo se dá em função de defender a vida. Muitas vezes trago um pedaço de carvão deixado de uma árvore, que já foi uma bela vida, e questiono o que foi feito dessa bela vida, da qual só sobrou aquele pedaço de carvão. Queimada e destruída, reduzida a carvão. Então, não estou ligado no conceito de ser artista ou de fazer arte, essa linguagem não existe em mim nem no meu trabalho. Se for uma expressão artística para defender ou mostrar a minha revolta, está certo. Se for para dizer que estou fazendo um museu artístico, não está certo. Estou fazendo um espaço ecológico para discutir, reunir e fazer o que for possível para defender a vida neste planeta.



Quais são os passos do trabalho a partir do momento em que você está com esse material?
Nunca sei o que vou fazer. Nunca sei como vai surgir e como vou gritar minha revolta. E não é fácil de fazer. Nem sempre consigo exprimir o que eu gostaria com essas formas que achei depois do fogo.



Houve uma fase do seu trabalho, lá pelos anos 80, em que você fazia obras ligadas ao mar, à praia. Obras que você fazia numa ilha. Como é essa história?
Havia uma pequena ilha, onde eu fazia esse trabalho, que não existe mais, o mar a destruiu. O que já me leva a refletir que o mar está aumentando ano após ano. E a cada dia que eu fazia essas impressões [gravuras] o resultado dependia da situação do vento, do movimento do mar, porque cada dia é diferente. Eu fazia moldes de gesso e aplicava papel. Então, fazia a cópia desses pedaços que eu procurava na maré baixa, depois que ela já havia deixado esse desenho. Não faço mais isso, mas continuo trabalhando com gesso, no qual aplico pigmentos naturais.



Esse trabalho era, então, uma espécie de registro do tempo e suas condições?
Não há dois dias iguais porque tudo depende do movimento do mar e do vento. Por exemplo, o vento que vai do Sul do país para a Bahia torna-se muito violento lá. Então, forma desenhos muito diferentes.



Depois de flagrar essa questão do tempo, havia alguma interferência sua nesse registro?
Só a aplicação, fazia a moldura. Não sou de me exprimir muito tempo com a mesma coisa, tudo muda.



Você acredita que seus objetos, de uma maneira ou de outra, conseguem provocar uma discussão acerca da destruição da natureza?
Isso é difícil de falar. Estou na luta há muitos anos, participei de todas as reuniões mais importantes sobre ecologia, e fiz de tudo para me exprimir. Agora, precisamos ver a realidade do que está acontecendo neste planeta. Só quero me exprimir, participar e lutar pelo resto que ainda existe. Mas o descuido do povo brasileiro me machuca muito, ele só vira patriota quando tem jogo de futebol. Aí vai ao trabalho com a bandeira do país. Esse patriotismo é muito provinciano.



Mas o fato é que seu trabalho, nestes últimos anos, fez com que a ecologia fosse discutida de outro patamar, o da arte. Essa era a intenção?
Trabalho com a coisa morta para mostrar a destruição que cada vez é mais forte. Isso que estou fazendo é para me exprimir nesse sentido. Acho que há importância em mostrar como estamos excluindo as coisas. Se você pegar a mata atlântica, vai ver que são pouquíssimas áreas que ainda resistem. Amanhã, perguntaremos quantas árvores foram deixadas no Amazonas. No futuro, os museus terão árvores que sobreviveram à destruição. O Mato Grosso deveria mudar o nome, porque hoje não tem mais nem mato fino, destruíram quase totalmente as florestas de lá. O Brasil ainda mantém o nome de uma árvore que não existe mais [o pau-brasil, abundante na época do descobrimento]. A destruição está na alma do brasileiro, e cada vez mais forte. As pessoas dizem: "Vamos fazer leis na Amazônia". Mas continuam destruindo.



Você acredita que a atuação artística seja um caminho para a conscientização política?
As pessoas devem ter consciência, a arte deve acompanhar a evolução do homem. Senão, que arte seria essa? Na entrada do século 20, com a revolução tecnológica e com a nova indústria, a arte trouxe outras formas de expressão, e grandes artistas participaram não só com suas obras, mas também de uma forma política. Isso desapareceu completamente no final do século 20. Estamos esperando que a arte acompanhe a evolução da entrada deste novo século.



Por que você acha que houve essa separação?
Esse vazio político é mundial, não é só brasileiro. Agora estamos esperando que a arte comece a tocar nas necessidades do novo século. Temos grandes avanços tecnológicos e científicos, mas não há nenhum político no mundo que possa dialogar com o novo século. Nunca houve um vazio político tão grande. É a primeira vez na história da humanidade que temos a preocupação com a saúde do planeta. Qual arte vai participar desses itens? Primeiro a arte deve abrir a porta para entrar neste novo século. Porque no século 20 se via, por exemplo, o cubismo da Rússia - muitos artistas eram da Sibéria e participavam ativamente. Aí veio o abstrato, que ainda tinha sua conotação política. Mas, mesmo assim, no final, quem dominava o movimento artístico era o mercado. O mercado não se preocupa com a arte que você deve acompanhar, e sim com a peça que ele pode vender. Agora a crise do mercado, no final do século 20, foi muito marcante. Centenas de galerias fecharam, e os preços caíram porque o mercado já havia explorado demais. Não tem sentido um quadro do Rauschenberg [Robert Rauschenberg, 1925, pintor pop norte-americano] custar o mesmo que um do Rembrandt. Isso aconteceu porque o mercado norte-americano subiu os preços como queria. Temos uma arte norte-americana, mas a arte deveria ser mundial. Existe a arte brasileira? Não, temos a arte que é feita no Brasil. A arte primitiva brasileira é a que mais tem força para dizer que nasceu neste país.



Qual seria a marca da arte brasileira?
Não é especificamente brasileira, a arte é mundial. Existem abstracionistas com muito talento em Londres, nos Estados Unidos, em Paris, em todo lugar. Agora, se um brasileiro pinta a abstração de forma diferente, não quer dizer que haja uma arte brasileira.



Você acredita na idéia de que determinadas obras só poderiam ter sido feitas em determinados lugares e épocas? É possível ter esse caráter temporal e regional na obra?
Acho que é difícil discutir esse assunto, como disse, a arte é internacional. Acho que temos de ter consciência de que hoje não existe uma arte especificamente francesa ou americana ou brasileira. É tudo geral, a única coisa que diferencia a expressão é o talento do artista. Então, não se pode falar de uma arte brasileira, francesa ou italiana. E sim que é uma arte feita por talentos brasileiros, franceses e italianos. E sempre foi assim, vemos isso desde o século 15. Mas houve um tempo em que havia mudança, até chegar o impressionismo, no final do século 19. O impressionismo foi uma ruptura muito forte com a academia. Hoje em dia, quando vemos quadros do Cézanne ou de Van Gogh, vemos que foram talentos que mostraram uma ruptura. Mas esse mesmo movimento também havia na Alemanha, apesar de não ser tão grande quanto na França.




Essa definição não vale nem para, por exemplo, aquelas obras antropofágicas da Tarsila do Amaral?
De todos, quem eu acho mais original é a Tarsila. Mas não podemos esquecer que ela estudou com Léger [1881-1955, pintor francês]. Contudo, ela exprimiu temas brasileiros. E acho que ela é uma das mais originais, mas ela trabalhou e estudou na França. A única coisa que podemos dizer que realmente é original é o primitivismo brasileiro.



Você, que participou da primeira Bienal de São Paulo, como vê a evolução de nossa arte apresentada nessa mostra?
Acho que hoje em dia a Bienal não tem sentido nenhum, não só aqui como em Veneza também. Mas Veneza está tentando acompanhar a evolução para abrir as portas do novo século, diferentemente daqui.



Por que perdeu esse sentido?
Por causa do peso do mercado. O mercado não deixava um artista que vendia fazer uma nova arte. Então, os artistas estavam completamente presos ao mercado. Isso diminuiu um pouquinho porque o mercado passa por uma crise muito forte.



Mas o mercado parece ser inexorável. Ou seja, ele está aí e está misturado com a arte, dado que não há mais os grandes patrocinadores de arte - como os reis, a igreja e os mecenas. Então, é o próprio mercado e a construção crítica da mídia que desempenham esse papel. Quer dizer, esse é o status quo da arte, não?
Não é bem assim. Ainda é o mercado que lança um artista. E os artistas acabam sofrendo grande influência do mercado para poder ser conhecidos mundialmente. Embora haja movimentos marcantes, como a Bauhaus [escola de artes e arquitetura de vanguarda que funcionou na Alemanha de 1919 a 1933, e é considerada uma das primeiras escolas de design do mundo] e o expressionismo alemão. Mas quando chegou o expressionismo alemão? Quando a Alemanha passava por uma crise de miséria, com as pessoas sem trabalho e com a existência de muitos movimentos sociais. Acho esse tipo de arte muito válido, ele acompanhou o momento da vida da Alemanha. Então, eles se expressaram com muita violência. Basta ver O Grito, de Munch [Edvard Munch, 1863-1944, pintor norueguês]. No momento em que a arquitetura estava em uma decadência absoluta, a Bauhaus surgiu e inovou - a indústria e a vida precisavam de design. Bauhaus deu uma saída enorme para o design moderno, acompanhando a evolução industrial. Então, devemos olhar nesse sentido: os grandes movimentos vieram da necessidade de sustentar tudo o que existia no momento.



Na sua opinião, quais foram os grandes momentos da arte mundial?
Vários. Primeiro o cubismo, depois o abstracionismo, o construtivismo, que veio da Bauhaus. O tachismo [tendência da pintura nos anos 50 caracterizada pela projeção de manchas e formas feitas com a bisnaga de tinta diretamente na tela] teve sua importância com Pollock [1912-1956, pintor expressionista abstrato americano], mas não se pode dizer que era uma arte norte-americana. Artistas faziam isso antes do Pollock, na Escola de Paris. É claro que de outra maneira, não faziam quadros com a dimensão dos americanos, mas eram importantes.



Você conviveu com Picasso. Como era a relação de vocês dois e o que você aprendeu com ele?
Não aprendi com ele. Eu acompanhava todo o movimento artístico. Acho que ele era um grande artista, tinha muita habilidade para pintar e sua arte sofreu várias mudanças - como o momento da arte africana, quando foi influenciado pelo design africano. Você pode comparar os desenhos dele com os de Rembrandt ou de outros fenômenos artísticos. Devemos considerar que ele foi um dos maiores artistas do século 20.



Você disse que acompanhava todo o movimento artístico. Teve mais algum grande nome da arte com quem você teve contato?
Georges Bracque [1882-1963, pintor francês]. Ele trabalhava no mesmo ateliê que Picasso. Um influenciava o outro. Bracque dizia que havia inventado o cubismo e não Picasso, mas na realidade esse tipo de arte vem da Rússia. A inveja que Bracque tinha de Picasso era enorme. Porque Bracque foi sempre um homem adoentado, Picasso não. Picasso pintava, fazia cerâmicas, esculturas, gravuras, ele tinha um vigor muito grande, destacava-se técnica e politicamente. Já Bracque não tinha isso.



O que você acha da pintura do Henri Matisse?
Eu tenho paixão por Léger, poderia passar horas olhando seus quadros. Mas um dia vi uma grande exposição de Matisse em Paris que, para mim, fez Léger cair. A mostra trazia umas colagens impressionantes. A pintura dele é maravilhosa, principalmente no final, quando ele não podia mais pintar. E o seu corte de papel colado é único. Já a pintura de Léger tinha muita estrutura, e ele era muito ligado ao partido [comunista]. Picasso também era do partido, o retrato que ele fez de Stálin foi um escândalo. Ele saiu do partido por causa desse retrato.



Dessa sua convivência, seja com Bracque, seja com Picasso, o que deu para apreender? Sobrou algo para seu trabalho?
Não, eu acompanhava a história da arte do século 20, isso é um assunto. Porém, a minha vivência e minha revolta não tinham nada a ver com isso. Mas conheci muitos artistas, principalmente da Escola de Paris. Naquela época havia a imigração artística para Paris, que se tornou a cidade da arte e da cultura mundial. Então, fizeram uma grande exposição francesa e não convidaram nenhum desses artistas que vieram de fora. Aí a Bienal de Veneza convidou esses artistas - Picasso, Chagall e muitos outros. Fizeram uma grande manifestação na Bienal, e na entrada eles botaram "Escola de Paris". Foi o maior sucesso da Bienal. Quando a França viu o que estava acontecendo, fez questão de dizer que eram "seus" artistas que estavam expondo lá.



Você gosta do trabalho de Rauschenberg ou Andy Warhol?
Eu prefiro não dizer "gosto ou não gosto". Porque, como eu disse, havia movimentos. Mas não é uma arte americana. Às vezes, artistas de outros países faziam suas pinturas no mesmo estilo, mas não usavam quadros medindo 2 metros por 3, como faziam os norte-americanos. O grande mercado, no final do século, é americano. Então, esses pintores contavam com muito apoio do mercado.



Você está morando em Nova Viçosa, na Bahia, há mais de 30 anos. Certa vez, disse que não teria como vir para São Paulo. Como é sair de um grande centro e ir para lugares pequenos? Isso auxilia na sua produção?
Sabe o que é nunca ter uma casa ou nunca dormir na sua cama? Sabe o que é sempre ter de depender dos outros? Eu não queria ir para Nova Viçosa porque não conhecia, foi um acaso ter ido. Encontrei o Zani, arquiteto, em Paris, no fim de 1964. Em 64 ganhei o prêmio da Bienal de Veneza. Aí encontrei Zani, e ele me chamou para ir para o sul da Bahia. Quando vi os manguezais da região, disse: "Meu Deus, eu nunca vi tanto movimento da natureza assim como vejo nos manguezais". O tachismo é nada! A invenção de formas também não é nada perto dessa riqueza que existe nos manguezais. E eu disse que queria ficar. Mas na época houve a quase total destruição das florestas dessa região, a mata atlântica se foi. Se você ler sobre as florestas do mundo, verá lá as florestas do sul da Bahia, do Espírito Santo e de Minas como as mais lindas do planeta. Como é possível que em 50 anos tenham destruído tudo? Por exemplo, o eucalipto arrasa a terra, consome toda a água que a humanidade está precisando agora, e cada vez mais se planta eucalipto. Fazem isso para poder exportar. Mas nunca se perguntam se o dinheiro dessa exportação entra no país. É lamentável. Estou na floresta e tenho muito diálogo com ela. Sinto-me como se minha casa fosse a floresta. É o meu canto, é onde tenho toda a liberdade. Isso tem uma importância enorme na vida. Vim para o Brasil para fugir do homem.


 

 

 

 

volta ao ínício