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Depoimentos

Postado em 05/12/2006

REVISTA E Dezembro - 2006

 

 

PALAVRA LIBERTÁRIA

 

 

A escritora franco-senegalesa Fatou Diome conta um pouco da longa trajetória que teve de percorrer até despontar como uma das revelações da literatura contemporânea

 

 

Fatou Diome, nascida na ilha de Niodor, no Senegal, em 1968, sempre se dedicou a uma literatura que estivesse ligada às suas raízes culturais. Algumas experiências de vida serviram de fonte para que ela produzisse obras como a coletânea de contos La Préférence Nationale (2001) e os romances Le Ventre de l'Atlantique, (2003) e Kétala (2006) - recém-publicado -, que abordam temas como a imigração africana para a Europa, o exílio e o racismo. Dona de um estilo expressivo e cheio de vivacidade, fornece ao leitor elementos que dão um passaporte para o conhecimento da memória, da tradição e da cultura africanas, misturando ficção e realidade.



Em sua primeira visita ao Brasil, a escritora - hoje com obras publicadas em dez idiomas - participou de dois encontros em comemoração aos 60 anos do Sesc que fizeram parte da programação da Temporada Sesc de Artes. Leia a seguir, trechos da palestra de Fatou Diome no Sesc São Caetano, mediada pela professora de história da África da Universidade de São Paulo (USP), Leila Leite Hernandez, autora do livro A África na Sala da Aula - Visita à África Contemporânea (2005).





Fatou por suas próprias palavras
Escrevo desde os 13 anos, quando deixei a pequena aldeia onde nasci, à margem esquerda do pequeno Rio Gâmbia, para estudar em outras cidades do Senegal. A solidão na cidade, o prazer em brincar com as palavras da língua francesa e também o de responder a algumas perguntas que os adultos não sabiam me explicar é que me incentivaram a ser escritora. Às vezes, se terminava um livro e achava que não havia um desfecho, era capaz de voltar e escrever o livro novamente para chegar ao fim que eu desejava. De onde venho, existe a tradição mulçumana - o Senegal tem uma população de 95% de mulçumanos. Uma garota bem comportada, no meu país, não pode falar muito nem falar alto, o que significa, pouca possibilidade de ser ouvida. Por isso, o fato de escrever, de tomar a palavra por meio de um livro, de certa forma, serviu como uma maneira para eu ocupar um lugar reservado aos homens, afinal o poder é sempre tomado pelos que falam. Não dá para imaginar um presidente que não fale a seu povo, por exemplo. Ter a palavra significa ter a liberdade, seja na América, seja na Europa ou na África. Manifestar sua palavra é o mesmo que manifestar sua vontade. Uma mulher que fala, independentemente de onde ou em qual continente ela esteja, denota rebeldia, e, no lugar onde nasci, ser feminista é quase uma necessidade genética.




Tradição e feminismo
Ao contrário do que os conservadores senegaleses pensam, quando se é feminista não se é contra a tradição, mas sim a favor da liberdade. Existem duas práticas comuns, as quais sou contra: a poligamia e a circuncisão. A poligamia é uma doença que nunca vou pegar, e por toda a minha vida lutarei contra a circuncisão. Isso não significa que eu não goste da África. Muito pelo contrário, é por gostar muito que desejo que ela evolua. Para isso, acredito que todos os valores inúteis que nos põem em atraso devem ser jogados fora. Na África, nós, mulheres, éramos empregadas de nossos irmãos e tínhamos o dever de executar todas as atividades domésticas para eles. Quando fui para Europa, pouca coisa mudou, era considerada uma mulher rebelde, pois era mulçumana, negra e divorciada. Deixei de me tornar escrava dos meus irmãos para me tornar escrava do preconceito.



Imigração
A primeira onda de imigração para a Europa foi depois da Segunda Guerra Mundial [1939-1945]. Em 1974, fizeram uma lei na França que tratava do reagrupamento familiar e, apoiados nessa lei, os primeiros imigrantes que chegaram para trabalhar como operários tiveram o direito de também trazer suas famílias. Geralmente, essas mulheres que vinham com seus maridos não trabalhavam e não estudavam, e, com isso, reconstituía-se o sistema familiar africano nas periferias para onde essas famílias imigravam. Depois dessa época, mas ainda nos anos 70, houve a imigração de muitos jovens que iam estudar na Europa. Agora, claro, isso se aplicava apenas aos homens. O movimento migratório das mulheres africanas é recente, só começa nos anos 90.




No meu caso, eu não era uma imigrante que estava sonhando com a Europa. Era casada com um francês que estava trabalhando no Senegal, quando eu ainda estava na universidade. Nós nos conhecemos, casamo-nos e eu o acompanhei para Estrasburgo [França]. Quando lá chegamos, não fui bem recebida pela família dele. Eles esperavam uma Branca de Neve e não uma negra. Nós nos separamos e resolvi permanecer em Estrasburgo. Lá vivi muitas situações de racismo. No começo, eu ia para casa, trancava-me no meu quarto e chorava tentando entender o porquê. Depois de um tempo morando lá, decidi inverter a situação. Os racistas são pessoas muito covardes, se eles lhe disserem uma palavra, você tem de devolver dez, com certeza eles vão recuar. Certa vez, eu estava procurando trabalho e alguém me perguntou por que eu não trabalhava em meu país. Eu respondi que, caso ela não soubesse, havia mais de 20 mil franceses que trabalhavam no Senegal e que eu estava, então, apenas pegando o emprego que eles haviam deixado para trás. Em contrapartida, já fui discriminada em meu país por pessoas como eu. Então, isso significa que a idiotice não tem nacionalidade.



Obras passadas e futuras
Muitas vezes, na África, não sei se em outros lugares também, o que se espera de um escritor é apenas um testemunho ou uma obra mais combativa, não se dá tanto valor à estética, que para mim é tão importante quanto a harmonia entre as palavras e a oralidade. Utilizo em minhas obras uma escrita franco-senegalesa. Escrevo em francês, utilizando os elementos culturais de meu país. Sinto-me completamente integrada a ambas as culturas. Exemplo disso é a palavra de minha língua natal kétala, que significa passar por uma experiência religiosa e é o título de uma de minhas obras. Eu a utilizei justamente por sonhar em dar um sentido em francês para essa palavra. Ainda quero vê-la nos dicionários franceses. Durante um tempo, existia uma moda de utilizar várias palavras das línguas africanas nos romances. Nunca fiz isso, não gosto. É como se houvesse a necessidade de mostrar que nós temos e sabemos usar várias palavras das línguas locais. Isso denota um certo complexo, que nunca tive. Quanto a minhas outras obras, tenho alguns livros já terminados. Tenho um que deverá se chamar Betty, a Lupa, que faz referência aos olhos arregalados da [personagem de quadrinhos e desenhos animados] Betty Boop e também é uma referência à escritora [belga] Marguerite Yourcenar [1903-1987, pseudônimo de Marguerite Cleenewerck de Crayencour], que me traz um prazer enorme com seus livros. Há também outro livro [ainda sem título] que retrata a vida de uma mulher do sul da África que foi levada para a Inglaterra e foi exibida em feiras como uma curiosidade.



"As Áfricas"
Na Europa, a tendência é colocar todos no mesmo saco. O que mais me chocou quando cheguei lá, foi quanto os europeus ignoravam a África. Durante muito tempo meu continente só interessava aos antropólogos e etnólogos. Então, viver na Europa significou certo confronto. Eu tinha de ter a coragem de muitas vezes corrigir idéias errôneas que haviam sido afirmadas como certas. Só para dar um exemplo, uma vez na universidade uma colega me perguntou como eu me sentia morando em um prédio de alvenaria, já que eu havia nascido em uma cabana. Tive de explicar que, ao contrário do que ela pensava, eu tinha nascido em uma casa de alvenaria e não em uma cabana. O que as pessoas ignoram é que a África de Angola e Moçambique é completamente diferente da África do Senegal, que, por sua vez, é diferente da África da Argélia, do Marrocos, da Tunísia e assim por diante. Esses lugares são completamente diferentes da minha aldeia. É verdade também que hoje em dia, devido ao turismo, os europeus conhecem mais a África, e talvez, um dia, isso ajude para que eles a respeitem mais. Chegará um momento em que não se dirá mais "a África", e sim "as Áfricas".

 

A escritora franco-senegalesa Fatou Diome, que esteve presente nas unidades do Sesc de São Caetano e Pinheiros

 

 

 

 

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