Certo ou errado
por Mário
Araújo
Ilustrações:
Marcos Garuti
Sento-me
numa poltrona da sala de espera, contígua às 12 salas de
projeção do complexo cinematográfico Multiplex II.
São 12h30 e um homem de uniforme tira o pó dos móveis,
recolhe o lixo, prepara a ante-sala para receber o público. As
bilheterias ainda estão às escuras. Estou certo ou errado
em estar aqui?, eis a pergunta que me faço.
Sigo lendo meu livro. Tenho medo que o homem de uniforme me interpele.
Ainda são 12h33, as bilheterias no breu, a ante-sala na penumbra.
Forço a vista para ler. O homem de uniforme passa o espanador rente
a mim. Errado que estou, sinto que serei convidado a me retirar.
Cruzo as pernas, os óculos a meio caminho entre os olhos e a ponta
do nariz. Concentro-me na leitura. O homem se afasta, possivelmente afugentado
pela minha postura compenetrada, autoconfiante. Tenho todo o ar de quem
está certo e, portanto, devo estar.
O homem desliza pela vastidão da sala, a ajeitar poltronas, esvaziar
cinzeiros. Não consigo deixar de acompanhar seus movimentos, mesmo
borrados na minha visão, já que as lentes de grau escorregaram
nariz abaixo. Ele passa ao largo, me olhando como se me cercasse. Talvez
esteja à procura de algo mais para ajeitar ou limpar, uma poltrona
recalcitrante, uma partícula de pó ainda não espanada.
Volto a acreditar que estou errado, mas verifico que são 12h41
e o avanço do tempo ao menos atenua a gravidade do meu erro. O
homem de uniforme desaparece. O vento sopra. Um momento de distensão.
Mas logo outros personagens surgem. Um homem de gravata e óculos
escuros, cabelos compridos presos num coque, não suavizando seu
ar de funcionário. Parece estar inspecionando, quem sabe avaliando
o trabalho do homem anterior.
Uma família inteira se aproxima, olham os cartazes. Já são
12h51. Ambos os fatos, a marcha do tempo e a chegada dessas pessoas, me
causam alívio. Mas a família logo vai embora. A cafeteria,
que poderia detê-los, ainda está desativada. Assisto ao homem
de uniforme retornar mais uma vez. Vejo-o de costas, com um feixe de panos
sujos numa das mãos e um frasco de detergente na outra, o corpo
muito encurvado, estatura modesta, o andar difícil mesmo apressado.
Ao vê-lo passar diante do cartaz anunciando o filme Garrincha, a
Estrela Solitária, chego a ter a impressão de que coxeia.
Essa visão, que penso ser derradeira e definitiva do homem de uniforme,
às 12h58, me enche de razão, e me endireito no sofazinho:
a coluna reta de um homem certo.
Um casal agora examina um cartaz, confortáveis na presença
um do outro. Suas vozes altas começam a dispersar a penumbra que
ainda domina o local. Parecem decididos. Não se limitam a vagar
entre anúncios de filmes atuais e futuros. Concentram-se num objetivo.
Ela chega a tecer comentários sobre os atores, recupera na memória
a crítica que leu na Veja. Esparramam-se no sofá grande,
não muito longe de onde estou. O homem de uniforme volta ao recinto,
mas agora completamente desfocado, relegado à margem dos acontecimentos.
Espaneja cantos, asseia os cinzeiros-lixeiras junto das paredes.
Para minha surpresa, o casal levanta-se e vai embora. Mas já há
outras pessoas prestes a romper os limites entre a rua e a ante-sala do
Multiplex II. São 13h07 e a fronteira tornou-se permeável,
com gente que pára na entrada para descansar ou buscar na cafeteria,
ainda fechada, recurso para a sede ou calmante para a fome. A fronteira
entre o certo e o errado também começa a se dissolver. Permaneço
sentado, não avisto mais o homem de uniforme e, mesmo só,
não sou mais deixado pelos murmurinhos que vêm da porta.
O funcionário de cabelo em coque passa mais uma vez, e sua presença
agora parece destoar do ambiente. Some rápido atrás de uma
porta cinza de aço, como se já fosse tarde.
Sinto-me tão certo que quase esqueço o assunto, me desprevino
e sofro uma severa recaída. Já transcorreu muito tempo desde
que comecei a ouvir o bulício vindo da entrada, mas as pessoas
continuam ali. Ninguém ousa adentrar, transpor o limiar das portas
francamente abertas, tão abertas que nem há portas, somente
um vão sem fim que se oferece a quem vem pela calçada. Por
que diabos?
Sou salvo por uma luz acesa na cafeteria e pelo tilintar das xicrinhas,
ruído que sempre considerei inútil e vil, como o latido
dos cães poodle e dos pequineses, um barulho estridente demais
para tudo terminar num gole único e minúsculo. As xícaras
e pires desencadeiam um grande movimento na ante-sala, de gente pedindo
café e pão de queijo, olhando os cartazes, verificando o
horário das sessões.
São 13h19. Já há vida humana por detrás dos
vidros das bilheterias, mas as luzes continuam apagadas. As mocinhas cabisbaixas
e com ar atarefado ignoram a fila que começa a se formar. Sinto-me
totalmente tranqüilo lendo meu livro. Essa pequena amostra de vida
segue seu curso inexorável e eu estou inserido nela. A fila precoce
não me preocupa.
Às 13h36 acendem-se as bilheterias e tudo o mais se ilumina. Há
gente aglomerada diante dos guichês, e também diante da cafeteria,
especialmente ao redor da moça que faz pipoca, e olhando os cartazes,
e conversando, de pé. Isto tudo deveria fazer com que eu me sentisse
mais à vontade, mas, ao contrário. O lugar onde estou volta
a fazer parte da periferia e isso me traz, uma vez mais, como num refluxo,
a sensação de que estou errado. Procuro mudar de assunto
e agarro-me a meu livro com unhas e olhos. Cruzo as pernas. Estou na minha.
Mesmo sem arredar a atenção da leitura, porém, sinto
a ante-sala se despovoar. A perspectiva de regredir à situação
de uma hora atrás me causa grande desalento. Voltarão os
homens de uniforme, para dar conta da pipoca entornada e das cinzas de
cigarro, papéis de bala. Não há escapatória
senão encontrar meu lugar no fim da fila.
Às 13h57, a fila é apenas um fiapo na ante-sala quase vazia.
Levanto-me e corro para alcançá-la, como se fosse o ônibus.
Chego quando a última senhora está conferindo o troco e
garanto o meu ingresso, bem a tempo. Às 14 horas em ponto, logo
atrás da mesma mulher, que ainda luta para acomodar a carteira
na bolsa, entrego meu ingresso para um rapaz de jaleco cinza e mergulho
na plenitude da escuridão.
Mário
Araújo é autor de A Hora Extrema (Editora 7 Letras)
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