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REVISTA E - fev 2006

 

 

NEGÓCIO (I)LÍCITO



por Wálter Fanganiello Maierovitch



O juiz Wálter Fanganiello Maierovitch nasceu em São Paulo, em 1947, e formou-se em direito pela Universidade de São Paulo (USP) em 1971. Foi representante do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU) para atuação no United Nations Office for Drug Control (Escritório das Nações Unidas para Controle de Drogas) e na Organização dos Estados Americanos (OEA) para atuação no seu órgão sobre drogas ilícitas (Cicad). Passou também pela presidência do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais Giovanni Falcone (IBGF) – de 1997 a 1998 e de 2000 até 2004 –, quando foi designado para presidir os trabalhos de formulação da Política Nacional Antidrogas e auxiliar nas tarefas inerentes à implantação e operacionalização da Secretaria Nacional Antidrogas, órgão ligado diretamente à Presidência da República do qual é secretário atualmente. “Trato há muitos anos do fenômeno da criminalidade organizada e das drogas”, afirma. A seguir, trechos da conversa que Maierovitch teve com o Conselho Editorial da Revista E, em 9 de dezembro de 2005, sobre a questão.

 

Em 1988, as Nações Unidas se reuniram numa convenção que ocorreu em Viena [Áustria] na qual foi dado o alerta de que o narcotráfico estava lavando dinheiro dentro dos sistemas financeiro e bancário internacionais. Àquela altura, o narcotráfico movimentava 200 bilhões de dólares por ano dentro do sistema bancário.

O que ocorre, no entanto, é que o capital movimentado pela droga não é só lavado. É também reciclado em atividades formalmente lícitas: hotéis, bingos, bolsas de valores etc. A criminalidade organizada passou por dois momentos distintos. Primeiro, o crime organizado não era transnacional, sem fronteiras, e se especializava em assaltar bancos. Agora, essas transnacionais criminosas não assaltam mais os bancos, colocam dinheiro neles – basta ver os 500 bilhões de dólares movimentados em 2005 pelo narcotráfico internacional. Aos poucos, a metralhadora foi sendo substituída pelo mouse. Em 1973, as dez maiores instituições bancárias do mundo criaram a Swift, um sistema de telemática [conjunto de serviços de informática fornecidos através de uma rede de telecomunicações] que cobre 99,9% das instituições bancárias existentes no mundo e é um prestador de serviços responsável por todas as compensações e movimentações bancárias. É a rede de sustentação dos bancos. Evidentemente, por ela circula parte dos referidos 500 bilhões de dólares. Não que isso aconteça com a conivência da Swift, mas não há nenhum mecanismo de controle, fiscalização. Isso foi objeto de alguns debates, na área de drogas, da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização dos Estados Americanos (OEA). Eu, como secretário brasileiro antidrogas, fiz uma proposta para que tivesse na Swift uma obrigação de vigilância. A resposta que veio à época era no sentido do mundo capitalista, ou seja, a necessidade de dar velocidade aos negócios impedia o sistema de filtragens. Por exemplo, aquele que vende no Brasil sua safra de laranja para outro país recebe, no sistema Swift, em 24 horas, e não em meses, como seria o caso se houvesse o tal dever de vigilância. E, se todos os contêineres fossem abertos e examinados nos portos, o preço pelo tempo de permanência de um navio atracado seria elevadíssimo. Fora as filas dos navios para atracar e o perecimento de mercadorias. Portanto, as fiscalizações e filtros identificadores da origem dos capitais “atrapalharia” e comprometeria a velocidade exigida pelo capitalismo.

 

Procedência questionada
Aquela idéia antiga do direito romano de que o que interessava era o negócio e não a origem do dinheiro – dizia-se que dinheiro não tem cheiro (pecunia non olet) – mudou. Agora o dinheiro tem cheiro e deixa rastros de movimentações registradas eletronicamente. Por isso se pode dizer que há possibilidade de seguir os seus rastros, embora isso seja sempre muito difícil pela multiplicidade de transações ao mesmo tempo. Tendo em vista o ataque covarde às torres gêmeas e ao Pentágono, concluiu-se que havia a necessidade de identificar e secar as fontes de financiamento do terrorismo internacional. Portanto, hoje há uma preocupação maior em filtrar e fiscalizar a origem desse dinheiro, mesmo que sem muito sucesso. Calcula-se que um quarto do dinheiro em circulação no mundo é sujo. A pedofilia movimenta 5 bilhões de dólares, fora 280 milhões de dólares movimentados através dos vídeos com cenas de pedofilia. O mercado de drogas movimentou em 2005, segundo a ONU, 322 bilhões. Para especialistas, foram 500 bilhões de dólares. Tudo isso dentro de sistemas e envolvendo muitas vezes interesses hegemônicos e estratégicos, por exemplo, a política norte-americana que promove a chamada guerra às drogas – na verdade, uma bandeira colocada pelo governo norte-americano para conseguir controlar alguns países, caso claro da Colômbia e da Bolívia. Partiu-se da lógica de que, sem oferta, não haveria demanda. Mas, e isso é obvio, sem demanda também não há oferta. Indo até mais longe, sem insumos químicos não há como refinar a folha de coca e transformá-la em cloridrato de cocaína.

 

Custo social
Ao pensar hoje na situação de países como o Marrocos e a Colômbia, voltamos àquela história de países de economias dependentes. A maconha representa 60% do PIB [produto interno bruto – valor global da produção de bens e serviços de um país, num determinado período] do Marrocos. Antes do início do governo Pastrana, antecessor de Uribe, a Colômbia nunca havia precisado ir ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Vale dizer que o mercado da coca acabava alavancando o PIB colombiano.

Além da economia ilegal, existe todo um mercado atrelado à droga. A venda do papel gomado que serve para enrolar a erva canábica, as redes de fast-food que matam a fome que a maconha dá, as locadoras de vídeo que servem o usuário que é mais solitário e retraído. Há, portanto, toda essa economia paralela, movimentada além da ilegalidade. Uma indústria que movimenta 500 bilhões de dólares por ano tem toda condição de se expandir e se desenvolver. É, portanto, necessário atacar a economia movimentada pelas drogas. A droga tem um custo social alto. Na última pesquisa feita no Canadá sobre o custo social da droga – sendo alguns dos indicativos a morte por overdose, a redução da capacidade elaborativa, internações e problemas de atenção nas escolas –, a conclusão foi que o custo que a sociedade paga para a utilização de drogas pela própria sociedade é de 5% do PIB.

Portanto, existe uma indústria transnacional da droga, uma economia das drogas, países dependentes, cúmplices e de elevado consumo, que até querem ditar as políticas para os demais, caso dos EUA e a sua war on drugs (guerra às drogas). Nos últimos 20 anos, a política norte-americana de guerra às drogas investiu na Colômbia 25 milhões de dólares. No último Plano Colômbia, que faliu, gastaram-se 5 bilhões de dólares por ano. No entanto, ao analisar os levantamentos feitos por satélite nas áreas de produção em países como Colômbia, Peru e Bolívia, é possível verificar que durante 20 anos não houve redução de nem 1 milímetro de área de plantio, e a tecnologia avançou. Se a Colômbia teve uma redução de suas áreas de plantio, por outro lado, as do Peru e da Bolívia aumentaram, daí a compensação e os mesmos 200 mil hectares de 20 anos atrás. Será que há um interesse real no sentido de atacar o problema das drogas?

 


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