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Teatro

REVISTA E - fev 2006 teatro

 

Mestre do absurdo

 

Considerado um dos mais importantes nomes da literatura moderna, o irlandês Samuel Beckett, autor de Esperando Godot, completaria 100 anos em 2006

 


O que têm em comum Bernard Shaw, James Joyce, Oscar Wilde e Samuel Beckett, além do fato de ser considerados gênios da literatura moderna? Todos são filhos de um pequeno e conturbado país europeu, marcado por violentos conflitos entre católicos e protestantes, chamado Irlanda. “São todos famosos, cada um com seu perfil, e vários deles contemplados com o Prêmio Nobel”, afirma Célia Berrettini, professora titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), em seu livro Samuel Beckett – Escritor Plural (Perspectiva, 2004). Segundo a professora, ainda que todos compartilhem da genialidade e fama, Joyce e Beckett sobressaem nesse cenário generoso em termos de talento. “São, incontestavelmente, os que mais provocaram – e provocam ainda – numerosos comentários e análises”, escreve Célia. “Justamente por seu papel revolucionário no domínio da literatura.”

No momento, há ainda mais um motivo para que os holofotes estejam voltados para Samuel Beckett: em 2006 ele completaria 100 anos de vida. A data será lembrada pelo Sesc São Paulo (Leia mais: aniversário nos palcos), que brinda o público com duas montagens de peças do irlandês: Cinzas, que segue em cartaz até 25 de fevereiro no Sesc Pinheiros, e Esperando Godot, considerado um marco no teatro do século 20, na unidade Belenzinho. “É um texto que esvazia algo que é fundamental para o teatro: a ação”, explica o professor de teoria literária da Universidade de São Paulo (USP) Fábio de Souza Andrade. “Ele não é o primeiro a fazer isso, mas em Esperando Godot, simplesmente não existe ação e isso está muito evidenciado no palco”. Segundo explica o professor, estudioso da obra do irlandês e autor de Samuel Beckett – O Silêncio Possível (Ateliê Editorial, 2001), até o próprio diálogo foi esvaziado. “A fala dos personagens não evolui para o encerramento de um conflito dramático”, conta. “Serve apenas como uma bengala para mostrar o raciocínio tortuoso dos dois principais personagens.” Não é à toa, portanto, que o dramaturgo é considerado o maior nome do chamado teatro do absurdo. “Muita gente diz que o mundo de Beckett é o mundo do comitrágico e não do tragicômico”, conta o professor. “No tragicômico tudo está cinzento, mas no fim o céu se abre. Mas em Beckett acontece o contrário: tudo parece leve, a gente ri das trapalhadas dos personagens, mas no fim percebemos que a luz não chega.”

 

Dublin-Paris
Samuel Beckett nasceu em Dublin, em 13 de abril de 1906, em uma família protestante e abastada. Em 1928, passou a primeira temporada em Paris, cidade que amou e na qual viveu a maior parte da vida. Nessa época aproximou-se de James Joyce (1882-1941), que tinha publicado Ulisses (Editora Objetiva, 2005) havia seis anos e preparava Finnegans Wake (Ateliê Editorial, 2003). Apesar da diferença de 24 anos de idade entre um e outro, havia grande afinidade entre os dois. De acordo com a professora Célia Berrettini, “o amor pelas línguas, principalmente o francês, o italiano e o alemão, a paixão por Dante Alighieri e pela Itália e a “rejeição a um certo folclore elitizante e nacionalista” aproximou os dois. Após essa primeira temporada na França, Beckett retornou à Irlanda e depois partiu para Londres, até voltar a Paris, onde, na década de 40, entrou para o grupo da Resistência Francesa, que lutou na clandestinidade contra a ocupação nazista.

 

Romancista e dramaturgo
O primeiro romance escrito por Beckett foi Dream of Fair to Middling Women, somente publicado no formato original em 1993, quatro anos após sua morte. Na época em que foi escrito, o livro saiu em forma de contos e ganhou o nome de More Pricks Than Kicks. “Essa primeira prosa dele é ainda muito literária”, afirma o professor Souza Andrade. “A crítica especializada considera que a grande virada na carreira de Beckett ocorreu quando ele decidiu não partir para a praia das grandes realizações, do virtuosismo, e descobriu que a praia dele era a impossibilidade, o fracasso, o lado ridículo, a falha.” Depois de More Pricks Than Kicks, ele escreveu mais dois livros em inglês, Murphy e Watt, e então passa a escrever também em francês. No início dos anos 50, Beckett concluiu três romances – Molloy, Malone Morre e O Inominável – e escreveu para o teatro Eleutheria e a célebre Esperando Godot (Leia mais: Sem Fronteiras), essa logo aclamada pela crítica. “Após esses três romances, ele percebeu que com uma linguagem tão intricada não dava para continuar na prosa. Foi então que nasceram as peças”, explica Souza Andrade. Em 1969, o autor irlandês recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, consagrando-se como um dos mais importantes escritores e dramaturgos do século 20. Ele morreu 20 anos depois, em Paris.

 

Saiba mais:
www.samuel-beckett.net

Outros títulos de Samuel Beckett disponíveis em português:

Fim de Partida (Cosac Naify, 2002)
Esperando Godot (Cosac Naify, 2005)
Primeiro Amor (Cosac Naify, 2004)
Como E (Iluminuras, 2003)
Proust (Cosac & Naify, 2003)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sem Fronteiras

 

Esperando Godot, a obra mais famosa de Samuel Beckett, nasceu em Paris, mas mora no mundo inteiro

 

Marco no chamado teatro do absurdo, o relato contundente sobre a falta de esperança na condição humana, criado por Samuel Beckett em Esperando Godot, estreou em Paris, em janeiro de 1953, em uma pequena produção dirigida por Roger Blin. A obra foi consagrada pela crítica e se transformou em um clássico do século 20. Mas, antes da glória, o texto, que seria publicado a par com Eleutheria, outra peça de Beckett, foi rejeitado por todas as dezenas de editoras a que foi apresentado, até ser acolhido por Jérôme Lindon, das Édtions de Minuit. Por essa época, início da década de 50, Esperando Godot também chamou a atenção de Roger Blin, um jovem ator muito ligado, na época, a dramaturgos como Jean Genet e Jean Cocteau. Blin era também o responsável pela direção artística de um pequeno teatro na capital francesa e de imediato se entusiasmou com aquele texto, cujo autor ele conhecia somente por alguns poemas lidos em programas de rádio. Na dúvida entre montar Eleutheria ou Esperando Godot, acabaram pesando os custos da encenação. Godot era muito mais barata. “Quatro atores e um menino num palco quase vazio, a não ser por uma árvore esquálida e uma lua ocasional, eram mais realizáveis do que o cenário móvel e o cortejo descomunal de personagens (17!) de Eleutheria”, diz Fábio de Souza Andrade, professor de teoria literária da Universidade de São Paulo, no prefácio da edição brasileira de Esperando Godot, lançada recentemente pela editora Cosac Naify e traduzida por ele. A estréia foi cercada de dificuldades – além de ter de mudar de teatro, a peça já estava em estágio avançado de ensaio quando, inesperadamente, houve substituição de atores –, mas, uma vez encenada para o público, foi sucesso de crítica. O êxito levou a peça para palcos do mundo inteiro. “Foi uma estréia difícil, seguida de inúmeras montagens para todos os gostos: dentro de um presídio, com elenco de internos; numa Sarajevo dividida e sitiada, com atores de várias etnias; durante o apartheid, só com atores negros”, afirma Souza Andrade em seu prefácio.

Esperando Godot teve a primeira encenação no Brasil em 1955, dois anos depois da estréia parisiense, e no mesmo ano em que a peça foi exibida pela primeira vez em inglês, em Londres e em Dublin, na Irlanda. A primeira montagem brasileira foi dirigida por Alfredo Mesquita, com alunos da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD-USP). A estréia profissional foi em 1968, dirigida por Flávio Rangel, com Walmor Chagas e Cacilda Becker. Essa montagem ficou marcada na história do teatro brasileiro, pois foi em uma de suas apresentações que a atriz Cacilda Becker foi vítima de um aneurisma cerebral que a levou à morte. Dez anos mais tarde, o texto foi montado por Antunes Filho, com elenco formado por Eva Wilma, Lílian Lemmertz, Lélia Abramo, Maria Yuma e Vera Lyma. Em 2003, foi a vez de o grupo carioca Armazém Cia. de Teatro apresentar a sua versão da peça.

 

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Aniversário nos palcos

 

Espetáculos em duas unidades marcam as comemorações do centenário de Samuel Beckett

 


O autor irlandês completaria um século de vida neste ano e, para comemorar a data, o Sesc São Paulo traz ao público duas peças de sua autoria. Em Cinzas, que segue em cartaz até 25 de fevereiro no Pinheiros, o ator Aury Porto e a bailarina e atriz Renée Gumiel (foto preto e branco à esquerda), que também dirigiram o espetáculo, encarnam o casal que discute a condição da vida e da morte, enquanto conversam à beira-mar. No palco, o que o público vê são cenas em que se mistura um pouco de português e francês, língua-mãe de Renée, que, apesar de ter vivido 50 dos seus 92 anos no Brasil, ainda carrega um forte sotaque. “Ela fez questão de que algumas cenas fossem na língua dela”, conta Aury Porto. Além de atriz, Renée é também uma das principais responsáveis pela difusão da dança moderna no país. Ela e Aury se conheceram no Teatro Oficina, quando encenavam Os Sertões, clássico da literatura brasileira escrito em 1902 por Euclides da Cunha e adaptado em 2002 para o teatro pelo diretor Zé Celso Martinez Corrêa. Ali nasceu a vontade de montar um texto. “Primeiro ela sugeriu que encenássemos A Voz Humana, de Jean Cocteau, mas eu não gostei. Então propus A Noite, de Harold Pinter. Ela não quis. Decidimos procurar juntos e chegamos a Beckett. Não queríamos que fossem as peças mais conhecidas nem as mais longas. Quando lemos Cinzas, bateu”, diz Porto. Para ele, foi uma escolha existencial. “O texto fala sobre a morte, que é um assunto ao mesmo tempo assustador e apaixonante. Quero conseguir aceitar a morte e na peça esse é o exercício”, fala o ator. Já no Sesc Belenzinho, a homenagem ficou por conta do mais famoso texto escrito pelo autor. Esperando Godot (foto cor abaixo) segue em cartaz até 26 de março na unidade, em montagem dirigida por Gabriel Villela. O diretor se baseou na tradução de Fábio de Souza Andrade, lançada recentemente pela editora Cosac Naify, para construir o espetáculo, que reúne no elenco nomes como Bete Coelho, Magali Biff, Lavínia Pannunzio e Vera Zimmerman, todas em papéis masculinos. O texto fala sobre dois vagabundos tristes e insatisfeitos – Estragon (Bete Coelho) e Vladimir (Magali Bliff) –, que esperam em vão a chegada de Godot. Não à toa, eles se encontram bem numa encruzilhada, esperando que alguém apareça para resolver seus problemas, cercados por uma paisagem em que o único sinal de vida é uma árvore quase seca. O texto acabou se tornando uma grande metáfora da condição do ser humano, sobretudo o homem ocidental, que busca frenética e incessantemente por coisas que simbolizem a felicidade. Será que Godot um dia chega? Na opinião do diretor da montagem, não. “Diariamente, o mundo sente na carne a esperança traída. Diariamente, experimenta a relação cáustica entre dominador e dominado”, diz ele. “Nossa sede de salvação e nossa ânsia são inesgotáveis.” Para dar força a essa montagem, Villela inspirou-se na devastação causada na natureza pelo homem contemporâneo. O diretor, que fez questão de marcar sua encenação por uma paisagem seca, considera perfeitas as reflexões dos protagonistas sobre o pouco caso do homem com a natureza. “O texto de Beckett trabalha exatamente com a questão da ignorância e da impotência. Esse é o princípio revoltante que me liga à fábula de Godot.”

 

 

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