Uma
voz contra o Apartheid
Em
novembro, a cantora sul-africana Aura Msimang, 58 anos, esteve no Brasil
para participar das comemorações do Dia Nacional da Consciência
Negra, no Sesc Pompéia. Em 2005, a data marcou os 310 anos da morte
do líder Zumbi dos Palmares. Honrada com o convite para celebrar
um dia tão importante, Aura conversou com a Revista E pouco antes
de embarcar de volta para seu país. A cantora ficou especialmente
comovida com a data por ela mesma ter sentido o peso do racismo em sua
vida, quando o governo da África do Sul decretou o apartheid, em
1948, sistema que por cerca de meio século proibiu a convivência
entre brancos e negros e concedeu, oficialmente, privilégios aos
brancos. O problema do apartheid é que, quando há
um sistema em que as pessoas são separadas pela cor, isso acontece
de maneira tão profunda que, mesmo entre os negros, quanto mais
clara a pessoa é ou quanto mais liso é o cabelo, mais superior
ela é considerada, diz ela, que faz questão de explicar
que não era, portanto, somente uma questão entre brancos
e negros. Há muitos níveis de cor envolvidos,
enfatiza. Aura e sua família tiveram de fugir da África
do Sul, e ela morou em países como Congo, Nigéria e Serra
Leoa. No fim dos anos 70, Aura chegou a Nova York, onde teve início
um dos períodos mais felizes de sua vida. Cheguei lá
e vi uma cena diferente. Naquela época, os norte-americanos começavam
a se dar conta dos africanos e, por sua vez, os afro-americanos estavam
começando a perceber que tinham uma identidade e queriam alcançá-la.
Tudo isso tornava o viver nos Estados Unidos algo muito empolgante. Simplesmente
todo mundo era contra tudo o que vinha sendo estabelecido, recorda
ela, que tem um filho que ainda mora na Califórnia. Mas hoje
eu não viveria mais lá, diz referindo-se à
situação estabelecida no país, principalmente depois
dos atentados de 11 de setembro. Foi durante os anos 70 que Aura deu início
à carreira musical, quando chegou a trabalhar com Bob Marley e
pouco depois tocou com Jimmy Cliff. Leia, a seguir, os principais trechos
da conversa.
Apartheid
Eu nasci em 1947; tenho, portanto, 58 anos apesar de não
parecer [risos]. O apartheid começou na época
de meu nascimento, depois da Segunda Guerra Mundial, quando os soldados
voltaram para casa e os ingleses tiveram de ir embora do país.
Os ingleses governavam a África do Sul antes da guerra, mas, como
eles foram lutar pelas forças aliadas, tiveram de deixar o país.
Quando o general Jan Smuts voltou, os holandeses já tinham tomado
o poder na África do Sul. Esse foi o começo do apartheid,
em 1948. Eu tinha 1 ano de vida. Meu pai foi soldado do grupo dos africanos
que lutaram na guerra pelas forças aliadas. A maioria desses africanos
era de países do norte da África. Foi assim que meu pai
conheceu africanos de outras partes do continente, e descobriu que a África
era maior que a África do Sul. Quando eles voltaram da guerra,
as coisas estavam muito difíceis. Acho que em todos os cantos do
mundo não havia comida suficiente. Na África do Sul, naquela
época, brancos e negros tinham o mesmo problema de ter de pegar
filas para conseguir comida. Pelo que minha mãe conta, foi um período
interessante, por ter sido a última vez que brancos e negros ficaram
na mesma situação. Depois de 1948, o governo declarou o
apartheid para que não se desse a mistura de raças
resultante do fato de alguns negros terem saído do país
e conhecido mulheres brancas. Então resolveram separar as raças.
Isso mudou tudo. Eu era muito pequena para entender o que aquilo significava
a longo prazo.
"A geração
que está por vir é quem vai mudar as coisas, pois está
mais misturada e disposta. A longo prazo, enxergo uma esperança" |
Exílio
O apartheid gerou uma situação tão louca que,
para ter uma idéia, na África do Sul os chineses eram considerados
negros e os japoneses eram considerados brancos. Isso mostra claramente
como o apartheid é algo que não faz sentido algum.
As pessoas, quando pensam no apartheid, pensam em brancos e negros,
mas há muitas outras cores para os racistas. Esse regime foi chegando
aos poucos, veio uma lei, depois outra e outra. Foram várias coisas
que quebraram e desestabilizaram vagarosamente a estrutura de nosso modo
de vida. Primeiro a proibição de os negros viverem em Johannesburgo.
Então, saímos de lá. Depois o governo diferenciou
a educação entre aquela destinada aos negros e a dos brancos
uma educação inferior para os negros, pois achavam
que nós não precisaríamos aprender mais do que ler
e escrever e não deveríamos ir para a universidade. Foi
quando meus pais decidiram deixar o país. O primeiro país
em que moramos foi o que na época se chamava Rodésia, e
hoje em dia é o Zimbábue; depois tivemos de ir para Botsuana,
Congo, Nigéria e finalmente Serra Leoa, onde terminei o ensino
médio. Naquele tempo, todos os países por que passamos estavam
em conflito e é por isso que canto em uma de minhas canções
que nós (africanos) sofremos o bastante. Se essa situação
já tinha ido longe demais antes da aids, agora, depois dela, nem
se fala. No fim de 1968, consegui uma bolsa para estudar em Nova York
e vi uma cena diferente. Foi um período muito bom para mim. Era
o fim dos anos 60, os norte-americanos começavam a se dar conta
dos africanos. Montei com um amigo um grupo de jazz alternativo, chamado
Aboriginal Society. Foi ali que aprendi como usar a voz para o jazz e
improvisar.
Consciência
social
Em 1976, tive a chance de ir para a Jamaica pela primeira vez. Nessa época,
os meus dreadlocks [tranças grossas de cabelo não
lavado] estavam começando a se formar e as pessoas me perguntavam
se eu era rastafári [que segue o rastafarianismo, seita messiânica
de origem jamaicana que prega o retorno cultural dos negros à África
e venera Haïlé Selassié (imperador da Etiópia,
na África, entre 1930 e 1974) como o messias negro],
e eu nem sabia o que era isso. Eu usava o cabelo assim como um protesto
contra o apartheid. Foi nesse tempo também que ganhei de meu cunhado
o álbum The Wailers Catch a Fire [álbum
de Bob Marley com o grupo The Wailers, de 1973] e fui nocauteada,
fiquei completamente apaixonada por aquela música, que tinha muita
consciência social. Realmente, uma experiência iluminadora
que abriu minha cabeça para outros aspectos da África. Descobri
o quanto era incrível o continente de onde eu vinha e que era minha
responsabilidade veicular minha cultura, eu não deveria nunca esquecer
de onde vinha. Trabalhei com Bob Marley em estúdio, era completamente
apaixonada por ele profissionalmente. Eu já o havia conhecido em
Nova York, em 1972, quando ele ainda fazia parte do The Wailers. Ele estava
muito interessado em conhecer africanos e me perguntou o porquê
de eu estar usando locks. Eu tinha dreadlocks e ele não
[risos].
A volta para casa
Durante os anos 80, fiz turnês com Jimmy Cliff. Aliás, quando
ele veio ao Brasil eu estava com ele. Depois fui à França,
onde trabalhei com Maxime Le Forestier, um artista francês que fez
uma canção sobre ser um imigrante, que tinha o refrão
cantado em zulu, uma das línguas da África do Sul. Foi a
música número 1 nas paradas francesas em 1980. Quando meu
contrato com esse músico acabou, não encontrei emprego,
pois estava com problemas por ter tentado formar um sindicato de músicos
africanos na França. Fiquei muito incomodada com o modo como os
músicos africanos eram encorajados a ir para a França trabalhar,
mas não tinham status, não eram valorizados. Isso
me deu uma péssima reputação e foi muito difícil
conseguir emprego. Então me mudei para a Bélgica, onde consegui
trabalho na Oxfam, uma ong que busca minimizar os impactos da pobreza.
Naquele tempo, já havia um sentimento de globalização
e não era mais possível pensar que o problema de um país
não era do mundo todo. Para ir contra a injustiça social
global é necessário que se juntem ongs e organizações
sem fins lucrativos para conduzir energias e recursos para quem precisa.
Eu pensava que nunca poderia voltar para casa, que a África do
Sul não seria livre enquanto eu estivesse viva. Mas, depois da
temporada na Bélgica, a Oxfam me enviou à África
do Sul, em 1997, para um trabalho e vi como meu país ainda estava
lindo. Fazia 35 anos que eu não voltava para lá. Resolvi
ficar e viajei por todos os lugares. Nem tudo está bem, o apartheid
ainda existe de certa maneira. Mesmo hoje em dia é muito difícil
um negro falar com um branco, a mentalidade racista permanece, apesar
de as leis terem se modificado. A geração que está
por vir é quem vai mudar as coisas, pois está mais misturada
e disposta. A longo prazo, enxergo uma esperança.
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