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REVISTA e - fev 2006
Uma voz contra o Apartheid

Em novembro, a cantora sul-africana Aura Msimang, 58 anos, esteve no Brasil para participar das comemorações do Dia Nacional da Consciência Negra, no Sesc Pompéia. Em 2005, a data marcou os 310 anos da morte do líder Zumbi dos Palmares. Honrada com o convite para celebrar um dia tão importante, Aura conversou com a Revista E pouco antes de embarcar de volta para seu país. A cantora ficou especialmente comovida com a data por ela mesma ter sentido o peso do racismo em sua vida, quando o governo da África do Sul decretou o apartheid, em 1948, sistema que por cerca de meio século proibiu a convivência entre brancos e negros e concedeu, oficialmente, privilégios aos brancos. “O problema do apartheid é que, quando há um sistema em que as pessoas são separadas pela cor, isso acontece de maneira tão profunda que, mesmo entre os negros, quanto mais clara a pessoa é ou quanto mais liso é o cabelo, mais superior ela é considerada”, diz ela, que faz questão de explicar que não era, portanto, somente uma questão entre brancos e negros. “Há muitos níveis de cor envolvidos”, enfatiza. Aura e sua família tiveram de fugir da África do Sul, e ela morou em países como Congo, Nigéria e Serra Leoa. No fim dos anos 70, Aura chegou a Nova York, onde teve início um dos períodos mais felizes de sua vida. “Cheguei lá e vi uma cena diferente. Naquela época, os norte-americanos começavam a se dar conta dos africanos e, por sua vez, os afro-americanos estavam começando a perceber que tinham uma identidade e queriam alcançá-la. Tudo isso tornava o viver nos Estados Unidos algo muito empolgante. Simplesmente todo mundo era contra tudo o que vinha sendo estabelecido”, recorda ela, que tem um filho que ainda mora na Califórnia. “Mas hoje eu não viveria mais lá”, diz referindo-se à situação estabelecida no país, principalmente depois dos atentados de 11 de setembro. Foi durante os anos 70 que Aura deu início à carreira musical, quando chegou a trabalhar com Bob Marley e pouco depois tocou com Jimmy Cliff. Leia, a seguir, os principais trechos da conversa.

 

Apartheid
Eu nasci em 1947; tenho, portanto, 58 anos – apesar de não parecer [risos]. O apartheid começou na época de meu nascimento, depois da Segunda Guerra Mundial, quando os soldados voltaram para casa e os ingleses tiveram de ir embora do país. Os ingleses governavam a África do Sul antes da guerra, mas, como eles foram lutar pelas forças aliadas, tiveram de deixar o país. Quando o general Jan Smuts voltou, os holandeses já tinham tomado o poder na África do Sul. Esse foi o começo do apartheid, em 1948. Eu tinha 1 ano de vida. Meu pai foi soldado do grupo dos africanos que lutaram na guerra pelas forças aliadas. A maioria desses africanos era de países do norte da África. Foi assim que meu pai conheceu africanos de outras partes do continente, e descobriu que a África era maior que a África do Sul. Quando eles voltaram da guerra, as coisas estavam muito difíceis. Acho que em todos os cantos do mundo não havia comida suficiente. Na África do Sul, naquela época, brancos e negros tinham o mesmo problema de ter de pegar filas para conseguir comida. Pelo que minha mãe conta, foi um período interessante, por ter sido a última vez que brancos e negros ficaram na mesma situação. Depois de 1948, o governo declarou o apartheid para que não se desse a mistura de raças resultante do fato de alguns negros terem saído do país e conhecido mulheres brancas. Então resolveram separar as raças. Isso mudou tudo. Eu era muito pequena para entender o que aquilo significava a longo prazo.

 

"A geração que está por vir é quem vai mudar as coisas, pois está mais misturada e disposta. A longo prazo, enxergo uma esperança"

 

 

 

Exílio
O apartheid gerou uma situação tão louca que, para ter uma idéia, na África do Sul os chineses eram considerados negros e os japoneses eram considerados brancos. Isso mostra claramente como o apartheid é algo que não faz sentido algum. As pessoas, quando pensam no apartheid, pensam em brancos e negros, mas há muitas outras cores para os racistas. Esse regime foi chegando aos poucos, veio uma lei, depois outra e outra. Foram várias coisas que quebraram e desestabilizaram vagarosamente a estrutura de nosso modo de vida. Primeiro a proibição de os negros viverem em Johannesburgo. Então, saímos de lá. Depois o governo diferenciou a educação entre aquela destinada aos negros e a dos brancos – uma educação inferior para os negros, pois achavam que nós não precisaríamos aprender mais do que ler e escrever e não deveríamos ir para a universidade. Foi quando meus pais decidiram deixar o país. O primeiro país em que moramos foi o que na época se chamava Rodésia, e hoje em dia é o Zimbábue; depois tivemos de ir para Botsuana, Congo, Nigéria e finalmente Serra Leoa, onde terminei o ensino médio. Naquele tempo, todos os países por que passamos estavam em conflito e é por isso que canto em uma de minhas canções que nós (africanos) sofremos o bastante. Se essa situação já tinha ido longe demais antes da aids, agora, depois dela, nem se fala. No fim de 1968, consegui uma bolsa para estudar em Nova York e vi uma cena diferente. Foi um período muito bom para mim. Era o fim dos anos 60, os norte-americanos começavam a se dar conta dos africanos. Montei com um amigo um grupo de jazz alternativo, chamado Aboriginal Society. Foi ali que aprendi como usar a voz para o jazz e improvisar.

 

Consciência social
Em 1976, tive a chance de ir para a Jamaica pela primeira vez. Nessa época, os meus dreadlocks [tranças grossas de cabelo não lavado] estavam começando a se formar e as pessoas me perguntavam se eu era rastafári [que segue o rastafarianismo, seita messiânica de origem jamaicana que prega o retorno cultural dos negros à África e venera Haïlé Selassié (imperador da Etiópia, na África, entre 1930 e 1974) como o messias negro], e eu nem sabia o que era isso. Eu usava o cabelo assim como um protesto contra o apartheid. Foi nesse tempo também que ganhei de meu cunhado o álbum The Wailers – Catch a Fire [álbum de Bob Marley com o grupo The Wailers, de 1973] e fui nocauteada, fiquei completamente apaixonada por aquela música, que tinha muita consciência social. Realmente, uma experiência iluminadora que abriu minha cabeça para outros aspectos da África. Descobri o quanto era incrível o continente de onde eu vinha e que era minha responsabilidade veicular minha cultura, eu não deveria nunca esquecer de onde vinha. Trabalhei com Bob Marley em estúdio, era completamente apaixonada por ele profissionalmente. Eu já o havia conhecido em Nova York, em 1972, quando ele ainda fazia parte do The Wailers. Ele estava muito interessado em conhecer africanos e me perguntou o porquê de eu estar usando locks. Eu tinha dreadlocks e ele não [risos].

 

A volta para casa
Durante os anos 80, fiz turnês com Jimmy Cliff. Aliás, quando ele veio ao Brasil eu estava com ele. Depois fui à França, onde trabalhei com Maxime Le Forestier, um artista francês que fez uma canção sobre ser um imigrante, que tinha o refrão cantado em zulu, uma das línguas da África do Sul. Foi a música número 1 nas paradas francesas em 1980. Quando meu contrato com esse músico acabou, não encontrei emprego, pois estava com problemas por ter tentado formar um sindicato de músicos africanos na França. Fiquei muito incomodada com o modo como os músicos africanos eram encorajados a ir para a França trabalhar, mas não tinham status, não eram valorizados. Isso me deu uma péssima reputação e foi muito difícil conseguir emprego. Então me mudei para a Bélgica, onde consegui trabalho na Oxfam, uma ong que busca minimizar os impactos da pobreza. Naquele tempo, já havia um sentimento de globalização e não era mais possível pensar que o problema de um país não era do mundo todo. Para ir contra a injustiça social global é necessário que se juntem ongs e organizações sem fins lucrativos para conduzir energias e recursos para quem precisa. Eu pensava que nunca poderia voltar para casa, que a África do Sul não seria livre enquanto eu estivesse viva. Mas, depois da temporada na Bélgica, a Oxfam me enviou à África do Sul, em 1997, para um trabalho e vi como meu país ainda estava lindo. Fazia 35 anos que eu não voltava para lá. Resolvi ficar e viajei por todos os lugares. Nem tudo está bem, o apartheid ainda existe de certa maneira. Mesmo hoje em dia é muito difícil um negro falar com um branco, a mentalidade racista permanece, apesar de as leis terem se modificado. A geração que está por vir é quem vai mudar as coisas, pois está mais misturada e disposta. A longo prazo, enxergo uma esperança.

 

Saiba mais:
www.idestnet.com/aura
www.oxfam.org/en/about