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Entrevista
Regina Silveira

A pintora, gravadora e desenhista Regina Silveira concluiu bacharelado em pintura no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IA/UFRDS) em 1958, onde estudou com Aldo Locatelli (1915-1962) e Ado Malagoli (1906-1994). No ano seguinte, licenciou-se em desenho pela Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). No início da década de 60, tem aulas de pintura com Iberê Camargo (1914-1994), xilogravura com Francisco Stockinger (1919), litogravura com Marcelo Grassmann (1925), no Ateliê Livre da Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Entre 1960 e 1966, realiza ilustrações para o jornal Correio do Povo. Como bolsista do Instituto de Cultura Hispânica, em 1967, estuda história da arte na Faculdade de Filosofia e Letras de Madri. Em 1969, é convidada a ministrar cursos no Departamento de Humanidades da Faculdade de Artes e Ciências da Universidade de Porto Rico. Em 1970, ainda em Porto Rico, realiza suas primeiras serigrafias. Volta para o Brasil em 1973, e passa a residir em São Paulo. Leciona e coordena, até 1985, o setor de gravura da Faap. Entre 1974 e 1993, é professora do Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Nesta entrevista exclusiva, Regina fala das diversas experiências que o trabalho já lhe proporcionou e da experiência de ter convivido com os grandes nomes de sua área.

Você nasceu em Porto Alegre, depois morou em várias cidades, no Brasil e no exterior. Há anos se encontra em São Paulo. Com que esse tipo de experiência contribui na construção de seu trabalho?
Quando vivia em Porto Alegre já tinha a cabeça muito voltada para a cena internacional e sentia aquela enorme nostalgia do que ainda não tinha visto e vivido de perto, especialmente da arte que se fazia na “linha de frente” e que só via em reproduções que me chegavam sempre atrasadas. A experiência internacional dos anos seguintes, conduzida por circunstâncias de trabalho e de vida, me ajudou a deslocar e a relativizar algumas “certezas” artísticas que teriam me levado para outros caminhos, certamente mais tradicionais. Penso que a disposição de se expor mais ao mundo pode tornar o conhecimento mais flexível, aberto a trocas e até mesmo mais humilde.


Como você sente o aspecto regional em sua obra? Ele de alguma forma encontra espaço para se manifestar em seu trabalho?
Que eu me lembre, só fiz um trabalho na vida com tema regional e foi por encomenda: uma xilogravura com uma imagem bastante abstrata de um gaúcho, com poncho, espora e um boi ao lado, para a capa da revista de atualidades da Nestlé, na primeira metade dos anos 60. De fato, o regional nunca foi uma questão a considerar em meu trabalho; pelo contrário, faço ainda hoje uma guerra sem tréguas contra temas e estereótipos regionais, nacionais e mesmo latinos, porque não quero ser colocada nesse gueto. Por isso mesmo fiz o Quebra-Cabeça da América Latina, com foco em nossos ícones estereotipados. Prefiro outra categoria de resposta ao contexto em que me movo. Temas urbanos e transculturais, como o Super Herói projetado por laser na Paulista, a projeção da mosca por ruas e avenidas e ainda os rastros de pneus grafitados em paredes e fachadas, creio que são a antítese desse regional folclórico, coisa cada vez mais fora de lugar...

Sobre essas questões, discutidas entre intelectuais e artistas a respeito da globalização versus regionalização da cultura, qual a sua posição? Você acredita que possa verdadeiramente assumir a dicção de uma cultura que o artista não vivenciou? Ou que não esteja na base de sua formação?
Nunca o mundo da arte dos países periféricos ao mainstream esteve tão presente, prestigiado e valorizado como na atualidade. Pode se mesclar e incidir em outras culturas como nunca antes havia acontecido. Contudo, para um artista, ter raízes e fazer parte de uma cultura e sua história, no sentido de se inscrever numa linhagem, ter um antes e um depois, é um argumento de peso, mesmo em tempos de globalização. O melhor das trocas internacionais é o próprio trânsito dessas trocas, em que o importante não é assumir a dicção da outra cultura, mas preservar a diferença. Acho essencial manter uma âncora no lugar que nos explica melhor...


No Rio Grande do Sul, você estudou no lendário Ateliê Livre da prefeitura de Porto Alegre. Como foi essa época de estudos?
Quando freqüentei o Ateliê Livre da prefeitura, nos primeiros anos da década de 60, eu havia concluído recentemente o curso no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), fazia um curso de aperfeiçoamento em pintura com Ado Malagoli e já trabalhava como assistente nas aulas de João Fahrion, catedrático de desenho. O Instituto de Artes e o Ateliê Livre foram territórios em confronto, desde o começo, quando Iberê Camargo dirigiu suas baterias contra o ensino da arte no instituto, nas famosas entrevistas que deu aos principais jornais de Porto Alegre, falando do marasmo que dominava o ambiente das artes no Rio Grande do Sul. Era bem difícil freqüentar os dois ambientes e manter a neutralidade. Mas também havia os desvios: Malagoli e Iberê se mantiveram amigos e o ambiente era pequeno para tanta guerra. Com o tempo, o Ateliê Livre foi-se institucionalizando também...


Você estudou com três grandes artistas: pintura com Iberê Camargo, xilogravura com Francisco Stockinger e litogravura com Marcelo Grassmann. De cada um deles, o que você ainda guarda como parâmetro e referência cultural?
Como já afirmei diversas vezes, o que mais admirei em Iberê foi sua paixão pelo que fazia e também o rigor, a disciplina de trabalho e o alto grau de exigência consigo mesmo. Nunca esqueci as inúmeras vezes em que vi Iberê retirar com uma espátula, manejada com muito ímpeto, toda a camada grossa de tinta de uma pintura praticamente pronta, e no meu entender formidável, e recomeçar tudo de novo, do zero, com ímpeto ainda maior, inteiramente absorvido, e tantas vezes quanto fosse preciso. Já Francisco Stockinger era o artista mais experiente, um escultor do Rio de Janeiro que tentava viver de sua arte em Porto Alegre, coisa muito difícil naqueles anos. Ele havia aprendido xilogravura com Goeldi, um herói indiscutível da gravura brasileira. Pensar em Goeldi como um tipo de “avô” dava a artistas aprendizes como eu o sentimento de pertencer a uma linhagem muito especial. Xico [Stockinger], mais do que tudo, foi um grande amigo de todas as horas, que ensinava com generosidade coisas da arte e da vida profissional, no Ateliê Livre, em sua casa e mesmo numa mesa de bar com a moçada a seu redor. Convivi menos com Marcelo Grassmann, nos vimos mais no período de seu curso de litografia no Ateliê Livre e das exposições que fez subseqüentemente em Porto Alegre, no tempo em que Xico Stockinger dirigia o Museu de Arte do Rio Grande do Sul. De Grassmann, lembro mais a competência no desenho e o amor ao detalhe, requisitos sine qua non para um artista-litógrafo.


Você se formou em desenho na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Depois fez vários outros cursos no Brasil e exterior. Essa dedicação ao estudo acadêmico é incomum entre os artistas brasileiros?
O curso da PUC foi de didática de desenho, uma especialização curta que permitia ao artista trabalhar como professor. Na época eu também fazia um curso de aperfeiçoamento em pintura, com Ado Malagoli, no Instituto de Artes. Discordo de que eu seja um caso raro de dedicação ao estudo acadêmico no ambiente brasileiro. Isto só se podia dizer nos anos 60, ou antes, quando ainda não havia cursos de arte suficientemente organizados no Brasil e os artistas se desenvolviam como discípulos informais de outros artistas ou eram simplesmente autodidatas. Gosto de pensar que ajudei na mudança dessa condição, que foi um esforço de muitos para dar boa presença e voz forte à arte e aos artistas no ambiente universitário do País. Esta condição de “raridade” já deixou de existir há muito tempo... Acho até que hoje é muito mais fácil fazer estudos regulares em uma instituição que pode proporcionar um conhecimento ordenado e abrigar um pensamento crítico elaborado nos campos da arte e da cultura.


Como o trabalho de professor se reflete, ou auxilia, no seu trabalho criativo?
Ensinar era quase a única opção para uma sobrevivência independente, que não ficasse atrelada à venda de obras. Mesmo porque, nem sequer havia mercado de arte quando começamos a lecionar. Eu, primeiro na Universidade do Rio Grande do Sul; e o Julio [o artista plástico Julio Plaza] , em 1969, quando fomos trabalhar, por quatro anos, na Universidade de Porto Rico, em Mayaguez. Ensinar sempre pode fertilizar e renovar meu trabalho de artista, pela necessidade do estudo, da atualização e da investigação, quase obrigatória em universidades como a de Porto Rico e a Universidade de São Paulo. Sem pesquisa não havia progressão na carreira nem acesso aos apoios financeiros de agências de fomento, que muito me ajudaram a fazer viagens de estudo em conjunto com exposições no exterior, e, sobretudo, a produzir uma das parcelas mais arriscadas e investigativas de meu trabalho. Todo este affaire acadêmico, quando conduzido no bom sentido, pode produzir resultados compensadores, muito diferentes dos caminhos mais estáveis e sem dúvida mais engessados que o mercado de arte, ainda hoje, pode oferecer ao artista.


Durante alguns anos você fez ilustrações para jornais. Este é um trabalho bastante diferente daquele que você desenvolve como sendo sua obra criativa?
As ilustrações que fiz entre 60 e 66 para o Correio do Povo não eram diárias nem calcadas no cotidiano, eram desenhos de pequeno formato, geralmente a nanquim, que fazia para ilustrar poemas que geralmente saíam publicados na coluna de variedades O Bric A Brac da Vida. “Seu” Berutti, responsável pela coluna, me entregava de tempos em tempos um conjunto de poemas de diferentes autores e eu fazia desenhos para aqueles que me interessavam, ele gostava muito de tudo e ia publicando aos poucos. Bem no princípio intercalava meus desenhos com os de outros artistas, depois foram só os meus mesmo. Costumava ir até a redação do jornal, na Praça da Alfândega, para entregar o material e conversar um pouco, quase sempre com o Mario Quintana, que tinha mesa ao lado. Também fiz ilustrações por mais de dois anos para a coluna dominical da Lara de Lemos, que me trazia crônicas ou poemas. Tudo isso foi sempre muito prazeroso e interessante. Fiz ainda capa para o primeiro livro que meu amigo Moacyr Scliar publicou...


Nos últimos anos seu trabalho está próximo da arte e da tecnologia. A questão das novas tecnologias aplicadas à arte é algo que ainda a fascina? Como você enxerga essa relação, principalmente com a internet sendo um instrumento cada vez mais popular?
Em primeiro lugar, os novos meios só me interessam se com eles posso - ou consigo - produzir sentido. O interesse em usá-los não se sustenta sem um campo prévio de idéias. Apesar de minha constante curiosidade por novas formas de produção de imagens, saber o que quero dizer com o trabalho é essencial para que possa escolher os meios - na verdade idéias e meios chegam praticamente juntos, na mente, quando imagino alguma coisa. Também me preocupa é encontrar a solução mais enxuta para aquele quadro de idéias, que é, em meu caso quase sempre low tech. Por exemplo, só consigo pensar no Super X como aquele desenho linear delicado e tremeluzente do laser, parecendo neon, fino e verde, com animação mínima, lutando para vencer as demais luminosidades da Avenida Paulista. Um show de resolução técnica, como seria a projeção poderosa de um vídeo em alta definição do Super Herói voando, iria exceder em muito a intenção poética da obra.


Em seu início, há uma forte ligação com o expressionismo. Falo de suas pinturas. Em qual momento você acreditou que essa forma de pensamento estético não servia mais aos seus desafios?
Em minha primeira viagem a Europa, quando começou minha convivência mais próxima com poéticas recentes de obras da arte cinética e programada, derivadas do construtivismo histórico. Elas investiam fortemente em novos materiais e experiências com luz e movimento reais, e em obras investigativas que propunham ambientes multissensórios a um espectador tornado muito mais ativo do que aquele tradicionalmente incluído nas representações caracterizadas apenas pela subjetividade. Também fiquei inteiramente rendida e cheia de perguntas diante das novas possibilidades de realização de imagens, que eu desconhecia totalmente, e que pude ver em gravuras de última geração que incluíam já o plotter digital ou apropriações de fotografias da mídia e impressões de matrizes fotomecânicas. Eu então não fazia idéia de como chegar àqueles resultados, que instantaneamente admirei e reconheci como imagens de fato contemporâneas ao tempo da minha vida, longe do campo da pintura e tornando completamente sem sentido a representação e mais ainda a velha disputa entre figuração e abstração... Foi quando morreu minha fé na pintura. Irremediavelmente.


Anos mais tarde, você caminha pelas formas construtivas e faz colagens. Até que ponto essa linguagem ainda está presente em sua criação?
Quando deixei a pintura, quase instantaneamente fiz colagens - inicialmente de papéis coloridos - sobre estruturas construtivas. Um pouco mais tarde passei para a construção de objetos com materiais industriais, por processos, programas e até possibilidades de movimento real. Essa foi uma etapa intermediária, para mudar de casca, quase uma lição a aprender. Eu mesma custo a me reconhecer nos poucos trabalhos que restaram do período, que soma o ano e meio que vivi em Porto Alegre, quando voltei da Europa em 1968 para reassumir minhas funções no Instituto de Artes e o primeiro ano (entre 1969 e 1970) de minha estadia e trabalho em Porto Rico. Foi apenas quando comecei a usar imagens fotográficas em serigrafias, no início dos anos 70, e pude compor minhas primeiras fotomontagens que realmente percebi uma problemática intrigante para explorar e que se tornou este poço que continuo cavando até hoje... nesta crítica interminável sobre a natureza das imagens e como as percebemos.


Há muito na arte contemporânea a idéia de citações, de colagens intertextuais e homenagens. Até que ponto tal procedimento é válido? Isso não teria virado tão-somente um mecanismo de repetição?
A citação foi uma das tônicas dos anos 80, principalmente dos grupos e movimentos conectados a uma espécie de revival da pintura, como foram o neo-expressionismo e a transvanguarda - não há por que voltar a esta questão no presente. Nos “bolsões” em que persistiu, quase de maneira acadêmica, a citação virou moeda barata e lugar-comum para entender qualquer tipo de diálogo com a arte do passado e até mesmo motivo para atitudes e atividades diluidoras. Certos centros de arte-educação simploriamente aplicam o termo “releitura” a uma operação desastrada de interpretação da arte com um público que amadoristicamente tenta se apropriar dela... Mais congeniais à natureza da artes são a intertextualidade e a transcriação - pois a arte, mesmo a mais nova, nunca existe no vazio da história e da linguagem. Para encontrar seu lugar ela precisa estabelecer um diálogo e ligar-se, em seus próprios termos, com a história, o contexto e a arte já feita.


Suas interferências no espaço, ou urbano ou mesmo arquitetônico, dentro dos espaços internos - aquelas silhuetas - provocam uma idéia de falsa perspectiva ao espectador. No caso destes trabalhos - como a Escada Inexplicável - você volta à questão da perspectiva. Mas com um tom de humor que não havia em trabalhos seus.
No espaço urbano nem penso em usar perspectivas geométricas para produzir falseamento de espaços, distorções e correções, porque isto depende muito de um ponto de vista único, um dado que é mais interessante explorar nas construções perspectivadas que costumo enxertar em espaços internos. O espaço urbano está feito para um olhar dinâmico e múltiplo, que soma infinitas vistas enquanto se desloca... Aí tenho preferido usar signos que forneçam uma leitura crítica do próprio tecido urbano, como foram o Super X e a mosca, ou fazer intervenções diretas, no plano do comportamento, como foi a distribuição de folhetos imobiliários paródicos nas esquinas mais movimentadas da cidade ou o passeio que fiz com Fábio Cimino em seu fusca “blindado” com vinil adesivo negro e um zíper representado na capota.


A arte contemporânea cada vez mais se preocupa em interferir ou criar diálogos com a arquitetura ou mesmo com o espaço urbano. Por que isso estaria ocorrendo?
Porque há atualmente uma necessidade renovada de retomar a função transformadora da arte, para que ela opere diretamente no social. E o urbano tem sido este lugar expandido do social, para diferentes projetos e expedientes. Pensa-se na rua para as estratégias mais diversas... Isso junto a um grande cansaço político, por parte de artistas, especialmente os jovens com obras de cunho mais conceitual, que estão decididos a pôr seu trabalho para funcionar e se confrontam com as instituições em falência e com as contingências restritivas do “cubo branco” (denominação de O'Doherty que agora é corrente para qualificar os espaços sagrados da arte que separam olimpicamente o objeto da arte das circunstâncias da vida). Justamente o desafio maior para a arte é habitar os espaços “não protegidos”, sejam os abertos, da rua, ou os construídos, das arquiteturas diversas que têm servido de suporte alternativo para manifestações que procuram novos públicos.