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O Homem e o Meio

De 24 a 26 de agosto, o Sesc Vila Mariana realizou o seminário O Homem e o Meio: Cultura, Ciência e Sociedade Sustentável. O principal objetivo foi contribuir para o debate sobre as relações entre homem e sociedade, cultura e meio ambiente, sujeitas ora a períodos de mudança, ora a fases de continuísmo. O que vai querer a vontade humana? É o que procuram responder, em artigos exclusivos, o professores Pedro Jacobi e Wagner Costa Ribeiro, dos Programas de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo.

 

Educação: princípios e comportamentos para a cidadania e o desenvolvimento sustentável por Pedro Jacobi

O século 21 inicia-se em meio a uma emergência socioambiental que promete agravar-se, caso sejam mantidas as tendências atuais de degradação; um problema enraizado na cultura, nos estilos de pensamento, nos valores, nos pressupostos epistemológicos e no conhecimento que configuram o sistema político, econômico e social em que vivemos. Uma crise do ser no mundo, que se manifesta em toda a sua plenitude; nos espaços internos do sujeito, nas condutas sociais autodestrutivas; e nos espaços externos, na degradação da natureza e da qualidade de vida das pessoas. A humanidade chegou a uma encruzilhada em que é necessário examinar-se para tentar achar novos rumos, refletindo sobre a cultura, as crenças, os valores e conhecimentos em que se baseia o comportamento cotidiano, assim como sobre o paradigma antropológico-social que persiste em nossas ações, no qual a educação tem um enorme peso. Deste modo, a educação deve se orientar de forma decisiva para formar as gerações atuais não somente para aceitar a incerteza e o futuro, mas para gerar um pensamento complexo e aberto às indeterminações, às mudanças, à diversidade, à possibilidade de construir e reconstruir em um processo contínuo de novas leituras e interpretações do já pensado, configurando possibilidades de ação. A sustentabilidade como novo critério básico e integrador precisa estimular permanentemente as responsabilidades éticas, na medida em que a ênfase nos aspectos extra-econômicos implica uma inter-relação necessária entre justiça social, qualidade de vida, equilíbrio ambiental e a ruptura com o atual padrão de desenvolvimento (Jacobi, 1997). A reflexão sobre as práticas sociais, em um contexto marcado pela degradação permanente do meio ambiente e de seu ecossistema, envolve a necessária articulação com a produção de sentidos sobre a educação. A dimensão ambiental se configura crescentemente como uma questão que envolve um conjunto de atores do universo educativo, potencializando o engajamento dos diversos sistemas de conhecimento, a capacitação de profissionais e a comunidade universitária numa perspectiva interdisciplinar. Nesse sentido, a produção de conhecimento deve necessariamente contemplar as inter-relações do meio natural com o social, incluindo a análise dos determinantes do processo, o papel dos diversos atores envolvidos e as formas de organização social que aumentam o poder das ações alternativas de um novo perfil de desenvolvimento, com ênfase na sustentabilidade. O desenvolvimento sustentável não se refere especificamente a um problema limitado de adequações ecológicas de um processo social, mas a uma estratégia ou modelo múltiplo para a sociedade, que deve levar em conta a viabilidade econômica ecológica. Num sentido abrangente, a noção de desenvolvimento sustentável é necessária para a redefinição das relações sociedade humana-natureza, e portanto a uma mudança substancial do próprio processo civilizatório, e introduz o desafio de pensar a passagem do conceito para a ação (Jacobi, 1997). Assim, a idéia de sustentabilidade leva à prevalência da premissa de que é preciso definir uma limitação definida nas possibilidades de crescimento e um conjunto de iniciativas que levem em conta a existência de interlocutores e participantes sociais relevantes e ativos por meio de práticas educativas e de um processo de diálogo informado, o que reforça um sentimento de co-responsabilização e de constituição de valores éticos. Isto também tem como conseqüência que uma política de desenvolvimento na direção de uma sociedade sustentável não pode ignorar nem as dimensões culturais nem as relações de poder existentes e muito menos o reconhecimento das limitações ecológicas, sob pena de apenas manter um padrão predatório de desenvolvimento. Atualmente, o avanço para uma sociedade sustentável é permeado de obstáculos, e um dos grandes desafios é o de enfrentar a complexidade, as incertezas e as contradições de forma conjunta. Isto pressupõe principalmente a necessidade de estimular uma participação mais ativa da sociedade no debate dos seus destinos, como uma forma de estabelecer um conjunto socialmente identificado de problemas, objetivos e soluções. Se de um lado o contexto no qual se configuram os problemas de nossa civilização é marcado pelo conflito de interesses e por uma polarização entre visões de mundo, as respostas precisam conter cada vez mais um componente de cooperação e de definição de uma agenda que acelere prioridades para a sustentabilidade como um novo paradigma de desenvolvimento, sem esquecer das determinações estruturais decorrentes de um sistema globalizado, de um padrão de consumo que promove o desperdício naquelas sociedades e segmentos que dele fazem parte e da dualidade entre os que “têm” os que “não têm”. O desafio que está colocado é o de não só reconhecer, mas estimular práticas que reforcem a autonomia e a legitimidade de atores sociais que atuam articuladamente numa perspectiva de cooperação, como é o caso de comunidades locais e ONGs. Isto representa a possibilidade de mudar as práticas prevalecentes, rompendo com as lógicas da tutela e da regulação, definindo novas relações baseadas na negociação, na contratualidade, e na gestão conjunta de programas e atividades, o que introduz um novo significado nos processos de formulação e implementação de políticas socioambientais. O momento atual exige que a sociedade esteja mais motivada e mobilizada para assumir um caráter mais propositivo, assim como para poder questionar de forma concreta a falta de iniciativa dos governos para implementar políticas pautadas pelo binômio sustentabilidade e desenvolvimento num contexto de crescentes dificuldades para promover a inclusão social. Para tanto é importante o fortalecimento das organizações sociais e comunitárias, a redistribuição de recursos por meio de parcerias, de informação e capacitação para participar crescentemente dos espaços públicos de decisão e para a construção de instituições pautadas por uma lógica de sustentabilidade. Diversas experiências, principalmente das administrações municipais, mostram que, havendo vontade política, é possível viabilizar ações governamentais pautadas pela adoção dos princípios de sustentabilidade ambiental conjugada com resultados na esfera do desenvolvimento econômico e social. Nessa direção, a educação para a cidadania representa a possibilidade de motivar e sensibilizar as pessoas para transformar as diversas formas de participação em potenciais fatores de dinamização da sociedade e para uma nova proposta de sociabilidade baseada na educação para a participação. Esta se concretizará principalmente pela presença crescente de uma pluralidade de atores que, pela ativação de seu potencial de participação, terão cada vez mais condições de intervir consistentemente e sem tutela nos processos decisórios de interesse público, legitimando e consolidando propostas de gestão baseadas na garantia do acesso à informação e na consolidação de canais abertos para a participação (Jacobi, 2003). O desafio político da sustentabilidade, apoiado no potencial transformador das relações sociais que representam, como é o caso da Agenda 21 [documento aprovado pela Conferência das Nacões Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992] encontra-se estreitamente vinculado ao processo de fortalecimento da democracia e da construção da cidadania. Nesse sentido, o papel dos educadores, nas diferentes modalidades, é essencial para impulsionar as transformações de uma educação que assume um compromisso com a formação de valores de sustentabilidade, como parte de um processo coletivo, um saber ainda em construção. Isto demanda o esforço de fortalecer visões integradoras que, centradas no desenvolvimento, estimulam uma reflexão sobre a diversidade e a construção de sentidos em torno das relações indivíduos-natureza, dos riscos ambientais globais e locais e das relações ambiente-desenvolvimento (Jacobi, 2003). A educação, nas suas diversas possibilidades, abre um estimulante espaço para um repensar de práticas sociais, com base numa adequada compreensão essencial do meio ambiente global e local, da interdependência de problemas e soluções e da importância da responsabilidade de cada um para construir uma sociedade planetária mais eqüitativa e ambientalmente sustentável. Jacobi, Pedro (1997). “Meio ambiente urbano e sustentabilidade: alguns elementos para a reflexão”. In: Cavalcanti, Clovis (org.) Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Políticas Públicas. São Paulo: Cortez Editora.

Jacobi, Pedro (2003). Educação ambiental, cidadania e sustentabilidade”. In: Cadernos de Pesquisa, nº118:189-205. São Paulo: Fundação Carlos Chagas/Autores Associados.

Pedro Jacobi é professor associado da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (USP)

Cenários futuros: o futuro de quem?
por Wagner Costa Ribeiro

Muitos autores e cineastas idealizaram o futuro. Para alguns, ele será pleno de tecnologias, criando ambientes sofisticados, nos quais estarão concentrados populações e conhecimento de gerações. Será que estamos distantes dessas projeções? Vivemos em ambientes muito diferentes dos que viviam as pessoas de, por exemplo, 150 anos atrás. O campo e as cidades foram profundamente alterados em um período relativamente curto da história da humanidade, pensando em termos da civilização ocidental, de bases greco-romana e judaico-cristã. Grande parte dos campos cultivados que encontramos atualmente é resultado de estudos de vários pesquisadores. Desde o preparo do solo até a alteração de sementes, como é o caso das transgênicas, tudo contém informação técnica oriunda de experiências científicas, muitas vezes associadas ao conhecimento tradicional de povos indígenas, quilombolas, caiçaras, entre outras comunidades tradicionais. A introdução de técnicas modernas (em especial as promovidas pela revolução verde em países como o Brasil e a Índia) no cultivo de alimentos gerou problemas ambientais. Erosão do solo, penetração de defensivos agrícolas em águas subterrâneas, desmatamento são alguns dos seus efeitos. Daqui surge uma inquietação: mas as técnicas não deveriam resolver problemas? Sobre os transgênicos, por sua vez, temos pouco conhecimento, apesar de ampliarem sua participação na agricultura a cada ano. A pressa em aumentar os lucros e a produtividade pode ter um custo elevado no futuro. É preciso insistir que técnicas inovadoras devem ser avaliadas exaustivamente antes de ser aplicadas em larga escala. Ainda mais quando envolvem pessoas e o ambiente em que vivemos. Assim como os defensivos agrícolas mudaram gravemente os ambientes produtivos do planeta, quem pode assegurar que sementes transgênicas não trarão conseqüências prejudiciais? Essa é uma das questões que devemos debater agora para planejar futuro. As cidades foram transformadas em um conjunto de vias para automóveis trafegarem, deixando em segundo plano a livre circulação de pessoas. É patético ver tantos carros parados em meio ao trânsito. Entre os resultados aparecem a poluição do ar, o aquecimento local e a degradação da qualidade de vida. O desenvolvimento de técnicas construtivas permitiu o adensamento populacional em uma escala até então não registrada na história. A estrutura para coletar dejetos humanos cresce muito quando a população se concentra. Surgem mais vias, agora para transportar esgoto, ou água. Existem também as vias para telefonia, TV. São dutos e mais dutos, criando um sofisticado ambiente sob os pés dos habitantes das cidades. A vigilância permanente idealizada pelos ficcionistas parece ganhar materialidade. O “olhar” atento de uma câmera de vídeo não nos surpreende mais. Elas estão por toda parte: elevadores, entradas de edifícios, residências. Pena que não são eficientes... As ameaças resistem aos sistemas de controle. Essa série de objetos amplia enormemente a necessidade de recursos naturais e energéticos. O agravamento dos problemas ambientais decorre em parte disso. Outra tensão identificada há muitos anos é o crescimento da produção de mercadorias, que é realizado em um ritmo muito mais intenso do que a capacidade de a própria natureza recompor-se. Ela ocorre sobre uma base física que não se expande. Por isso a escassez de recursos naturais tende a se ampliar. Soluções como a reciclagem de materiais deixarão de ser uma prática engajada de ambientalistas. Diria mesmo que elas serão vitais na reposição da base material que sustenta o capitalismo. Nem todo mundo vive dessa forma. A diversidade de gêneros de vida, para relembrar uma expressão do geógrafo francês Vidal de la Blache (1854-1918) [um dos pioneiros da geografia regional francesa e professor na Sorbonne], permanece, mesmo com a pretensa homogeneização cultural globalizante. Se a vida é distinta, graças à cultura de cada grupo social, ela é construída sobre um planeta comum: a Terra, ao menos por enquanto. Não descartaria a possibilidade de que, no futuro, possa ocorrer extração de minérios de outros planetas... As diferenças culturais, sociais e religiosas dos grupos sociais da Terra necessitam de uma base material para ganhar expressão. É dela que são retirados materiais para edificar abrigos, construir vias, produzir alimento. Podem surgir no futuro impasses em relação ao acesso aos recursos naturais. Por isso temos de discutir muito como será esse acesso pelos habitantes do planeta. Em nossos dias ele é bastante desigual. Instituições como o Banco Mundial e a Unesco alertam para a possibilidade de conflitos por recursos naturais. O Projeto de Governança de Recursos Naturais, criado em 2002 pelo Banco Mundial, avalia as possibilidades de confrontação por recursos naturais. De modo exagerado, foca seus estudos em países pobres e que possuem recursos, justificando que neles a pobreza acaba por desencadear luta pelo acesso à base material da existência, o que gera a degradação de ambientes naturais. Ora, quem usa os recursos naturais do planeta em larga escala não é a população pobre! Vejamos o exemplo da água. Segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que somam 15% da população mundial, utilizam 27% dos recursos hídricos da Terra! Os gastos industriais de água nesses países é maior que a soma do uso domiciliar desse recurso em todo o resto do mundo, indicando o quanto o acesso à água ainda precisa de ajustes. Já o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente aponta que mais de 1 bilhão de habitantes estão sem acesso a água de qualidade. Esses dados indicam que pode ocorrer um agravamento de conflitos entre países por água. Diferentemente de outros itens usados em nosso dia-a-dia, é preciso ter água junto dos pontos de uso. No relatório Geo-2000, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, projeções indicam que países como Estados Unidos, Alemanha e França enfrentarão dificuldades de abastecimento de água em 2025. Em publicação de 2003, a Unesco reconheceu 80 guerras por água no mundo. Esse é um dos temas que deve atrair a atenção internacional nos próximos anos. O cenário de escassez de recursos naturais também atrapalha os planos de criar uma sociedade sustentável. Sem a revisão das desigualdades sociais, que geram acesso desigual à base material da existência, vai ser muito difícil chegarmos a um mundo mais sereno e menos conflituoso tal qual o atual. É preciso que trabalhemos para um novo mundo, mais igualitário que proveja a todos os seres humanos ao menos os recursos fundamentais à reprodução da vida. De certa maneira, as Metas do Milênio, propostas pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2000, e reforçadas na Cúpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentável, realizada em Joanesburgo em 2002, apontam para ações que podem reduzir as disparidades sociais na Terra. Pode ser um começo para um futuro melhor, não fosse a oposição à sua implementação por parte dos principais países do mundo. A apropriação da natureza tem ocorrido pela aquisição ou pela força. Na sociedade de consumo os benefícios são privados e os prejuízos ambientais são coletivizados, parte deles, em escala local, regional, nacional e até internacional. Nessa perspectiva, a “natureza” é de quem pode pagar por ela. Ou de quem tem armas para usá-la, empregando técnicas de ocupação direta ou indireta de territórios e seus recursos naturais. É preciso apostar no diálogo. Eventos como o Fórum Mundial de Cultura, realizado há pouco mais de um mês no Sesc, viabilizam o encontro de diferentes visões de mundo. É preciso globalizar as diferenças tornando-as universais. Os que consomem e utilizam recursos naturais em larga escala procuram garantir seu estilo de vida por meio de inovações tecnológicas. Os excluídos do mundo das compras buscam acessar recursos para funções básicas da vida, como morar e alimentar-se. Quem terá seu futuro garantido? Será preciso repensar o acesso a bens em escala internacional. O ponto de partida deve ser o mínimo necessário à manutenção de cada estilo de vida, desde que um deles não se sobreponha aos demais de modo a impedir sua reprodução. O desafio consiste na elaboração política de uma ética ambiental que permita a livre expressão também no campo da reprodução material da vida. Será preciso igualmente retomar o debate sobre cidadania. Ela só poderá ser exercida plenamente quando a reprodução da base material da vida estiver mais equilibrada, sem colocar em risco gerações futuras, que precisarão de água, energia e recursos naturais para viver. Para atingir esses objetivos uma coisa é certa: vamos ter de conversar muito ainda. E, por que não?, tal qual os ficcionistas do passado, projetarmos um mundo diferente do atual, no qual a base material para a expressão da vida não seja um ponto de conflitos ou apropriada apenas por quem pode pagar.

Wagner Costa Ribeiro é geógrafo, professor livre-docente do Departamento de Geografia e dos Programas de Pós-Graduação em Ciência Ambiental e de Geografia Humana da Universidade de São Paulo e autor de A Ordem Ambiental Internacional (Editora Contexto)