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CineSesc comemora os 90 anos de nascimento do escritor Julio Cortázar com ciclo de debates sobre sua obra e exibição de filmes inspirados em contos do mestre

A consagração para um artista é ver sua obra tocar mais e mais pessoas - um quadro ou uma escultura sendo apreciados por pessoas de outra parte do globo, a música que sai da imaginação do autor, ganha o som dos instrumentos e os ouvidos de uma infinidade de ouvintes, um texto literário capaz de atingir leitores independentemente da barreira da língua. O escritor argentino Julio Cortázar (1914-1986) poderia considerar-se inclusído no hall dos criadores que vêem a obra ganhar o mundo. Em seu caso, com um gostinho a mais. Sua literatura foi transposta para as telas de cinema em curtas e longas-metragens. Cerca de 20 contos de Cortázar já viraram películas. Seus personagens ganharam vida na pele de atores consagrados, como a inglesa Vanessa Redgrave, protagonista de Blow-up, filme inspirado no conto Las Babas del Diablo, dirigido por Michelangelo Antonioni, em 1966. O renomado diretor francês Jean-Luc Godard também se inspirou na obra do argentino ao dirigir, em 1967, Week End, produção baseada no conto La Autopista del Sur. No Brasil, a obra de Cortázar chegou ao cinema pelas mãos do diretor Guilherme de Almeida Prado, que em 1998 lançou A Hora Mágica, ambientado na década de 1950 e baseado no conto Cambio de Luces. Em 2004 o escritor completaria 90 anos. O presente de aniversário vai para seus admiradores: uma mostra no CineSesc - de 24 a 30 de setembro - que exibirá filmes baseados em textos do autor argentino e promoverá debates com professores da Universidade São Paulo, tendo como foco a literatura que ele construiu. Para oferecer ao público filmes representativos do universo do mestre, foi preciso um verdadeiro trabalho de garimpo empreendido pelos técnicos do CineSesc, já acostumados com a atividade de investigadores. Geralmente o que estará em cartaz depende do sucesso dessa busca. “Primeiro levantamos todos os filmes comerciais baseados em Cortázar. Para consegui-los foi preciso entrar em contato com cinematecas, consulados e produtoras. Dessa forma chegamos ao detentor dos direitos e negociamos a exibição. Mas muitos já se perderam ou não estão mais em condições de se deslocar do país de origem”, explica Luiz Zakir, gerente do CineSesc. Entre outros, o público poderá assistir a três filmes dirigidos pelo argentino Manuel Antín, como Intimidad de Los Parques (1964), baseado nos contos Continuidad de Los Parques e El Ídolo de las Cícladas; Circe (1963), inspirado em texto homônimo; e La Cifra Impar (1962), que tem como fonte o conto Cartas de Mamá. Além deles, o brasileiro A Hora Mágica (1998) marca presença na série de exibições.

Para as telas
Contos de Julio Cortázar serviram de inspiração em vários momentos da carreira do cineasta argentino Manuel Antín. A convite da Revista E, a professora de Literatura Hispano-americana da Universidade de São Paulo (USP), Laura J. Hosiasson, sintetizou algumas das histórias de Cortázar que Antín transportou para o cinema.

Circe (1967)
“Essa história envolve de forma fantástica uma mulher, Delia, e seus noivos mortos misteriosamente, antes do casamento. Mario, o protagonista, vai entrando nas redes de Delia e se transforma no terceiro noivo...”. A história deu origem ao filme homônimo de Antín.

Cartas de Mamá (1967)
“Luis e Laura, jovem casal recém-casado e morando em Paris há dois anos, recebe cartas periódicas de Buenos Aires. Cartas que irrompem no equilíbrio cotidiano, trazendo o passado recente e remoto, de culpas, de remorsos de traição, de ingratidão, de abandono e de morte...”.. Essa é a idéia que inspirou Antín para dirigir seu La Cifra Impar.

Continuidad de los Parques (1964) e El Ídolo de las Cícladas (1954)
O diretor argentino uniu dois contos de Cortázar para criar o enredo de Intimidad de los Parques. No primeiro, “um homem lê um livro, sentado confortavelmente em sua poltrona de feltro verde, deixando-se levar pelos acontecimentos da narrativa até o ponto em que nós, leitores de sua leitura, não mais sabemos se estamos diante da história de um leitor ou da vítima, terceira peça do triângulo de um crime passional...”, resume a professora. O segundo conta a história de dois homens e uma mulher, Therèse. “Uma viagem à Grécia, um arqueólogo, um escultor uma estatueta antiga, o adultério, a traição e, mais uma vez, o crime passional...”.

Quem foi, o que fez
O argentino Julio Cortázar nasceu, curiosamente, em Bruxelas, na Bélgica, em 1914. “Foi um acidente turístico e diplomático”, disse ele sobre sua vinda ao mundo em terras tão longínquas de Buenos Aires, cidade natal de seus pais. Quatro anos depois de seu nascimento, a família volta a viver na capital argentina e é lá que ele mergulha na literatura, quando aos 9 anos começa a escrever poemas. O primeiro grande impacto literário da vida de Cortázar foi a descoberta, na década de 30, de Ópio, de Jean Cocteau, cuja leitura o colocou em contato com o surrealismo. Somente em 1944 é que ele publica seu primeiro conto, Bruxa, na revista Correio Literário. Para Laura J. Hosiasson, professora de Literatura Hispano-americana da Universidade de São Paulo, Cortázar já estreou inovando. “Desde o começo de sua carreira, a obra se incorpora às novas tendências de ruptura formal que caracterizaram a literatura do século 20 na Argentina e na América hispânica. As revolucionárias técnicas narrativas da literatura contemporânea européia (Marcel Proust, James Joyce, Virginia Woolf) e norte-americana (William Faulkner e Ernest Hemingway) do início do século 20 eram absorvidas pelos novos narradores”, explica a professora. Ao lado de Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Gabriel García Márquez, Jorge Luis Borges e outros, Julio Cortázar foi um expoente da renovação literária que na época se chamou o boom hispano-americano, importante movimento da literatura ocidental nesse período. “Ele se insere numa linhagem da literatura produzida, sobretudo, na América do Sul, tal qual Jorge Luis Borges, em que se combinam elementos oníricos, um prosaísmo exacerbado e um tratamento formal de altíssimo grau de racionalidade estética”, analisa Laura.

Como a literatura virou sétima arte
“A importância do aspecto espacial e do tratamento do foco narrativo em Julio Cortázar podem ter contribuído para que suas obras se tornassem tão atrativas para roteiristas e diretores de cinema. A obra de Cortázar, em seu conjunto, caracteriza-se, de fato, por uma espacialidade muito marcada. Marcada até mesmo por certa influência de recursos cinematográficos, incorporados à técnica narrativa do autor. Os personagens, desenhados por meio de pinceladas impressionistas, quase esboços físicos, mas de grande complexidade subjetiva e psíquica, perambulam pelas ruas de alguma cidade (que pode ser Buenos Aires ou Paris...) ou simplesmente estão sentados num sofá ou diante de uma janela, abrindo ou fechando portas dentro de uma casa ou apartamento de subúrbio. Nesses espaços, os protagonistas desenvolvem atividades do cotidiano, se vestem, tomam chá ou café, fumam, conversam, cozinham, tocam música, escrevem, traduzem, passeiam... Esses espaços do prosaico vão sendo sugeridos na narrativa a partir das ações dos protagonistas e do desenvolver da trama, mas podem chegar a ocupar lugar central na história, como é o caso do célebre conto Las Babas del Diablo, de 1959, que deu origem ao filme Blow-up (foto), dirigido por Michelangelo Antonioni, em 1966. Ali, como em grande parte da obra de Cortázar, aspectos teóricos sobre a arte de narrar são tematizados, incorporados à tessitura da história que se conta. Nesse conto, o tratamento do espaço e o foco sobre ele serão questões discutidas explicitamente pelo personagem-narrador-fotógrafo. É impossível definir um autor da envergadura de Cortázar por um simples e único traço. Mas poderíamos pensar em algumas chaves, como, por exemplo, a freqüência com que a ficção se entrelaça com o ensaio crítico em toda a sua produção. O narrador, em sua obra, parece estar sempre tropeçando com a consciência do próprio ato de narrar, desconfiando de sua eficácia ou se perguntando qual rumo tomar. A linguagem também se torna por vezes traiçoeira, já que aquilo que a literatura busca se encontra de alguma maneira sempre além ou aquém dela mesma, virando um problema para a própria ficção, que quase se defronta com sua autodestruição. Digamos que um outro eixo temático central na ficção de Cortázar, que deriva desse, é justamente a pergunta sobre como contar uma história, como narrar. Outro núcleo fundamental é o enlace entre o real e o imaginário, a forma como a realidade mais prosaica se vê invadida de súbito por algum elemento surreal ou fantástico. O sonho irrompe no mundo da vigília, desmanchando fronteiras e criando espaços de ambigüidade entre ambos. Também é forte a presença do jazz na obra de Cortázar - como em O Perseguidor, em que o protagonista carrega marcas de Charlie Parker. A estrutura formal de suas narrativas propicia um ritmo de devaneios que remete às improvisações jazzísticas. Encontramos também, a cada passo, elementos lúdicos, o humor fazendo uma espécie de ponte simbólica com a tragédia, o lado sério e sombrio que emoldura uma busca frustrada por um sentido de totalidade.”

Laura J. Hosiasson, professora de Literatura Hispano-americana da Universidade de São Paulo