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Ficção Inédita
A flor de nenhum buquê

Joca Reiners Terron

para Hilda Hilst

Educação: princípios e comportamentos para a cidadania e o desenvolvimento sustentável por Pedro Jacobi

A esta altura a infância é um obstáculo derrubado no início da cancha. Nem sombra de corredor na visão escura daqueles idos ou sol sobre a grama dos estádios das façanhas musculares dum corpo que não me pertence mais. Entre páginas de livros furadas pelas lâminas de corsários e balaços dos caubóis, meu começo parece terminado naqueles dias, mesmo - eram os últimos e eu nem sequer suspeitava disto. A imaginação excessiva do começo me adoece hoje, e a fuligem dos dias deixa algo no ar, além de alergias. Infelicidade venal, talvez. Ou apenas tristeza. Quando deixei o interior, minhas expectativas ainda nem tinham esse nome, e Esperança não era nome de novela ou cantora de bolero. Eu cheguei nesta cidade grande com os bolsos vazios e um estômago meio obsoleto, tal era a fome. Porém havia lido todos os livros e isto me alimentava - eu encararia tudo e a certeza da vitória nem ocupava meu tempo, pois havia um troféu me esperando no pódio. E a cada vez que eu passava diante duma florista pensava: um dia terei dinheiro e o meu prêmio - “Esperança virá me encontrar e eu a cobrirei de flores e então nos casaremos”. No início era apenas sonho. A cerca de 1 quilômetro da pensão onde morava havia um cemitério e em torno dele numerosas barracas de flores. Begônias, fúcsias, tulipas, papoulas, margaridas, toda sorte de buquês, cores as mais vivas, cheiros inigualáveis. Eu planejava seqüestrar um táxi e enchê-lo de flores assim que Esperança tivesse partido de nossa cidadezinha. Eu a encontraria diante do prédio cinza da rodoviária próxima ao bairro portuário, perto da tristeza cinzenta que inundava aquelas docas no centro da cidade. Eu dentro de um táxi amarelo junto de um taxista negro, ambos contrastados diante daquele fundo sarapintado de verde, amarelo, azul, violeta e outras cores. Eu a esperaria por lá, feliz da vida, o taxista amordaçado olhando para mim com ar de desconsolo. Mas não passavam de conjecturas, quimeras que nunca se realizariam, já que nada parecia dar certo nesta maldita cidade. Não me restava outra saída a não ser sonhar e esperar. Porém, certa ocasião, enquanto eu enterrava minha antepenúltima mágoa num copo de cachaça, a chance surgiu do nada. Um senhor muito distinto sentou-se no balcão ao lado e percebeu meu abatimento.
“Qual o problema, filho?”
“Total e irrestrita ausência de horizontes à frente.”
“Falta de grana?”
“E o que mais?”
De súbito o homem ergueu-se e passou por mim, em direção ao balcão onde o atendente se refestelava com mocotó. Me apontou o dedo, falando com o rapaz, e não pude ouvir patavina do que diziam, apenas acompanhei suas mímicas e os grãos de arroz que voavam das colheres, iguais a meteoritos ou foguetes, enquanto ele regia a conversa em volteios semelhantes aos de um maestro diante da maior orquestra do mundo. Depois voltou pro meu lado e sentou-se.
“Fui com a sua cara, toca aqui!”
Percebi a pele de sua mão macia de malandro.
“Sou o dono deste boteco. Há uma vaga de assistente de cozinha, interessa?”
Não lhe beijei as bochechas porque tenho alergia a barba alheia. Em dois dias eu tinha um adiantamento no bolso e acertara o aluguel atrasado da pensão. Então novamente comecei a sonhar. Desta vez seqüestraria um ônibus - flores, flores e mais flores. Coloquei outra vez as calçadas do cemitério no meu trajeto do trabalho para casa e todo início de noite me enfurnava entre as samambaias. E de dentro daquela mata preservada em pleno tráfego eu berrava para fora, todos os floristas vendo: “Esperança, venha me encontrar! Esperança, nunca desistirei de você!”.
Depois de três meses de trabalho no boteco, consegui colocar minhas finanças em dia. Nesse período nunca deixei de comprar um botão de rosa que fosse, daqueles baratinhos, que não comprometeriam meus planos. Eu os depositava numa jarra com água em cima do criado-mudo e, quando voltava à noite para repousar, havia um cheiro em todo o ar do cômodo, até mesmo o lençol e a fronha de meu travesseiro impregnavam-se de rosas e eu podia ver naquele cheiro Esperança, e eu berrava na janela com todo ardor, esculhambando o sono dos marinheiros e estivadores do bairro, “Esperança, venha! Esperança, eu te espero!”. Até os gatos me xingavam. No sábado seguinte fui até a companhia telefônica e liguei para ela. “Esperança? Adivinhe, coloquei hoje uma carta no correio pra você. Sim, sim. E sabe o que segue dentro dela? Uma passagem de ônibus, Esperança, uma passagem de ônibus!” Eu podia ouvir o seu arfar a 600 quilômetros de distância. Aquilo só podia significar felicidade. No dia de sua chegada tudo começou a dar errado logo cedo. Quando passei nas floriculturas ao lado do cemitério, estavam fechadas. “O que houve com as flores?” “Greve dos coveiros. Eles não abrem covas, não sobra pétala de margarida nem pra mal-me-quer.” Bufei alto, enquanto seguia pra rodoviária, meio desesperado. Em meio ao nevoeiro com cheiro de aço da plataforma, eu me sentia triste e feliz ao mesmo tempo, “Por que as coisas nunca vêm completas, meu Deus? - Esperança está aqui, e necas de flores”, enquanto o tornozelo cingido por trabalho pesado dela escapava porta do ônibus afora. Então abracei-a e saímos agarrados por aquela cidade já nem tão gris assim. Bastaram dois quarteirões para o primeiro tiro furar uma nuvem qualquer e diminuir drasticamente nossas chances de felicidade. Próximo a um canal que atravessava a cidade, ouvimos novo estampido e vimos um homem correndo. Nos aproximamos do balaústre da ponte acima do canal, Esperança com seus olhos trêmulos. Dentro d’água havia um corpo boiando, de barriga para cima. Conforme chegávamos perto, sua cara ia virando em nossa direção, um passo e mais outro e nos encarava, toda desfigurada pelos balaços, uma massa disforme de rosa-gálica, de rosa-canina depois da autópsia em camadas de epiderme e então Esperança me olhou e baixinho murmurou: “Chaga de sol, rosácea ardente Aqueles linhos de sangue, o peito Mais profundo, aberto, extenso, Toda a delicadeza do poeta Flui Exangue Num círculo de dor. Assim me lembro”. De alguma maneira aquela rosa de carne no rosto do morto emborcado me consolava. Aquelas pétalas de carne cheirando a pólvora pertenciam à flor que a cidade e eu oferecíamos a Esperança. A flor de nenhum buquê.

Joca Reiners Terron é autor, entre outros, de Curva de Rio Sujo (Planeta do Brasil