Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Encontros
Caricaturas urbanas

Paulo Caruso

O convidado da reunião do conselho editorial da Revista E, Paulo Caruso, chegou ao encontro depois da hora marcada, mas fez questão de logo explicar o motivo: “Desculpem pelo atraso, mas tive um imprevisto. Recebi um sofá que não passava pela porta, foi preciso desmontá-lo, e demorou bastante...” O modo bem-humorado ao lidar com o contratempo não poderia ser mais adequado para descrevê-lo. O consagrado cartunista tem total domínio sobre a matéria-prima de seu trabalho e sabe empregá-la nas mais variadas situações cotidianas. Na conversa a seguir, Caruso, que acabou de conquistar o Prêmio Jabuti por um trabalho feito em co-autoria com a Academia Paulista de Magistrados sobre o novo Código Civil Brasileiro, falou um pouco de si e outro tanto sobre a cidade de São Paulo, que para ele de cinza e desumana não tem nada. “É maravilhosa e riquíssima”, afirma. “Se tivéssemos noção do valor do patrimônio histórico e cultural, teríamos preservado mais São Paulo. E, hoje, ela seria uma das melhores cidades do mundo.”

 

Um pouco sobre Paulo
O meu trabalho é como desenhista de humor, mas sou multimídia, gosto de quadrinhos, música e muitas outras coisas. Recentemente, por exemplo, recebi a feliz notícia de que recebi o Prêmio Jabuti por um trabalho que fiz em co-autoria com a Academia Paulista de Magistrados sobre o novo Código Civil Brasileiro. A partir de informações técnicas passadas para mim sobre as mudanças do Código Civil, criei uma história em quadrinhos sobre uma família fictícia que sofre as conseqüências da lei de acordo com o novo Código. O autor é o José Rodrigues de Carvalho, o magistrado que fez o texto, eu criei os quadrinhos. Sempre desenhei por brincadeira e acabei tornando isso profissão, foi uma surpresa para mim também. Formei-me arquiteto porque diziam que quem desenha bem deveria fazer arquitetura. Depois percebi que meu desenho é expressionista, com caricaturas, imaginação, muito diferente do desenho de arquitetura, que é para objetivar materiais, métricas e medidas. Depois de 20 anos da minha formatura, liguei para a faculdade para ir buscar o diploma, achava um absurdo eu ter me formado e não buscar o diploma. Liguei em 1999 e disse que havia me formado em 1977, nem havia me dado conta de que fazia 20 anos da minha formatura na USP. A arquitetura é uma profissão encantadora que eu gostaria de ter seguido, mas desde os 17 anos de idade eu trabalhei com caricatura na imprensa, o que também considero uma atividade maravilhosa. Apesar de ter um irmão gêmeo, sempre tive a sensação de ter sido adotado porque eu via meu irmão conquistando os espaços dele e me sentia em segundo plano. Vi depois que ele é quem foi adotado, acabou de ser adotado pela família Roberto Marinho. Ele faz as vinhetas da TV Globo e todos pensam que sou eu, já nem discuto mais, pode dizer que eu sou ele [risos]. Estava no aeroporto e chegou um vendedor de bala me confundindo com meu irmão, dizendo que adorava meu trabalho. Eu respondi: Espera para ver o próximo [risos]. No processo da abertura política do Brasil o Chico [Francisco Caruso, irmão de Paulo] chegou a perder o vestibular porque foi preso. Eu fiz a prova e pedimos revisão da dele, que pôde prestar em outra data e acabou entrando no mesmo ano que eu. Nosso mapa astral dizia que íamos fazer arquitetura no mesmo ano, mas em condições diferentes. Há pouco tempo fiz um livro de desenhos e caricaturas da cidade - o que me reaproximou da arquitetura -, que lancei no dia 25 de janeiro em uma grande exposição na Galeria Prestes Maia. Esse dia é importante para mim porque era o aniversário de meu pai. Ele se chamava Paulo Caruso, deu seu nome ao primogênito - eu. Apesar de ser gêmeo também sou o primogênito [risos]. Depois da morte de meu pai, todo dia 25 de janeiro eu fazia um evento, assim lembrava minha relação com ele.

Outro tanto sobre São Paulo
No dia 25 de janeiro de 2003 fiz uma grande exposição no Bar Piratininga - onde também toquei durante seis anos - com desenhos da cidade publicados na Revista dos Arquitetos. São cartoons, desenhos sobre a cidade de São Paulo e cenas que eu vivi ou presenciei. Uma delas, que eu vivi, vem da época em que morava na região da Praça da República. Foram 20 anos morando lá, um período de, como se diz, sexo, drogas e rock’n’roll. Um dia, eu, completamente deprimido, vi um pintor, desses de parede, cantando, muito feliz. Apesar de eu ter me formado em arquitetura e ter estudado a vida inteira, estava arrasado, muito pelo momento que estávamos vivendo, a política, o sexo, as drogas... Enfim, havia um homem se equilibrando em uma corda, pintando a parede e cantando feliz. Criei um trabalho que é um homem pintando o céu entre os edifícios e feliz. Embaixo uma epígrafe que diz: “Em cada profissão uma arte, um encanto em toda parte”. Esse é um dos desenhos que estão no meu livro sobre São Paulo. Essa exposição do Bar Piratininga tinha dez desenhos sobre a cidade. Um é o arquiteto montando um quebra-cabeça com a trama urbana do desenho da cidade, outro é uma faxineira varrendo a perspectiva da cidade, criando um vazio. Republiquei esse desenho na época em que a [Luiza] Erundina era prefeita, usando-a como a personagem, varrendo todos os edifícios da cidade em cima de um mapa feito pelo Célio Botura. Ele até ligou para a Folha de S.Paulo perguntando como assim eu havia colocado um desenho dele sem autorização. Eu disse que em primeiro lugar adorava o trabalho dele, e havia achado maravilhoso o retrato da cidade com os edifícios. Daí, ele propôs uma troca: ficaria tudo bem, mas ele queria um anúncio fúnebre no jornal, porque a mãe dele havia falecido. Eu concordei na hora e liguei para o departamento comercial. Paguei o anúncio fúnebre para a mãe dele e a partir daí fiquei amigo do Luiz Célio Botura. Em 2003, pelo fato de que no ano seguinte São Paulo faria 450 anos, iniciei uma série de caricaturas da cidade. Meus filhos me ajudaram a fotografar, eu saía com meu bloquinho de desenho. Assim lancei agora o livro São Paulo por Paulo Caruso (Imesp/2003). A Imprensa Oficial se encantou com os desenhos e fez com eles um calendário. Comecei esse livro fazendo imagens grandes do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, do Mercado Municipal, do Edifício Copan e da Sala São Paulo. Eu me dirigia a cada um desses locais com meu bloquinho de desenho e ficava estudando. No caso do Monumento às Bandeiras, tive a chance de perceber várias coisas. Por exemplo, que a terceira figura naquele empurra-empurra todo é um rabino com o cabelo na frente das orelhas - uma coisa cultural, religiosa. E tem também um asiático, um negro, um grupo de três pessoas - um europeu barbudo, uma índia e uma criança - dividindo uma tigela de farinha. Percebi que, muito mais do que uma citação do comportamento conquistador e desbravador dos portugueses que nos colonizaram, o monumento é uma homenagem a nossa grande riqueza: a mistura étnica. Aliás, foi isso que gerou o crescimento de São Paulo. Esse trabalho foi marcante para mim. Uma das maneiras que temos para ver de fato a cidade é abdicar do preconceito, aquela visão que esta é uma metrópole cinza e desumana. Não é, não. É maravilhosa e riquíssima. Se tivéssemos a noção do valor do patrimônio histórico e cultural, cuidaríamos mais da preservação de São Paulo. E, hoje, ela seria uma das melhores cidades do mundo. O trabalho sobre a cidade resgatou um lado meu, de arquiteto, do qual eu havia abdicado, achava que tinha cursado a faculdade por pressão familiar ou afirmação profissional. É importante ter um diploma na parede, mas o mais importante é o que você realmente extrai de sua formação, independentemente do que você tenha sido obrigado a fazer.