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Ficção Inédita

Duelo ao sol

 

Sergio Amaral Silva

 

Ilustrações: Marcos Garuti

 

Tu te sentes parte, pequenina parte de uma legião. Ao longo do rio ancestral em que nada se perde ou esquece, és sucessivo de tantos quanto de ti mesmo noutras aventuras. Lembras-te, é claro, das áreas alagadiças em que construías, sobre barro amontoado. Dos utensílios que lascavas e depois polias, da energia intermediada por aves ou peixes para teu sustento. Sua fonte: o sol, pai sempre. E dos corpos que sepultavas, posição fetal, em altas urnas de argila. Retorno ao ventre, à terra que os teus buscavam imitar depois, nas casas subterrâneas, seguras e quentes como um útero.

No espaço, basta olhar em volta e reconhecer mútuas parecenças, multiplicadas. Iguais parecem ser a urgência, a sede, a certeza de uma sina a realizar somente em presença do outro, teu duplo. O mesmo que, sem que saibas, no extremo oposto desse labirinto de espelhos, empreende agora simétrica jornada. A teu encontro e em direção aos ignorados lugar e hora que se unam na ação, a te libertar do nada. Neutralidade acaso instável, como se mandala, onde e quando ponteiros não se toquem nem redimam.

Há caminhos que se bifurcam, qual se fossem o tempo, perpetuamente a incontáveis futuros. Num deles, sou o redentor, o inimigo. Noutro, não existo senão no sonho de alguém; num terceiro, iludem-me corredores tortuosos como as paixões do passado. Paredes e pisos de bronze polido repetem os erros ao limite sensível do eterno, feito os segundos ecoam uns sobre os outros. Fazendo de nenhuma vontade, inconseqüente, e da estada precária, perene mudança. Vejo uma serpente a devorar-se pela cauda. E passagens bloqueadas, forçando a repisar os próprios (alheios?) rastros. Terror suspenso, qual se pressentisse o medo nos gritos do deus Pã na próxima curva, a céu aberto. Setas de sol, exatas, agudizam arestas de quartzo. Varado dessa luz, identifico-me na imagem.

Bem no centro, lugar mágico da origem (a que chegas, não sem tropeços), repousa a arma branca. Ei-la, instrumento de justiça e sacrifício. Não é de ouro, folha longa ou nobres minerais, aço de Toledo. Degradada, te recorda, mais que a coragem de heróis, a bravura assassina de trapaceiros, valentões. Sentes na mão o calor, talvez repercussão do sol, quem sabe despertar de um instinto ou rancor que espreita, desde há muito, desde homens antigos. Por isso, teu punho tremeu.

Por isso, tremeu meu pulso.

Vieste?

Vim.

De onde? Provéns da qualidade que dá o valor de uma pérola?

Do lugar das trevas, de onde sai o discípulo rumo à luz.

E o embate se faz a tão conveniente cena. Diz-se de conjunções em que a faca, uma vez sacada, é de tal forma que já sai cortando. Ali, não há bainhas, ponteiras nem bocais. Ou o que despir, prolongamento ritual; e sim tudo explícito, já exposto. Nuas, as lâminas faíscam, transpassadas de luminosidade: em mil reproduzidas ante o cristal impenetrável, frio executor de um pacto secular.

Olhos se investigam, estranhos. Interrompida por um módulo de instante (duração imensurável), a respiração é indício de vida e signo de morte, antecipada. Seus dois movimentos se conectam aos do sangue, inda represado em leitos.  Se ritmados, permitem absorver, mais que a mistura do ar, o vigor do sol que alaga e vitaliza, poder bem mais alto. Defeitos fatais em si mesmo(s), qualidades inversas que, no oponente, destinam-no à vitória. Em lutadores, a ira atávica que move ao combate há que ser como gelo: dura e fria, capaz de queimar. Estado mais cruel da água especular, que a semelha ao vidro liso e ao metal mascarado.

Por trás do fio, a empunhadura muda. Mudra, sistema de gestos e posturas manuais que, em certa seqüência e tradição, são linguagem de poucos, propícia a secretos e mudos discursos. Usados no Oriente em danças sagradas, aqui comunicam a sanha de vencer. Os dedos, a partir do polegar, decerto figuram a alma do Universo à do homem: pureza, paixão, matéria. Ou éter, ar, fogo, água, terra. Síntese de aspirações elementares. Combinados, sintonizam forças especiais necessárias à superação de quem nos fixa, impassível.

Mais que ferir-se, receia por certo expor-se, mostrar quem é, sua face nem plana nem descolorida prestes a assustar, com ruídos, ou distrair, esgares de rosto. Nega-se à menor velocidade, ao deslocar do segundo menos denso que um louro raio penetre.

Ofuscados embora pelo brilho, os olhos oscilam em busca dos pontos de corte, em postura de ataque. Um golpe horizontal, perpendicular à superfície silenciosa de prata traria como resposta imediata uma estocada funda e firme no flanco direito, procurando o fígado. 

Porém, o movimento surpreendente sugere mais que confusão de ferros, estudo de xadrez. O braço armado sobe além da cabeça, simultâneo a um passo atrás. Descendo forte qual relâmpago, mais rápido que a esquiva, faz sangrar o ombro, incisão oblíqua, à imagem de um tiro fino. A reação, num avanço seco, visa ao coração: numa espécie de giro comandado pela linha da clavícula, resulta num talho de ponta, ligeira torção do pulso riscando em vermelho o peito sob dilacerado pano.

O antebraço retoma o aparar das incursões da lâmina aguçada e as mangas, feitas em tiras, logo escurecem de rubro, empapadas, enquanto a luta de distâncias se exercita frente ao aço mago. A tersura já inexiste, salpicada das feridas que cintilam sob o sol, latejando em suor. Vital agora é manter-se o equilíbrio que permite guarda, deflexão, revide. Os riscos sangrentos resvalam no rosto, nos braços, uma investida arisca pega em meio a coxa. O prenúncio se mostra em súbita desguarnição, imprudente.

O gume então se lança reto, em decidido arremesso à frente, mira o meio-esquerdo do tórax. Ouve-se a faca rompendo a carne por entre as costelas, expiração curta no acesso ao centro dos músculos. A mão se distende em torno do cabo, a contratura em sucção a exigir uma força já esgotada para arrancar a arma antes que o corpo caia.

Lateral ao grande gabinete cristalino de arquitetura asséptica, já não há dor ou hálito que embacie o resplendor dourado.

O sol da tarde reverbera no único pedaço visível da lâmina larga, a carneadeira. Nele não há vestígio de sangue.

Acreditarás, homem vindouro? – se disse. Ele apenas se defendeu.

 

Sergio Amaral Silva é autor de Vida Felina (Edições Sanguinovo)