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Sociedade e Cidadania 1

Imigração forçada

 

Fotos: Adriana Vichi

 

Cerca de 3 mil refugiados, vindos de 50 países, encontraram no Brasil a única saída para uma vida longe da barbárie

 

Quando saltou no Porto de Santos, em 2001, depois de quase um mês viajando clandestinamente, o liberiano Joseph Small, de 43 anos, estava certo de que chegara a Miami. Lá, reconstruiria a vida, após passar pelo inferno de uma guerra civil que assola a Libéria há 16 anos. Uma coisa era certa: o inferno estava longe. No entanto, o destino sonhado também. “De dentro do navio eu ouvia as pessoas do porto falando uma língua que eu não reconhecia, mas achava que podia ser o inglês de Miami, que tem um acento diferente do falado na Libéria”, relembra. Não era. Era o português, língua que teria ainda muita dificuldade para aprender. Desde então, Joseph vive como refugiado, sob o abrigo do governo brasileiro.

As condições de vida das vítimas da chamada imigração forçada são hoje um dos principais assuntos na pauta da Organização das Nações Unidas (ONU). A complexidade da questão exigiu até a criação de um órgão, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), para refletir sobre os problemas relacionados ao assunto e buscar soluções para o destino dos que não podem viver no próprio país. No Brasil, o Acnur é representado desde 2004 pelo peruano Luis Varese. Para ele, o País possui uma avançada e bem elaborada legislação de refúgio, se comparada com a de muitas outras nações. “Ela possui critérios que outras legislações não possuem”, afirma Varese. “Por exemplo, o governo brasileiro também protege pessoas que pedem refúgio não apenas devido a uma perseguição individualizada por motivo de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, mas por se verem ameaçadas pela violência ou violação generalizada de direitos humanos, independentemente de seus atributos individuais.”

Faz-se necessário estabelecer, na maioria das vezes, o que significa ser um refugiado, já que esse grupo costuma ser confundido com quem opta por imigrar. Refugiado é aquele que foi forçado a deixar o país por temer por sua segurança. Em geral, são pessoas que fogem de guerras, ditaduras ou mesmo de situações adversas provenientes de racismo, perseguição religiosa, nacionalidade ou pelo crime organizado, como os colombianos que fogem por temer o narcotráfico. Uma vez reconhecido como refugiado, o indivíduo passa a ter os mesmos direitos que um estrangeiro legalizado no País.

 

Iniciativa pioneira

Quando alcançam um território que as acolhe, essas pessoas deixaram para trás situações de extrema violência, perseguição ou terror. Mas também deixaram amigos, familiares, maridos e esposas. Alcançar um porto seguro é o passo mais premente, porém, é só o primeiro. Uma vez em terra, resta recomeçar a viver. Daí surge a importância do trabalho desenvolvido pelo Sesc São Paulo, por meio da unidade Carmo, em parceria com a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo – organização, ligada à Igreja Católica, de atuação social – e o Acnur. A iniciativa, que completa dez anos em 2005, tem por objetivo principal a inserção social e cultural dos refugiados que chegam a São Paulo, e atende tanto aqueles que estão solicitando refúgio ao governo brasileiro quanto quem já é considerado refugiado.

Na prática, a unidade Carmo acaba se transformando numa espécie de segunda casa dessas pessoas, depois dos abrigos onde dormem. Principalmente no período inicial, quando muitos não falam a língua nem conhecem ninguém, é ali que encontram um espaço para a socialização, em atividades culturais ou esportivas. “Eu não saía daqui. Quando não tinha trabalho nem muitos amigos, passava o dia jogando dominó, indo às oficinas de música ou vinha aqui para conversar”, conta o liberiano Joseph Small. Na programação do Sesc, as oficinas de música elaboradas especialmente para o grupo tornaram-se uma atividade de grande participação. “O que se percebe é que por muito tempo essas pessoas não tiveram a oportunidade de cantar suas músicas, seus hinos”, explica Denise Collus, técnica do Sesc Carmo responsável pelo trabalho. “Aqui todos são convidados a expressar os sentimentos e as lembranças, tudo é valorizado, bem-vindo.” Também são oferecidos aulas de português, acesso grátis à internet e refeições a baixo custo. “A internet é fundamental na vida de alguém nessa situação. É só assim que a maioria deles tem notícia da família e do país”, diz a técnica do Sesc. “Outro dia, um deles recebeu no dia de seu aniversário a foto da filha que não via há anos. Até mesmo para acompanhar o processo de solicitação de refúgio, ou para reunir a documentação necessária, a internet é fundamental.”

Luis Varese, do Acnur no Brasil, afirma que o trabalho do Sesc é pioneiro na tentativa de melhorar a qualidade de vida do refugiado.“É preciso encarar o fato de que, enquanto houver refugiados, devemos procurar soluções inovadoras e duradouras para a qualidade de vida dessas pessoas. Proteger os refugiados é uma forma de promover a paz, e os países têm a obrigação de ser solidários com esta parte expulsa da humanidade devido aos interesses dos Estados e suas anomalias. A iniciativa do Sesc é maravilhosa porque tem um enfoque multicultural e busca reintegrar quem pede refúgio no Brasil. É uma experiência que deve ser mais bem conhecida e divulgada internacionalmente.” Varese explica ainda que a posição do Brasil diante desse problema é fundamental para um novo enfoque humanitário na América Latina, podendo exercer uma enorme influência.

 

Por acaso

Na maioria das vezes, a procura é por países mais ricos que os de origem. Só que nem sempre é possível levar quem precisa de proteção à nação desejada. “A condição de um refugiado é muito dura. São pessoas que deixaram tudo para trás. E muitas vezes a grande ilusão é achar que a vida em um país desenvolvido será mais fácil”, afirma Denise.

Assim como o liberiano Joseph, outras duas refugiadas entrevistadas para a reportagem vieram parar por acaso no Brasil. A também liberiana Dorcas Abrahan, de 26 anos, formada em comunicação social, imaginava que os missionários canadenses que a ajudaram na fuga de seu país a levariam para o Canadá. “Seria mais fácil para mim. Primeiro pela língua e também por questões econômicas”, conta. Outro país que Dorcas tinha em seus planos eram os Estados Unidos, onde, segundo afirma, ela poderia receber até 800 dólares de ajuda mensal do governo. “Diferentemente daqui, onde não recebo nada.” A iraquiana Sawa Mohamed, de 35 anos, também incluiu o Brasil em sua vida quase por acaso. Fugida da ditadura de Saddam Hussein, Sawa passou a viver na Líbia, mas por ser iraquiana se viu obrigada a deixar esse país também. “Entrei na Embaixada do Brasil e pedi para viajar. Foi o único país que me deu o visto”, diz ela, que ainda hoje tenta conseguir uma viagem para os Estados Unidos, onde mora seu irmão. “Mas a embaixada americana sempre nega. Eles temem que eu não volte ao Brasil, onde vivo sozinha e ganho pouco.” Sawa trabalha em um centro islâmico de São Bernardo do Campo e recebe 500 reais por mês por seu trabalho na publicação da instituição.

 

 

Tempos conturbados

Aspectos da imigração forçada são discutidos em São Paulo

 

Em janeiro, aconteceu em São Paulo o 9º Congresso Internacional sobre Imigração Forçada, organizado pela Associação Internacional para o Estudo da Imigração Forçada, com sede em Londres. O evento reuniu pessoas do mundo inteiro que trabalham com o  tema. O Sesc São Paulo foi convidado a participar por meio do Sesc Carmo. A ocasião jogou luzes sobre um dos maiores problemas enfrentados atualmente pelos países. Para ter uma idéia da dimensão do assunto, calcula-se que haja atualmente cerca de 12 milhões de pessoas precisando de proteção para viver. Desses, apenas 5% conseguem realmente viver em condições seguras. O maior grupo de refugiados é formado por palestinos, com cerca de 3 milhões de pessoas. Em seguida, estão os afegãos, que formam um grupo de 2,5 milhões de refugiados. Em terceiro lugar, estão os sudaneses, que somam cerca de 600 mil pessoas que precisam de refúgio. Entre os países mais procurados para se refugiar estão Estados Unidos e Canadá.

 

 

A legislação brasileira

Postura do Brasil em relação a refugiados destaca-se entre a dos demais países

 

Por ano, o Brasil recebe por volta de 600 pedidos de refúgio. É pouco, se comparado à Holanda, por exemplo, que, apesar de ter uma população quase 12 vezes menor que a brasileira, recebe cerca de 8 mil pedidos – quase 13 vezes mais que o Brasil. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), 70% dos solicitantes de refúgio no Brasil têm seu pedido negado. “Geralmente, porque se trata, na verdade, de alguém que quer imigrar”, garante Wellington Carneiro, oficial de proteção do Acnur no Brasil. O status de refugiado aplica-se somente a pessoas que fogem por temer por sua segurança física. “Reconhecemos que aqueles que vêm fugidos de situações econômicas degradantes também são refugiados. Porém, esse caso não se aplica a essa legislação”, diz ele. Na prática, qualquer pessoa que cruze uma fronteira brasileira e alegue que vai pedir refúgio no País está protegida pelo Estatuto dos Refugiados, um tratado internacional que garante a ela o direito de não ser devolvida a seu país de origem nem impedida de ingressar onde pede proteção. O Acnur reconhece que a legislação brasileira é uma das mais avançadas do mundo nesse assunto. Isso porque, no Brasil – diferentemente dos Estados Unidos ou de países europeus –, um solicitante de refúgio recebe um número de CPF e uma carteira profissional. “Isso permite que ele tenha acesso ao mercado de trabalho, enquanto espera o resultado de seu processo. É a possibilidade de integração, o que não acontece em outros países”, explica Carneiro. No entanto, ao ter seu pedido negado, o solicitante de refúgio perde esses direitos. “É quando muitos se tornam imigrantes ilegais.”