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Contemporâneidade

Nem tudo que parece é

 

Fotos: Adriana Vichi e Danilo Tanaka

 

Em tempos de internet, mundos virtuais e jogos de computador cada vez mais sofisticados, o desejo de (re)criar a realidade ganha o reforço da tecnologia, e a ilusão embrulha-se pronta para ser consumida

 

Um jovem tímido e franzino transforma-se num vigoroso super-herói dotado de incríveis poderes; em outro ponto do globo uma dona de casa aprende a pilotar um carro de Fórmula 1 enquanto uma criança experimenta a imensidão do espaço sideral metida numa roupa de astronauta. Nenhuma dessas situações é real. Ao contrário, o que elas têm em comum é justamente a subversão do conceito de realidade que rege a consciência. Para ter a sensação de voar, sentir a adrenalina da velocidade ou ainda maravilhar-se com a imensidão das estrelas, como acreditamos que ela seja, não é necessário realmente estar lá. Todos sabemos disso, e a indústria do entretenimento não cansa de oferecer opções de fruição nesses cenários. Um videogame de última geração ou um sofisticado brinquedo de simulação da realidade – desses encontrados em parques de diversão – podem aumentar em muitos graus o realismo de situações ilusórias. É exatamente esse o ambiente da internet: é possível visitar museus sem sair de casa ou entrar na intimidade de um popstar sem pisar de fato em seu camarim. No entanto, se por um lado eles são produto das últimas descobertas da ciência e tecnologia, por outro o que leva as pessoas a desejar essas experiências e a consumir os aparelhos ou meios de chegar até elas já havia sido detectado pelos filósofos gregos na Antiguidade. Platão e Aristóteles, por exemplo, debruçavam-se sobre o assunto em séculos remotos. “Há tanto concepções que vêem na fantasia uma coisa positiva, quanto aquelas que enxergam algo de negativo”, explica o mestre em semiótica Franklin Leopoldo e Silva, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). “Segundo Platão, por exemplo, essa fantasia tem um papel social negativo porque afasta as pessoas da realidade. Assim como, por outro lado, Aristóteles atribui à imaginação a capacidade de fazer com que o indivíduo não só tome conhecimento da realidade humana, como também possa trabalhar suas paixões e sua interioridade, o que seria um aspecto muito positivo.”

 

O princípio do prazer

E o que explica essa inquietação do homem diante da realidade? O que leva tantos a lançar mão de dispositivos que os transportem para lugares e situações distantes da chamada realidade? O psicanalista Sérgio Telles responde a essas questões citando o pai da psicanálise, Sigmund Freud, que descreveu o subconsciente – terreno fértil e infinito onde nascem esses desejos. “Freud estabelece que, à medida que nosso psiquismo vai se organizando, passamos do chamado princípio do prazer para o princípio da realidade”, explica. “Isso significa que quando somos crianças estamos inteiramente voltados para a realização dos nossos desejos. À medida que crescemos, paulatinamente vamos percebendo que não é bem assim, que o mundo não está aí para realizar os nossos sonhos. Ao contrário, na maioria das vezes o mundo está para quebrá-los.” Segundo o psicanalista, esse processo de passagem começa cedo, quando, por exemplo, a criança se depara com o fato de que a mãe não existe para estar à sua disposição 24 horas por dia. “O bebê vai percebendo que sua mãe não vai amamentá-lo todas as vezes que ele quiser, haverá horários para isso”, exemplifica. O que leva a concluir que o tempo é o primeiro a se interpor entre nós e a realização do que queremos. “São as imposições da realidade com as quais todos temos de lidar.” No entanto, o contato com a realidade não se dá de maneira natural e pacífica. De acordo com a psicanálise de Freud, nenhum de nós consegue se desvincular inteiramente do princípio do prazer. Isso porque nossos desejos continuam a existir, e se tornam mais complexos e atrelados a realizações mais difíceis conforme o tempo passa. A vontade de que a mãe sempre esteja por perto é substituída por um determinado brinquedo, este por outro e outro. Até que, quando adultos, as necessidades passam a ser o carro anunciado na televisão ou mesmo o corpo “perfeito” da modelo na capa da revista. Isso sem contar os desejos por coisas imateriais, como a felicidade e o amor. “Quando adultos, nós apenas deixamos a postura do narcisismo infantil, aquele que nos leva a achar que vamos realizar todos os nossos desejos imediatamente, e passamos a batalhar para realizá-los”, continua Telles. “E essa batalha implica o reconhecimento da realidade, da coisa concreta, na noção de que eu não sou onipotente, não mando, não pinto e não bordo.”

 

A necessidade de se transformar

Porém, o trajeto do princípio do prazer para o princípio da realidade muitas vezes deixa lacunas que a realidade não dá conta de preencher. E, voltando aos produtos criados em função da ilusão, é assim que se explica a milenar necessidade de fantasiar e a enorme aceitação dos instrumentos criados com essa função. Da sensação de estar no espaço, ainda que a bordo de uma máquina de simulação, até a satisfação de ver o triunfo do bem contra o mal num filme de ficção científica, passando, muitas vezes, por viver em outro país ou até mesmo, em alguns casos, ser outra pessoa. 

Um dos mais recentes jogos de computador que tem feito alarde em meio aos amantes do passatempo – e provocado reações das mais diversas entre os que se dedicam a estudar os passos do ser humano – chama-se Sims On Line. O programa de computador criado nos Estados Unidos parece ter dado um passo à frente em termos de realidades virtuais. No game, o jogador não é mais um franco-atirador invadindo a base inimiga, tampouco luta com monstros ou seres alienígenas. “Isso já se esgotou”, afirma Sérgio Telles. O interesse agora está em criar famílias perfeitas e relações sociais que atendam plenamente aos desejos do jogador. Em texto publicado no site Universo On Line em 12 de janeiro, a socióloga ligada ao Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA, Sherry Turkle, fala do novo jogo ao mencionar um estudo realizado por ela com 200 jogadores deste e de outros games: “Quando alguém sai de férias é comum que essa pessoa se transforme numa outra, mas isso se dá por meio de uma experiência saudável”, explica. No entanto, segundo a especialista, com o advento da internet e demais tecnologias criadas a serviço da ilusão, as pessoas passaram a se transformar em outras por intermédio da tela do computador. Uma das entrevistadas pela socióloga, uma adolescente de 16 anos, vivia com o pai e mantinha com ele uma relação conflituosa. A realidade indesejada fez a jovem recorrer ao Sims. No jogo ela se transformava ora em um rapaz da mesma idade, ora numa mulher mais velha e mais poderosa. “Acho que o que as pessoas estão fazendo agora pelo computador tem um significado psicológico mais profundo, pela forma como usam outras identidades para expressar problemas e potencialmente resolvê-los, numa região que é relativamente livre de conseqüências”, explica a pesquisadora.

Franklin Leopoldo e Silva considera tal busca como algo revelador da necessidade humana de válvulas de escape, mecanismos que têm a função de aliviar as contradições da vida real. Isso se dá também, segundo ele, por meio da TV e do cinema, que podem funcionar como elementos firmadores de valores sociais. “A sociedade vê, sobretudo no cinema comercial e na televisão, a possibilidade da estabilização”, afirma. “Com isso, as pessoas terão sempre a ilusão de uma solução possível, que o herói pode impor pela força, mas que pode ser imposta por outros meios. E isso é, de certa forma, necessário para manter certo grau de estabilidade social.”

Apesar das diferenças de abordagem do tema, psicanálise e filosofia concordam num ponto: a ilusão é usada pelas pessoas para tornar a realidade mais palatável. E esse processo de busca de prazer pode se dar tanto numa sessão de cinema de entretenimento quanto numa situação lúdica qualquer, como a brincadeira ou o faz-de-conta. O certo e o errado não estão, segundo apontam os especialistas, na procura em si pela ilusão, mas sim no grau de importância que esses “escapes” assumem na vida de cada um. No entanto, fica a dica do psicanalista Sérgio Telles: “Se a curto prazo a ilusão permite que você viva melhor, a longo prazo, não. A realidade, por pior que seja, tem de ser encarada. Se eu faço de conta, por exemplo e exagerando, que o ônibus não está vindo, ele vem e passa por cima. Não é possível negar a realidade”.

 

 

A arte de iludir

 Manifestações artísticas como o cinema e o teatro são bons exemplos de que a ilusão pode ser também um excelente filtro para entender a realidade – e até transformá-la

 

O cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993) é considerado um dos gênios que lançavam mão da ilusão e da imaginação para tornar a arte um elemento transformador da realidade – isso sem alienar as platéias. Em seu filme E la Nave Va, de 1983, Fellini mostra, nos minutos finais, dois personagens que contemplam a reprodução pictórica de um pôr-do-sol, e que no filme se pretendia real, enquanto um deles observa: “Que lindo pôr-do-sol, parece pintado”. Uma brincadeira de revelar e esconder com a qual a arte, de modo geral, mantém compromisso. “Fellini usa muito esse recurso de ‘abrir’ os truques”, comenta Osvaldo Gabrieli, diretor de teatro e cenógrafo do grupo XPTO, cujo trabalho é fortemente pautado pelo jogo das ilusões. “O mar gigantesco que se vê também nesse filme é de plástico, e a gente sabe que é, mas embarca na viagem.” Gabrieli, convidado pelo Sesc para criar as ambientações interativas do evento Ilusão de Verdade, do Sesc Pompéia (veja boxe Universo de sensações), acredita que a realidade, ou o conceito que se tem dela, se transforma à medida que o indivíduo vive experiências sensoriais – como as que a arte proporciona. “Você pode assistir a um filme com situações visuais muito fortes e sair transformado do cinema, com o coração batendo mais rápido”, exemplifica. “Por mais que você saiba que se trata de uma ilusão, de alguma forma aquilo mexe com seu interior.” O trabalho do XPTO tem, ainda que não exclusivamente, grande apelo entre as crianças e, segundo afirma Gabrieli, trabalhar com o público infantil revela de que maneira a ilusão pode surtir efeitos positivos. “Você consegue sentir claramente que uma criança que passa por experiências sensoriais mais fortes começa a organizar o entendimento do mundo de uma forma mais aberta, com menos limites.”

 

 

Marcos da imaginação

 

No princípio era a mágica

Um dos mais famosos ilusionistas do mundo, Harry Houdini (1874-1926), considerado o pai da arte de iludir platéias, iniciou-se na prática aos 16 anos, realizando truques com cartas. No final do século 19, Houdini já atraía um público enorme, curioso em ver o mágico se desvencilhar de algemas, grilhões e correntes de ferro. As técnicas usadas nos espetáculos ilusionistas foram se sofisticando até chegar ao aparato high-tech de mágicos como David Copperfield, que, em um de seus números, realizou a proeza de fazer “desaparecer” a Estátua da Liberdade, em Nova York.

 

 

 

Imagens em movimento

Em 1895 os irmãos Auguste e Louis Lumière inventam o cinematógrafo. Composto de equipamento de fotografia e de projeção, recolhia uma série de instantâneos de objetos que se moviam e projetava-os numa sucessão rápida e intermitente, produzindo a ilusão de cenas em movimento. A data está intimamente ligada ao nascimento do cinema. Pela primeira vez, a imaginação do homem ganhava representação fiel à realidade, e a ilusão passou a contar com um impactante aliado.

 

 

No reino da simulação

Em 1962, o cineasta norte-americano Morton Heilig desenvolveu um simulador, o Sensorama, que é considerado a primeira máquina de realidade virtual. O invento, uma espécie de cabine que utilizava um dispositivo para visão estereoscópica, permitia ao usuário a experiência de uma combinação de visão tridimensional, som estéreo, tato, vibrações mecânicas, aromas e ar movimentado por ventiladores.

 

 

 

 

Visão tridimensional

A descoberta da estereoscopia, visão tridimensional que se obtém de um determinado objeto, data de 1838 e seu princípio é simples, mas incrementou a experiência de apreciar imagens: tomam-se duas fotografias do mesmo assunto de pontos de vista ligeiramente distintos e com o uso de dispositivos de formatos variados a ilusão causada é de profundidade e relevo.

 

 

 

 

Universo de sensações

Exposição com diversas ambientações cenográficas é um mergulho no mundo das ilusões

 

O Sesc Pompéia realizará ainda no primeiro semestre deste ano um evento que irá colocar os visitantes em contato com procedimentos ilusórios das mais diversas naturezas: da ilusão de óptica à tridimensionalidade, passando pela realidade virtual e por demais simulações visuais e táteis. Composto de instalações lúdicas, palestras e espetáculos de teatro, o Ilusão de Verdade permitirá uma imersão em ambientes de um jogo lúdico entre o real e o truque. A megaexposição abordará o tema com enfoque não diretamente informativo ou didático, mas sim sensorial, valorizando a vivência das instalações e a fruição de seus conteúdos. “A convivência com a ilusão é imemorial e os avanços da tecnologia no século passado aliaram-se à busca por espaços ilusórios, provavelmente tentando expandir as possibilidades de experimentação humana”, comenta Roberto Cenni, técnico da unidade. “Em uma época de tantas imagens e sentidos perdidos, a ilusão espreita a cada esquina.”

Entre as instalações do Ilusão de Verdade, estarão desde a clássica sala de espelhos e o tradicional teatro de sombras até um túnel com projeções de relâmpagos, chão móvel e motores que produzem vento – dando a sensação de uma tempestade –, além de um mar inflável para as crianças brincarem como se estivessem submersas. “Nenhuma dessas instalações proporcionará experiências agressivas”, esclarece Osvaldo Gabrieli, cenógrafo convidado pelo Sesc, encarregado das ambientações. “A idéia é que seja uma exposição voltada para o público de todas as idades.”

O projeto prevê também a elaboração de material pedagógico a ser distribuído entre as escolas visitantes. É um kit com experimentos montáveis, para uso no ambiente escolar, acompanhado de análises de especialistas em diferentesáreas do conhecimento, e que reproduz parte dos mecanismos ilusórios visitados pelo público.