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Em Pauta

Caminhos democráticos

 

Todo o poder emana do povo.” A frase é um dos princípios expostos na Constituição brasileira de 1988. Esse ideal democrático começou a consolidar-se no País no ano seguinte, com a volta das eleições diretas para a Presidência da República. No entanto, há outros meios de participação popular nos rumos da nação. O plebiscito, consulta à população sobre questões específicas, e o referendo, prática de submeter ao eleitorado medidas propostas por um órgão legislativo, ambos por meio de votação, também são instrumentos legítimos. Mas em que momentos seriam mais adequados? De quais maneiras poderiam contribuir para a democracia representativa no Brasil? Em artigos exclusivos, o advogado e ex-secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo Belisário dos Santos Jr. e o doutor em ciência política Bolívar Lamounier respondem a essas questões

 

 

Democracia: “representativa” ou “direta”?

por Bolívar Lamounier

 

Entendamo-nos, primeiro, quantos aos conceitos. O termo democracia direta não se refere ao grau desejável ou constatado de participação dos cidadãos na vida política. Os níveis de participação variam, como sabemos, de um país a outro e ao longo do tempo, e o ideal é naturalmente que a participação seja alta.

No debate atual e neste texto, “democracia direta” tem, portanto, outro significado. Refere-se à participação dos cidadãos no processo decisório de um país por meio de instrumentos constitucionais bem definidos, notadamente o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular de legislação. O que torna o assunto delicado e complexo é sua inclusão em textos constitucionais. A partir daí algumas indagações se impõem. Participação direta sob que condições? Como simples complemento aclamatório, ou em caráter imperativo, competindo com os representantes eleitos, ou até substituindo-os na função de legislar? Legislar em que extensão, sobre quais matérias?

A tese da “democracia direta” sempre foi um condomínio entre pessoas bem-intencionadas, que queriam mais democracia, e ideólogos autoritários de esquerda e de direita, que queriam menos ou nenhuma democracia. Neste artigo, referir-me-ei apenas aos bem-intencionados, que a defendem supondo que ela possa contribuir para o aperfeiçoamento da vida democrática. A própria Constituição brasileira de 1988, como se sabe, abriu amplo espaço doutrinário para essa concepção de democracia; numa leitura superficial, quase se poderia dizer que a colocou em pé de igualdade com a democracia representativa. Em 2001, a CNBB patrocinou um plebiscito sobre a dívida externa brasileira. E acha-se em curso uma tentativa, aparentemente respaldada por importantes entidades de representação profissional, de reforçar e ampliar a figura da “iniciativa popular de legislação”, com intenção de estendê-la até a relevantes decisões de política econômica. Qual tem sido o efeito prático dessas tentativas? Sou tentado a afirmar que foi zero, mas não é verdade. Foi profundamente negativo. Na Constituinte, por exemplo, ao superestimar, de maneira manifestamente utópica, a importância de tais instrumentos, as personalidades e instituições adeptas da “democracia direta” inconscientemente contribuíram para diluir o objetivo, este sim relevantíssimo, da reforma política. O plebiscito sobre a dívida externa não serviu para reduzir em 1 centavo sequer a dívida brasileira, mas criou apreensões,  reforçando entre os nossos credores a percepção de que somos mesmo um país de risco elevado, ao qual não se pode fornecer capital a baixo custo.  

De onde provém, no mundo atual, a utopia da democracia “direta”? Em que modelos ou precedentes se inspira? A principal fonte é, sem dúvida, a utilização de iniciativas e referendos nos Estados Unidos da América – na esfera estadual, não no plano nacional. Os adeptos da democracia “direta” deveriam examinar com cuidado a experiência norte-americana. Para começar, de “direta” ela tem muito pouco: é uma guerra de lobbies, dissidências dos partidos e, não raro, de grupos racistas, em geral muito bem financiados.  A literatura disponível documenta abundantemente o que acabo de afirmar e demonstra que os maus resultados não ocorrem por acaso, mas devido a características específicas dos referidos instrumentos e das situações em que eles tendem a ser utilizados; veja-se, por exemplo, Austin Ramney, Referendums, publicação do American Enterprise Institute, 1978, e o livro de David Magleby, Direct Legislation, editora da Johns Hopkins University, 1984. O que acima vai dito vale também para plebiscitos nacionais. É certo que, em raríssimos casos – por exemplo, os plebiscitos realizados nos anos 80 no Chile e no Uruguai –, eles contribuem para a vitalidade da democracia. Mas esses casos, repito, são exceções. No mais das vezes, desde que começaram a ser usados, há quase dois séculos, plebiscitos se prestam sobretudo à legitimação de decisões autoritárias, assim como as “iniciativas” norte-americanas se prestam à discriminação racista.

Para concluir, seja-me permitido tocar em duas questões “futurológicas”. Primeiro, o destino da democracia representativa. A afirmação de que a democracia se torna a cada dia mais participativa é correta e constitui ótima notícia. De fato, ao contrário do que sugeria a tagarelice fascista no início do século 20, as tendências marcantes da democracia no último meio século foram: primeiro, sua expansão geográfica – hoje há democracias respeitáveis em todos os continentes; segundo, a impressionante ampliação do universo de protagonistas, a começar pela formação de enormes eleitorados, como o brasileiro, que já atingiu 120 milhões; terceiro, uma pressão cada vez maior no sentido da accountability, ou seja, da exigência de que os titulares (eletivos ou designados) de funções públicas sejam sensíveis às preferências dos eleitores e responsáveis no manejo dos recursos públicos. Dizer, portanto, que a democracia “direta” tende a substituir a democracia “representativa” é uma afirmação carente de perspectiva histórica, que deve ser completamente descartada. Se, apesar do que foi dito, ainda se constatam deficiências graves no funcionamento dos partidos e do Congresso Nacional – e é evidente que se constatam –, então tratemos seriamente da reforma política, com densidade e convicção.

Segundo, o impacto dos meios eletrônicos. Embora a substituição da democracia representativa pela democracia “direta” seja improvável, não poderá ela se dissolver simplesmente sob o impacto do cipoal interativo que a internet semeou pelos quatro cantos do planeta? Evidentemente, essa possibilidade não pode ser subestimada. Graças à facilidade e ao caráter interativo dos meios eletrônicos, qualquer cidadão pode hoje conhecer as preferências (em geral heterogêneas e contraditórias) de milhões de outros cidadãos. Esse é o fato novo. Mas nada indica que a abundância e a interatividade contribuam de maneira expressiva para a redução ou eliminação das dificuldades inerentes ao processo de escolha social – isto é, a tomada e a implementação de decisões. O conhecimento instantâneo e mútuo das preferências pelos cidadãos não significa que elas se tornem mais consistentes ou racionais quanto ao conteúdo, e menos ainda que se harmonizem com facilidade, a ponto de prescindir de decisões imperativas, ou seja, decisões de governo. Enquanto existirem divergências quanto aos interesses e aos fins visados, ou quanto à hierarquização de prioridades, decisões imperativas serão necessárias, e conseqüentemente precisaremos escolher e autorizar os representantes que irão tomá-las.

 

Bolívar Lamounier, diretor da Augurium Consultoria, é cientista social autor de Presidencialismo ou parlamentarismo: perspectivas sobre a reorganização institucional brasileira (Editora Loyola), entre outros

 

 

Por uma cidadania ativa - o que fazer?

por Belisário dos Santos Jr.

 

Vinte anos atrás, depois da derrota da Emenda Dante de Oliveira pelas eleições diretas para presidente, após a eleição indireta de Tancredo, a posse de Sarney e a convocação da Assembléia Nacional Constituinte, em 1985, constituiu-se o Plenário Nacional Pró-Participação Popular na Constituinte. Das pressões exercidas resultou a admissão de emendas populares na própria elaboração constituinte. Assim, uma das boas novidades da Constituição de 1988 foi a previsão do exercício da democracia direta, ao lado da representação parlamentar.

A luta pela afirmação da participação popular de forma direta não se pode fazer à custa do desprestígio da democracia representativa. É claro que a representação parlamentar tem defeitos. Disso ninguém duvida. Defeitos que seguramente informam a diminuição da legitimidade de congressos e partidos políticos na América Latina de 1997 a 2002, apontada pela Pesquisa Latinobarómetro de 2002 (www.latinobarometro.org). Ainda que, na pesquisa feita em 2004, esses dados tenham melhorado, entre as instituições nas quais o povo latino-americano deposita maior confiança não está o parlamento, senão o Exército, a Igreja, os bancos e a televisão...

Um dos vícios mais lamentados, no Brasil, é o da sub-representação, na Câmara dos Deputados, do povo das regiões mais populosas e desenvolvidas, fenômeno designado em estudo do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada] como esterilização de votos. Esse vício vem da ditadura (pacote de abril de 1977, governo Geisel), que queria privilegiar os votos das regiões mais dependentes do governo central. Essa desproporção se expressa em números. Roraima (119 mil eleitores), Amapá (197 mil), Acre (263 mil), são estados que contam com oito deputados cada um. São Paulo (21 milhões) tem apenas 70. A sub-representação se estende a Minas Gerais e Rio de Janeiro.

Outro fenômeno negativo tem sido a influência do poder econômico nas campanhas políticas, com a “lobbysação” do Congresso, que passou a ter bancadas de Igrejas, bancada ruralista etc., com a eleição de representantes de determinados interesses ou corporações, e a conseqüente relativização dos partidos políticos, mera referência nesse processo.   

Nesse quadro, as reformas política e partidária são medicinas mais que necessárias para a valorização da atividade parlamentar, ainda que não consertem, de imediato a sub-representação.  O melhor tipo de voto (se distrital, se distrital misto), o financiamento exclusivamente público de campanhas políticas, as cláusulas de barreira (requisitos mínimos para funcionamento de partidos políticos), a questão da fidelidade partidária, o sistema de eleição por listas partidárias são pontos a ser debatidos, para se imprimir uma nova e melhor direção à representação popular.

Ante essa crise da representação, é imprescindível pensar nessas reformas. Isto sem deixar de ver o conteúdo do que pode a sociedade fazer diretamente, nos intervalos entre uma eleição e outra. Aí surge a importância de tratar da participação popular.

Será interessante ver a participação popular sob duas óticas: no controle do poder político e na administração da coisa pública.  Os instrumentos clássicos de participação estão ligados ao controle do poder: o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular legislativa. Há lei definindo tais institutos (Lei nº 9.709/98). Mas, é ainda tímida a regulação dessas formas de exercício da soberania popular. O plebiscito (consulta com anterioridade sobre ato legislativo ou administrativo) e o referendo (chamado para ratificação ou rejeição de ato administrativo ou legislativo já existente) só podem ser convocados para apreciação de matérias de relevância nacional, por decreto legislativo, por proposta de, no mínimo, um terço dos votos do Senado ou da Câmara. Aqui, a ausência de convocações populares mais reiteradas parece esbarrar na falta de vontade política do parlamento, que raramente se vale desses instrumentos. O antigo argumento do custo dessas convocações populares não mais pode ser utilizado, quando se sabe da eficiência da Justiça Eleitoral, em condições técnicas de inserir, na urna eletrônica, a consulta a ser formulada, que sairá a custo zero se coincidente com o processo eleitoral a cada dois anos.

Na atualidade, em âmbito nacional, o único referendo relevante convocado é aquele destinado a aprovar (ou rejeitar) a proibição de comercialização de armas decidida na Lei nº 10.826/03, previsto para outubro de 2005. E, aqui, não parece generosidade do parlamento, senão uma forma de superação do impasse que surgiu sobre o tema. 

Uma ótima sugestão para um grande debate nacional poderia ser o próprio subdimensionamento da representação do eleitorado do Sul e Sudeste. É ver se há coragem para tanto.

Já a iniciativa popular tem um grave problema em sua regulamentação. Exige, entre outros requisitos, a adesão de 1% do eleitorado – se nacional, 1% de 115 milhões (dados de 2002). Mas, mesmo com 1,5 milhão de assinaturas, o projeto popular não terá prioridade alguma na votação... A tramitação é a mesma prevista para projetos de qualquer outro deputado, inclusive aquele que teve 200 votos... Por essa timidez, já há iniciativas populares tentando alterar a regulação dessas três formas de participação popular (uma delas impulsionada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, com redação de Fábio Comparato), dando prioridade de tramitação para as leis de iniciativa popular, e criando hipóteses de obrigatoriedade de plebiscito e referendo. O projeto da OAB prevê amplo debate, obrigatório pela televisão, dos temas a ser apreciados. 

Há ainda instrumentos importantes de censura política e, portanto, de controle ético do poder, como a ação popular e suas inovações (a partir de 88), de que qualquer cidadão pode fazer uso. Além disso, há outros meios de controle do poder político que ainda não existem em nosso direito, como o recall (submetendo a referendo a continuidade de mandatos dos titulares de cargos majoritários, como nos exemplos recentes de Venezuela e Califórnia, nos Estados Unidos) e o mandato imperativo (registro de pontos obrigatórios a ser cumpridos durante o mandato).

Mas é na participação popular na administração que existe um campo inexplorado. Há previsão constitucional de participação popular nos colegiados em órgãos públicos; na gestão da seguridade social; nas ações e serviços públicos da saúde; na participação nas políticas de assistência social; na aprovação das contas municipais; na possibilidade de denúncias de irregularidades aos Tribunais de Contas por qualquer cidadão.

A rigor, de acordo com primeiro artigo da Constituição, a participação deve ser critério informador das políticas públicas. A cidadania e suas iniciativas de organização foram excluídas completamente do processo político nos anos recentes de 1964 a 1982. Até os partidos políticos foram criados artificialmente. As organizações sindicais perseguidas. As organizações estudantis banidas. A reaproximação Estado-sociedade, portanto, deve ser objetivo a ser perseguido em qualquer política pública, trate de criança ou de meio ambiente, de acesso à Justiça ou de matérias de interesse municipal. Não se trata de restabelecer o assembleísmo, mas sim de estabelecer canais com a sociedade menos episódicos que o processo eleitoral a cada dois anos. Uma boa política pública envolverá sempre a participação da cidadania, o incentivo à responsabilidade social dos setores organizados da sociedade, a presença da escola/universidade.  Vivi a experiência de ver o estado de São Paulo, a partir de 1995, criar espaços para esses princípios, nos Centros de Integração da Cidadania, na política de proteção à vítima e à testemunha, na criação de mecanismos de defesa do usuário do serviço público, como as ouvidorias, entre outros exemplos.

Se, de um lado, é preciso esperar arrojo do administrador e vontade política do legislador, de outra parte a luta pelo aperfeiçoamento da democracia exigirá sempre a coragem social de cada homem ou mulher no uso dos instrumentos postos à sua disposição, sem o que essa história não se escreve.

 

Belisário dos Santos Jr. é advogado e ex-secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania do estado de São Paulo (1995/2000)