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Meu caro amigo

 

Em depoimento exclusivo à Revista E, o compositor Francis Hime conta como por pouco não trocou a música pela engenharia e relembra algumas de suas parcerias com Chico Buarque

 

Uma hora antes de começar o show que faria no Sesc Pinheiros, como parte do evento Chico Buarque, o Tempo e o Artista, em comemoração aos 60 anos do criador de clássicos como A Banda (1966) e Cotidiano (1971), Francis Hime chega para passar o som. Senta no banquinho em frente ao piano e derrama os dedos sobre o teclado. Ouve-se então Meu Caro Amigo (1976), Amor Barato (1981), Vai Passar (1984) e algumas outras das quase 20 canções que compôs com o homenageado. Parceiro dos maiores músicos do País, esse carioca da gema, neto de inglês e educado nos mais austeros colégios da Suíça, resistiu o quanto pôde até transformar a música em seu ganha-pão. Para nossa sorte, a engenharia foi vencida pelo apelo das notas e o talento de dar cadência às palavras. A seguir, trechos do depoimento que o compositor concedeu com exclusividade à Revista E:

 

Meus pais me puseram para estudar piano desde os 6 anos de idade. Eu me lembro que na primeira aula tinha um banquinho giratório e eu ficava ali, morrendo de medo do piano. Eu detestava estudar piano, mas tinha jeito para a coisa, e meus pais sabiam disso.

Insistiam muito e me botaram para estudar. A música popular eu fui aprendendo a tocar aos poucos, de ouvido. Só que ela me pegou de verdade. Isso durou até os 15 anos de idade, quando meus pais me mandaram estudar num colégio super-rígido na Suíça alemã. Mas, por sorte, encontrei um amigo brasileiro com quem eu tocava músicas populares. Tocávamos Pixinguinha, Ataulfo Alves, Dalva de Oliveira, Noel Rosa, Ângela Maria, Ary Barroso, enfim todos os meus ídolos na época. Porém, depois de um tempinho na Suíça comecei a me interessar muito mais por música clássica. Desvencilhei-me do preconceito que tinha em relação a esse tipo de música e me apaixonei por Beethoven, Brahms, Rachmaninoff, Stravinsky – a quem assisti reger algumas vezes. De qualquer maneira, era muito claro para mim naquela época que eu não faria da música minha profissão, simplesmente porque não acreditava que fosse possível ganhar a vida como músico. Então, voltei ao Brasil, me formei em engenharia.

Foi nessa época que por acaso eu conheci Vinicius de Moraes numa das festinhas em Petrópolis em que eu ia com Edu Lobo durante o verão. Tornei-me um de seus parceiros e assim acabei entrando de vez na música popular. Vinicius dava muita força aos músicos mais jovens que estavam começando, como eu, Edu, Toquinho etc.

Naquele verão em Petrópolis todo dia tinha uma festinha e aí conheci todo mundo, Carlos Lyra, Baden Powell, Tom Jobim... Aí comecei a compor com Vinicius e a me entusiasmar. Embora ainda tivesse certeza de que não ganharia a vida como compositor, a mosca me picou nessa época. Comecei a fazer meus primeiros arranjos mesmo não tendo nenhuma base teórica para orquestra. De 1963 a 1969 fiz meus primeiros shows e minhas músicas começaram a ser gravadas. Formei-me em engenharia em 1969 e me casei no mesmo ano. E no dia da minha formatura eu estava em São Paulo participando do show de inauguração da TV Bandeirantes. Ali ficou claro que eu queria mesmo era fazer música.

 

A vida nos Estados Unidos

Em 1969, fui morar em Los Angeles com a Olívia [Olívia Hime, mulher do compositor], onde ficamos por quatro anos. Era uma boa oportunidade oferecida pelo meu sogro e a isso se somava a situação política do Brasil naquela época, que estava pesada com a ditadura militar. Nos Estados Unidos, comecei a estudar tudo que era para ser estudado, de composição a orquestração. Escolhi os professores a dedo. Nessa época, fiquei muito interessado em compor trilhas sonoras para cinema, pois me parecia um nicho bom para ganhar dinheiro. Só que, para isso, eu teria de realmente me fixar nos Estados Unidos e isso era impossível. Com o tempo eu fui descobrindo que tinha laços muito fortes que me prendiam aqui ao Brasil, meus amigos, família e tudo mais que eu não trocava por nada. Então, resolvi voltar.

Até gostaria de abrir mais um pouco de espaço para minha música no exterior. É uma coisa que eu não fiz, não só em relação aos Estados Unidos, mas em relação à Europa também, já que faço poucas excursões lá para fora. Paradoxalmente, acho que o tipo de música que eu faço teria um campo muito grande lá fora, pois não é uma música muito regional. Apesar de eu achar que é uma música muito brasileira, há muita influência de jazz, até mesmo de compositores clássicos. Mas, talvez por questões de temperamento, sempre fui um pouco mais recluso. E, além disso, continuo achando que o Brasil é muito bom e não o trocaria por nada. Amo, sobretudo, o Rio de Janeiro. Alguns amigos, como Sérgio Mendes, Tom Jobim e outros, foram [para os EUA] e se adaptaram completamente. Eu não. Tom conseguiu o ideal nesse sentido, porque conseguiu fazer com que a música dele fosse para fora sem que ele tivesse a obrigação de ficar lá. Mas o Tom foi um caso à parte, ele foi realmente um gênio. Na minha opinião, o maior músico brasileiro de todos os tempos.

Em 1973, quando voltei, lancei meu primeiro disco como cantor. Quando o disco foi lançado, comecei a compor em parceria com Chico Buarque, o que me deu muita projeção. Nós já nos conhecíamos desde a época dos festivais. Nos anos 60, eu conheci todo mundo: Chico, Gilberto Gil, Caetano Veloso etc. Gil foi uma das pessoas mais fundamentais na minha carreira, me impulsionou, me deu uma grande força. Depois de Vinicius, talvez tenha sido a pessoa mais importante. Já havia parcerias com Paulo César Pinheiro, com  Ruy Guerra, e então compus Atrás da Porta e Valsa Rancho, com Chico. A primeira vez que a gente fez uma música junto foi em 1972, Atrás da Porta, e tivemos a Elis Regina como madrinha. Comecei a gravar um disco por ano a partir de 1977, quando estava na Som Livre. Mas meu sucesso com o público veio sobretudo depois de Meus Caros Amigos (1976), disco do Chico que vendeu 500 mil cópias, um absurdo para a época, no qual eu tinha três músicas.

 

Vai Passar

Vai Passar, um dos grandes sucessos da minha parceria com Chico, foi composta de uma maneira completamente atípica. Normalmente, eu fazia a música antes e ele escrevia a letra depois. Nesse caso, ele já tinha a primeira parte da música quase feita e queria que fosse feito um samba coletivo, em que vários compositores participassem. Estávamos todos bebendo, depois de uma pelada lá no campo de futebol dele, e ele apresentou a idéia. Só que daí foi um porre geral. Todo mundo bebeu tanto que não conseguiu compor nada. E, como eu bebi um pouquinho menos, consegui acenar com uma solução. Fui para casa e alguns dias depois voltei já com a música. Se estivéssemos todos mais sóbrios, provavelmente, teria sido um samba coletivo. Se bem que, pensando bem, ela acabou tornando-se realmente coletiva, como era a intenção. Essa música nos dá uma alegria enorme. Eu toco e já sei que as pessoas vão se animar, e quando vejo aquela alegria na platéia ela volta para mim. Às vezes eu até brinco no show, quando eu volto para o bis, digo que houve um problema técnico e não vai dar para repetir Vai Passar. Invento isso porque eu me dou muito nessa música, canto até me esgoelar, não dá para tocar duas vezes na mesma noite. Vai Passar foi a última das quase 20 parcerias com o Chico.

 

Francis Hime foi um dos convidados do evento Chico Buarque, o Tempo e o Artista, realizado em janeiro no Sesc Pinheiros