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O fenômeno Vinicius
Há 25 anos o país perdeu o poeta dos contrastes e da inquietação
CECÍLIA PRADA
Vinicius e Cristina Gurjão / Foto: reprodução
Embora o calendário não minta, não dá para acreditar que o dia 9 de julho próximo marque os 25 anos da morte de Vinicius de Moraes. Quando se fala nisso, há quem pergunte: "Mas ele morreu?" - e com razão. O personagem que recebeu de seus amigos o apelido carinhoso, mas nunca depreciativo, de "poetinha" vive ainda entre nós de uma maneira cotidiana, natural, meio desleixada, extremamente afetiva, que foi bem a sua - na letra de tantas músicas, nas parcerias com Tom Jobim, Carlos Lyra, Toquinho, Baden Powell, Pixinguinha, Edu Lobo, Francis Hime e outros; na beleza de suas poesias, na lembrança da sua trepidante existência, naquela vivência de risco que sempre assumiu, dilacerado entre um grande amor pela vida e uma necessidade compulsiva de autodestruição. Assim é lembrado.
Aquele que se definiria "Eu sou um labirinto em busca de saída" marcou sua entrada no mundo de uma forma dramática, em um cenário gótico perfeito para o personagem no qual se transformaria - nasceu na madrugada do dia 19 de outubro de 1913, quando uma tempestade terrível se abatia sobre a cidade do Rio de Janeiro. Puseram-lhe nome sonoro e comprido, Marcus Vinitius da Cruz e Mello Moraes, que já na infância reduziu a Vinicius de Moraes, por conta própria. Em Elegia quase uma ode, de 1937, diria "Quem me dera ... ser apenas Moraes sem ser Vinicius!" Mas seu último álbum, lançado em 1980, teria por título seu nome inteiro.
Franzino, doentio, teve uma infância superprotegida, numa família de muito amor, entre irmãos que permaneceram muito ligados, a vida toda. Era dotado de sensibilidade e imaginação extraordinárias, de uma energia que parecia ilimitada - que o fazia improvisar sempre coisas diferentes, de travessuras a rebeliões juvenis, demonstrando já uma tendência para a encenação, um talento histriônico. Conta sua irmã Laetitia que aos 5 anos Vinicius sentava-se ao piano (que tinha o recurso automático de uma pianola) e, para pasmo da molecada da rua, diante das janelas bem abertas simulava estar ele próprio executando peças difíceis.
A primeira poesia, um soneto, ele teria composto aos 9 anos, homenageando o seu primeiro amor, uma menina de franjinha que tinha o doce apelido de Cacy. Assinada e datada: "Feita pelo poeta Vinicius de Moraes, Rio, 8/11/1922". Mas em 1950, em uma elegia ao pai morto, confessaria: "A mim me deste/ O primeiro verso à namorada. Furtei-o/ De entre teus papéis: quem sabe onde andará..." Poeta e amada se encontrariam em alguns shows, casualmente, algumas vezes na vida. A última em 1977, no Canecão, quando Vinicius apresentou-a à sua nona e última mulher, Gilda Mattoso, e autografou para Cacy efusivamente um disco, protestando um infinito amor, 55 anos depois - como fizera com todas as mulheres que lhe haviam passado pela vida.
Aos 11 anos, matriculado no ginásio do austero Colégio Santo Ignácio, a primeira coisa que fez foi pedir para integrar o coro, dizendo que tinha muito boa voz - realmente, como conta sua irmã, além da voz era dotado de ouvido perfeito. E, segundo a crônica familiar, começou a cantar antes mesmo de falar direito, usando como "letra" seus tatibitates. Transportou para o colégio o entusiasmo teatral que há muitos anos já demonstrava em casa, encenando os mais variados espetáculos para amigos e parentes. Mas desta feita com muita malandragem - ele e seus amigos, no quinto ano ginasial, haviam escrito e proposto aos padres a peça O Bilhete de Loteria, para ser apresentada na festa do fim do ano. A encenação foi autorizada, depois proibida, substituída por um dos habituais dramalhões jesuíticos, repletos de feitos heróicos e martírios de santos. Só que, enquanto prosseguiam com os ensaios da peça oficial, os rapazes se reuniam às escondidas para ensaiar "a outra". Pode-se imaginar o susto e a indignação dos padres quando, no dia da festa, anunciou-se do palco que seria apresentada a comédia O Bilhete de Loteria - contiveram-se, devido à presença do cardeal. E no fim todos se divertiram muito.
Da infância à velhice, é imenso o anedotário da vida de Vinicius, tão repleta de lendas e aventuras - principalmente amorosas - que seus biógrafos têm muitas vezes dificuldade em separar o que é verdadeiro do exagero mítico que envolveu sua figura. O certo é que havia, por baixo da histrionice, do pitoresco desse personagem que, segundo Carlos Drummond de Andrade, "foi o único de nós que teve vida de poeta", uma enorme carga de angústia existencial, uma inquietação persistente, um sofrimento excessivo, para o qual buscava saída no alcoolismo - que o matou. Seu maior biógrafo, José Castello (Vinicius de Moraes - o Poeta da Paixão), nos dá uma chave interpretativa: "... o dispositivo central de acesso a sua obra: a incompletude. Vinicius foi o poeta da imperfeição. Seu tema, por excelência, é a antiutopia. Isto é, o limite do homem diante de seus desejos. Vinicius de Moraes escreveu - e viveu - para testar as fronteiras do humano".
Píncaros e abismos
O menino superprotegido, travesso, descuidado, por obra do rigor jesuítico logo se veria colhido na angústia existencial e nas malhas ideológicas do catolicismo de sua época - muito anterior e totalmente oposto ao espírito do Concílio Vaticano II. Nos anos 30 a Igreja Católica transpirava fascismo e honrava sua multissecular aliança com os poderes estabelecidos, lançando anátemas contra o "mundo moderno" e mantendo posições intransigentes em relação à sexualidade - a ameaça da danação eterna, com a concreção das labaredas do inferno, tentava manter castas as relações entre os sexos e obrigava ao casamento monogâmico, à prole numerosa, à reprimida vida familiar, regida pela mais estrita obediência aos preceitos ditos "divinos".
No Brasil, então sob a ditadura Vargas - de perfil nitidamente fascista -, formara-se no Rio de Janeiro um núcleo de "intelectuais cristãos", sob a égide do Centro Dom Vital e de sua revista "Ordem". Viviam ainda sob a influência de Jackson de Figueiredo, que, convertido em 1918 e morto aos 37 anos, em 1928, tivera tempo de se destacar como pensador virulento, cujo sonho era impor uma "nova ordem", baseada na mais rigorosa ortodoxia, para o catolicismo - este deveria impregnar todas as manifestações da vida, social, familiar ou individual. Escritores como Cecília Meireles, Murilo Mendes, Octavio de Faria, o pintor Ismael Nery deixaram-se influenciar por suas idéias, nitidamente totalitárias - alguns temporariamente, como Cecília e Murilo, outros permanentemente, como Octavio. Do Centro Dom Vital sairiam dois significativos pensadores católicos - Tristão de Athayde e Gustavo Corção. O primeiro, embora permanecesse católico fervoroso até o fim, demonstrou uma abertura de pensamento extraordinária, principalmente a partir da década de 1950, e veio a ser, nos anos de chumbo da ditadura militar implantada em 1964, um dos mais denodados lutadores em prol da liberdade e da democracia. Corção teve uma trajetória oposta, tornando-se cada vez mais reacionário e atrasado, transformando-se em emblema vivo do pensamento fascista.
Vinicius, aos 17 anos - e já cursando o primeiro ano de direito - viu-se colhido nessa poderosa engrenagem. Começando a exercitar sua sexualidade com prostitutas ou aventureiras casuais, enchia-se de culpa e nojo, pois ainda era católico fervoroso, praticante. Dilacerado pelo dilema carne/"sede de absoluto" (expressão corrente no catolicismo da época), atormentado até o âmago, produzia bateladas de poesia impregnada de misticismo e idealismo cristão, e bastante engessada pelo rigorismo formal. Aos 20 anos (1933) publica seu primeiro livro, O Caminho para a Distância, cujo início dá o tom :
"O ar está cheio de murmúrios misteriosos
E na névoa clara das coisas há um vago sentido de espiritualização...
Tudo está cheio de ruídos sonolentos
Que vêm do céu, que vêm do chão
E que esmagam o infinito do meu desespero."
O crítico Jônatas Serrano escreveu na revista "Ordem" um longo ensaio encomiástico, saudando o livro do jovem poeta como "a resistência do Espírito à invasão da Matéria, o prélio sagrado contra a segunda Sodoma".
E por falar em Sodoma... esse é também o período em que, tornando-se amigo do romancista Octavio de Faria, mais velho do que ele cinco anos, Vinicius, embora fascinado pelo seu brilhantismo intelectual, resiste valorosamente às suas investidas sexuais. Embuçado sob a hipocrisia da época, Octavio empenha-se em longas discussões com o poeta, nos bares do Catete, despejando sobre ele catilinárias contra "a prática da carne" - enquanto relação com mulher -, mas censurando-o por sua "indiferença" e por se defender do amor-paixão, da "espiritualização do sexo", que seria, no seu ver, a entrega à paixão que por ele sentia.
Mas tudo muito disfarçado sob um palavreado difícil, recheado de "píncaros" e "abismos", "infinitos" e "absolutos" - e sublimado sob a capa de uma amizade profunda, do papel de um irmão mais velho que o queria guiar nos caminhos da espiritualidade. O final do relacionamento vem após alguns dias de retiro espiritual, com longas sessões de oração, em uma chácara de propriedade de Octavio - e com uma tentativa de suicídio deste, levado ao paroxismo pelo distanciamento gelado de Vinicius, que nunca "entendeu" o pedido subjacente nas perorações do amigo.
José Castello, na obra citada, dedica três capítulos ao episódio, muito importante em toda a orientação posterior imprimida por Vinicius em sua vida, pois o poeta sempre diria: "Fui salvo pela mulher". Uma salvação que abrange muito mais do que a sexualidade, implicando uma vitória da vida natural sobre a contrafação, e a liberação de todo o seu talento - tudo o que produziu o Vinicius tal como hoje o conhecemos.
Ponto de ruptura
A mulher concreta em que o jovem poeta ancoraria sua sexualidade exuberante e sua inquietação existencial seria a paulista Beatriz Azevedo de Mello (Tati), que conheceu em 1938. A paixão, recíproca, é fulminante, apesar da oposição da família dela, pois a moça estava até noiva de outro. Da alta sociedade, de grande inteligência e cultura, Tati freqüentava rodas de artistas e de intelectuais. Mais tarde adotaria, influenciada por Oswald de Andrade, uma linha de pensamento "progressista", e discutiria muitas vezes com Vinicius, que mantinha uma invencível admiração pelo integralismo e pelos alemães. Em menina Tati já se tornara famosa, pois foi nela que Monteiro Lobato se inspirou para criar sua "Menina do Narizinho Arrebitado".
Lançando-se na vida, liberto da influência de Octávio de Faria e da armadura católica, já um poeta maduro em 1938, e depois de tentar trabalhar em empregos temporários, inclusive como censor de filmes, Vinicius obtém nesse mesmo ano uma bolsa de estudos em língua e literatura inglesa na Universidade de Oxford. Viaja sozinho para a Inglaterra, enquanto Tati fica tentando convencer seus pais. Os dois casam-se por procuração, e Tati vai a seu encontro. Mas têm de viver seu romance às escondidas, ele morando em Oxford e ela em Londres, porque a machista e tradicional instituição só distribuía bolsas para homens solteiros. Esse seu primeiro casamento, que lhe deu dois filhos, Susana e Pedro, foi o mais importante e mais longo, desfeito apenas em 1950 - só que interrompido, durante o ano de 1945, por um casamento "escondido" (somente religioso) do poeta com uma funcionária do Itamaraty, Regina Pederneiras.
De Tati ele diria, em poema de 1948:
"Vejo-te em cada prisma, refletindo
Diagonalmente a múltipla esperança
E te amo, te venero, te idolatro
Numa perplexidade de criança".
As outras ligações passageiras, inúmeras, e os "casamentos" posteriores (mais sete) - todos de amor "infinito enquanto dure" - foram marcados por aventuras rocambolescas, intensidade e fúria, extremos de paixões descabeladas, fugas e deslumbramentos, desencantos súbitos... e toneladas de poesia da melhor qualidade. Houve até um, o de número 6, que acabou em pancadaria da grossa - com Cristina Gurjão, que lhe deu sua filha mais nova, Maria, com 10 anos quando Vinicius morreu. Enfurecida com a sua infidelidade crônica, Cristina quase o ia matando, quebrando-lhe na cabeça um enorme candelabro de estanho. Do casamento número 3, com Lila Boscoli, uma mulher belíssima, bisneta da compositora Chiquinha Gonzaga, Vinicius teve também duas filhas, Georgiana e Luciana.
Uma coisa é certa: sua vida trepidante e aventurosa, as inúmeras paixões, as enormes quantidades de uísque que absorveu dos 25 anos até a morte, mas principalmente a potência extraordinária de seu multiforme talento não permitiram que se realizasse nele aquele temido fantasma do "eterno velho que nada é/ ... cujo único valor é ser o cadáver de uma mocidade criadora" que lhe aparecera em um poema dos 20 anos. Exorcizou-o com o frenesi criativo que imprimiu a todas as suas ações - até o último dia e já derreado pela doença, rodeado de amigos, comparecendo a shows e jantares, deleitando-se com o último uísque proibido, retocando composições, discutindo pelo menos com dois amigos, o músico Toquinho e o produtor Fernando Faro, o seu "testamento poético", O Deve e o Haver.
A plenitude
Costumam alguns críticos situar esquematicamente a poesia de Vinicius entre duas correntes, o "modernismo" pós-22 e a chamada "geração de 45", que procurou negá-lo. Mas essa é uma classificação totalmente insatisfatória, hoje - o "fenômeno" Vinicius estendeu-se por cinco décadas e abrangeu uma tal multiplicidade de aspectos que, assim como acontece com todos os grandes criadores, não pode ser enquadrado em circunstâncias temporais. Eduardo Portella define-o: "Vinicius é o último grande ‘literato’ da poesia brasileira e o primeiro grande cantor de uma sociedade de massas". E Antonio Cândido diz: "Se dermos um balanço no que Vinicius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou para a circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos".
Seus primeiros livros, O Caminho para a Distância, de 1933, e Forma e Exegese, de 1935, mesmo encouraçados dentro do pensamento católico e marcando uma rejeição do ideário modernista - com a retomada de formas clássicas como o soneto, ou com ressaibos de "condoreirismo" -, representaram um esforço profissional do jovem nos seus 20 anos e um mostruário de seu inegável talento. Sua maturação, com a grande guinada "em favor da vida", seria acelerada nos livros seguintes. Aos 25 anos, publicando Novos Poemas, já é bem o Vinicius autêntico, que, curiosamente, se "distanciara" do próprio "distanciamento" proposto no primeiro livro - que abandonara a visão "de cima" da ortodoxia-dona-do-mundo para ir, "nu e com uma rosa vermelha na mão" (como diz Manuel Bandeira), ao encontro do cotidiano.
Cinco Elegias, de 1943, já é o esplendor. Um livro que daria toda a medida do seu talento. Segundo Bandeira, "coisa alóvena, ebaente", que iria "escandalizar muita gente" e "provocar choro e ranger de dentes". Vinicius vinha trabalhando nessas elegias desde 1937, mas escreveu a última de um só jato, em maio de 1939, em um momento de exaltação provocada pela vista dos telhados do bairro londrino de Chelsea - seria definida por ele como "a maior aventura lírica da minha vida", "uma fala de amor como a falei, virtualmente transposta para a poesia", em que, antecipando de muito os concretistas, mistura vocábulos do inglês e do português, cria neologismos do tipo joyciano, arranjos gráficos e de ordem mnemônica.
Nas duas décadas seguintes vemos Vinicius na plenitude vivencial que lhe permitiam a carreira diplomática (entrara no Itamaraty por concurso, em 1943), as muitas viagens, o contato com as grandes personalidades artísticas e intelectuais - desenvolvendo múltiplas atividades, algumas ligadas à sua carreira, outras que amava e nunca abandonou, como a música, o cinema, o jornalismo. No seu primeiro posto, como vice-cônsul em Los Angeles, aproveita para extrair tudo o que pode de Hollywood, liga-se com os artistas mais famosos, estuda cinema com Orson Welles.
Na embaixada em Paris, depois na delegação junto à Unesco, mais tarde transferido para Montevidéu, Vinicius é sempre o mesmo, trepidante, aberto a todas as potencialidades do momento, realizando bem um seu desejo infantil, o "de amar todas as mulheres e ser amigo de todos os homens". Mas que é sempre obrigado a exorcizar a tristeza que vem, não obstante, espreitá-lo em meio ao torvelinho, como outrora espreitava o angustiado adolescente ("Antiode à Tristeza"):
"Com teu rosário e burel de cinzas
A empoeirar de tédio as minhas horas.
Vai predicar além, predicadora
Da voz ausente, vai! que se me voltas
Eu grito nomes feios, eu te espanco
Ou te enforco em teu terço de mil voltas
Ou caio na risada, ou te exorcizo
Com um gigantesco crucifixo branco
Onde, transverberando luz do flanco
Resplende o corpo nu da minha amada!"
Vinicius é o poeta dos contrastes. Dos paradoxos. "Das encruzilhadas", como foi mais de uma vez chamado. Transparece sempre, sob a aparência do bon vivant internacional, do sedutor compulsivo, um desejo de "algo mais", uma inquietação metafísica não resolvida - é um grande atormentado que nem a evolução posterior da sua poesia para o campo social conseguiu apaziguar.
Influências
Como homem imensamente culto, Vinicius deixou sempre passar, não-referenciadas, influências recebidas de poetas como Camões, Fernando Pessoa, García Lorca, Manuel Bandeira e outros. "O Falso Mendigo" - poesia famosa - mostra um paralelo, que parece não ter sido notado por ninguém, com uma música de Noel Rosa, falecido em 1937. A poesia de Vinicius é de 1938.
O falso mendigo
(Vinicius de Moraes)
Minha mãe, manda comprar um quilo de papel almaço na venda
Quero fazer uma poesia.
Diz a Amélia para preparar um refresco bem gelado
E me trazer muito devagarinho.
Não corram, não falem, fechem todas as portas à chave
Quero fazer uma poesia.
Se me telefonarem, só estou para Maria
Se for o ministro, só recebo amanhã
Se for um trote, me chama depressa
Tenho um tédio enorme da vida.
Diz a Amélia para procurar a "Patética" no rádio
Se houver um grande desastre vem logo contar
Se o aneurisma de dona Ângela arrebentar, me avisa
Tenho um tédio enorme da vida.
Liga para vovó Nenem, pede a ela uma idéia bem inocente
Quero fazer uma grande poesia.
Quando meu pai chegar tragam-me logo os jornais da tarde
Se eu dormir, pelo amor de Deus, me acordem
Não quero perder nada na vida.
Conversa de botequim
(Noel Rosa)
Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada
Um pão bem quente com manteiga à beça
Um guardanapo e um copo d’água bem gelada.
Feche a porta da direita com muito cuidado
Que eu não estou disposto a ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado do futebol.
Se você ficar limpando a mesa
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro, um envelope e um cartão.
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro para espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas, um cinzeiro e um isqueiro.
Telefone ao menos uma vez
Para três quatro quatro três três três
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva aqui pro nosso escritório.
Seu garçom me empresta algum dinheiro
Que eu deixei o meu com o bicheiro
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure esta despesa no cabide ali em frente.
Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa ...