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Voto pela paz

Brasileiros serão consultados sobre venda de armas de fogo

LUIZ CARLOS CARDOSO


Arte PB

No mês de outubro, o eleitorado brasileiro deverá participar de um referendo, pronunciando-se sobre a comercialização de armas de fogo. Um documento que o presidente da República sancionou em dezembro de 2003, o Estatuto do Desarmamento, prevê a realização dessa consulta aos cidadãos, que deles colherá o "sim" ou o "não" a respeito da questão de interesse geral que consiste em manter a arma de fogo ao alcance de quem por ela pague ou retirá-la do comércio em todo o território nacional.

Se adotada, a proibição refere-se à venda de armas, estando já seu porte proibido ao cidadão comum pelo Estatuto. Quem já for proprietário de arma devidamente registrada poderá conservá-la, mas demonstrando daí por diante, a cada dois anos, que não oferece com isso algum risco para si e os outros - ou seja, provando mediante testes que é responsável o bastante para não fazer uso indevido dela. E, naturalmente, se a arma não tem registro, este deverá ser providenciado de imediato, arriscando-se o proprietário, em caso contrário, a ser punido até com detenção de um a três anos.

José Roberto Bellintani, superintendente do Instituto São Paulo contra a Violência - uma organização da sociedade civil que congrega entidades empresariais e não-governamentais, universidades e meios de comunicação -, observa que o referendo é um passo adiante de um processo cuja manifestação mais conhecida até agora é o recolhimento das armas por meio de uma bem-sucedida campanha iniciada em todo o país em meados de 2004 e que deve continuar até o fim de 2005. De acordo com a iniciativa, o dono da arma a leva espontaneamente a um posto policial ou militar, recebe por ela entre R$ 100 e R$ 300 e um agradecimento em nome da sociedade. Não lhe é perguntado se a arma é legal ou ilegal, dado o espírito de colaboração da campanha - mas isso só até dezembro.

Na perspectiva de hoje, a opinião pública de modo nenhum se apresenta pacificamente favorável à proibição da venda de armas. Para muitos, a possibilidade de que todo cidadão esteja sem dúvida desarmado o torna mais vulnerável à ação do bandido, que sabe disso.

Pressupõe-se que o poder público deverá, paralelamente, reprimir o tráfico de armas no país e nas fronteiras, que é responsável pelo municiamento dos bandidos - a possibilidade de fracasso nessa empreitada é um forte argumento para os que se posicionam contra a proibição do comércio legal de armas, alegando que, desarmados, ficarão à mercê de um inimigo fortemente armado.

Em face do referendo que se avizinha, ou mesmo do debate pró-referendo já em curso, armamento e desarmamento estão em foco e serão discutidos com interesse crescente nos próximos meses. Isso põe em evidência dois documentos publicados em 2004 sobre a mortalidade e a violência por armas de fogo no Brasil, com análises e conclusões que é indispensável considerar. Sugere também uma reflexão sobre o que de melhor a sociedade brasileira está fazendo em relação à violência que a agride, com episódios noticiados diariamente pelos meios de comunicação.

Os dados da questão

"Mortalidade por Armas de Fogo no Brasil - 1991-2000" é estudo publicado pelo Ministério da Saúde, com o apoio técnico e financeiro da Organização Pan-Americana da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS), que reproduz projeto desenvolvido pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP), com a coordenação de Maria Fernanda Tourinho Peres. Em síntese, eis alguns de seus argumentos:

Por uma coincidência paradoxal, a violência no Brasil cresceu muito a partir de meados da década de 1980, época de transição democrática e de abertura política no país. As mortes por homicídio superaram em 1994 as provocadas por acidentes de trânsito e alcançaram a primeira posição no total das que ocorreram por causas externas.

Não foi esse um crescimento uniforme na população, mas concentrado em determinados grupos e áreas geográficas. Morreram dessa forma principalmente homens jovens. Já nos anos 80, a possibilidade de um deles tombar assassinado era 11 vezes maior que a de uma mulher. E na década de 90, em alguns estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Pernambuco, os homicídios foram responsáveis por mais da metade das mortes por causas externas na população jovem, na faixa etária de 15 a 24 anos.

Há diferenças também na distribuição espacial dos homicídios nos centros urbanos, sugerindo que condições socioeconômicas precárias se relacionem com a mortalidade por homicídio. Isso não significa que exista uma relação de causa e efeito entre a pobreza e os níveis de violência; é mais provável que a dificuldade de acesso de uma população aos bens e serviços nas chamadas áreas de exclusão seja o fator maior a contribuir para a sua baixa legitimidade social, propiciando, isso, sim, o surgimento de conflitos diversos.

O Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, colheu dados indicadores de que já na década de 80 a maior parte dos homicídios no Brasil foi cometida com armas de fogo e especialmente nas capitais. Em 1999, as armas responderam por 27% das mortes por causas externas, das quais 42% ocorreram entre a população de 15 a 19 anos. E, quando não mataram, causaram em muitos casos lesões graves na medula, com evolução para a paraplegia.

Na maior parte dessas ocorrências de morte ou ferimento por arma de fogo, o tiro foi intencional, mas muitas vezes teve por motivação conflitos não criminais - brigas e discussões. Em mais de um terço deles, os agressores eram conhecidos das vítimas - vizinhos, parentes ou amigos. Mata-se ou aleija-se também devido a desentendimentos no trânsito, em conflitos interpessoais facilmente superáveis. A arma é com freqüência disparada e produz danos terríveis porque está à mão. Sua presença aumenta a chance de que eventos fatais ocorram.

O crescimento da violência ajudado por essa disponibilidade da arma de fogo contribuiu nos anos 90 para o sentimento de insegurança e medo da população, tendo também o efeito de aumentar a demanda por armamento dos que querem defender-se. A isso, no período, somou-se o tráfico de armas ilegais para municiar o comércio de drogas, com adesão das populações jovens, num contexto marcado pela falta de perspectivas, pelo desemprego e pelas desigualdades sociais.

Os dados apresentados nesse trabalho referente à década de 90 indicam que a mortalidade por armas de fogo já constituía então uma questão importante, com tendência a se agravar entre toda a população. Em sua conclusão, o estudo observa que "o conhecimento do problema é o primeiro passo para a ação".

Outro documento fundamental na mesma linha desse é o relatório "Violência por Armas de Fogo no Brasil", publicado também em 2004 pelo NEV, e que resultou de um projeto coordenado, mais uma vez, por Maria Fernanda Tourinho Peres.

A distribuição e a magnitude desse tipo de violência na década de 1990 são aí descritas em mais de uma centena de tabelas e quadros, abrangendo as cinco regiões, os estados e suas capitais. O homicídio avulta no período como "um importante problema social e de saúde pública", que indica um "risco excessivo de morte" da população masculina, especialmente na idade entre 15 e 49 anos. Em 2000 os homicídios no município de São Paulo, segundo dados de declarações de óbito, chegaram próximo de 6 mil, e 57,7% deles foram cometidos com armas de fogo. Mas a porcentagem pode ter sido bem mais elevada (90,1%, a partir de dados obtidos no Instituto Médico Legal), pois a informação sobre o uso de armas de fogo é subnotificada.

O índice de mortalidade por esse tipo de arma no Brasil cresceu 211,6% de 1979 a 1999, passando de 6 para 18,7 por 100 mil habitantes, e a taxa de morbidade e de ferimentos pode ter se ampliado na mesma proporção - o processo de coleta de informações nesse caso não está bem estabelecido. Em 1997 foram gastos no país quase US$ 80 milhões no tratamento hospitalar de pessoas que sofreram violência.

Os jovens, vítimas preferenciais das armas de fogo, são também os que mais acreditam que ter ou portar arma dá mais segurança à pessoa e ao lar. No total da população, porém, só uma minoria concorda com isso (11% quanto à segurança do lar, 7% quanto à da pessoa), e apenas 10% considera que a polícia garante a segurança da população.

Muitos estudos em que se baseou esse relatório indicam que o sentimento de insegurança é uma das grandes preocupações da população brasileira: ela desconfia da polícia, das instituições judiciárias e do sistema penitenciário.

Diante desse quadro, o que fazer? O relatório do NEV conclui: "Torna-se de fundamental importância mobilizar as instituições governamentais e a sociedade civil para o desenvolvimento de ações multissetoriais para a prevenção da violência".

O que já se faz

Nesse assunto repleto de dados preocupantes, há no entanto algumas iniciativas animadoras, que devem ser consideradas pelos que vão participar do referendo.

Uma delas é o Fórum Metropolitano de Segurança Pública de São Paulo, criado em março de 2001. Organização informal, sem fins lucrativos e suprapartidária, ele congrega os prefeitos dos 39 municípios da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) para, na companhia de especialistas, representantes da sociedade civil e dos governos estadual e federal, discutir, propor, avaliar e apoiar ações com o objetivo de reduzir a violência nesse espaço densamente povoado e extraordinariamente produtivo do país.

As "ações multissetoriais" a que alude o relatório do NEV têm no Fórum Metropolitano um concretizador exemplar. Ele está assinalando o início de uma transformação estrutural na forma de lidar com a questão da segurança pública, na medida em que faculta aos municípios o desempenho de um papel essencial. O que se tinha antes disso, e o que prevalece ainda no país, era a exclusiva atuação policial e dos governos estaduais na tentativa de resolver um problema complexo, que exige a ampla participação de todos os níveis governamentais e de organizações da sociedade civil.

Exemplos dessa nova forma de atuar: os municípios integrados no Fórum Metropolitano assumem responsabilidades relativas à segurança pública, com acesso a fontes de informação criminal que lhes eram vedadas, como as do Sistema de Informatização contra o Crime (Infocrim), da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo; podem instituir secretarias e/ou órgãos de gestão urbana, assim como criar e/ou ampliar a guarda municipal; implementam programas de prevenção do crime e da violência; adotam leis específicas sobre questões relevantes para a segurança pública, o que significa um passo além do mero repasse de recursos e de outros tipos de auxílio. Uma dessas inovações: de todos os municípios da RMSP, 16 já adotaram a "lei seca", regulamentando o horário de estabelecimentos que comercializam bebidas alcoólicas.

Essa condição do Fórum Metropolitano, de participar da segurança pública articulando e mobilizando municípios, tomando iniciativas e disponibilizando sua experiência a todos os que se empenham no mesmo propósito já é modelar para outros: na Região Metropolitana de Recife, por exemplo, criou-se a Câmara Metropolitana de Política de Defesa Social em março de 2004, e elaborou-se um Plano de Prevenção da Violência que vem sendo implementado.

Não se pode ainda afirmar que a atuação do Fórum Metropolitano na região já tenha revertido a tendência de crescimento do crime e da violência: os índices de homicídios e de roubos e furtos de veículos caíram em 2000-2003 relativamente aos que se registravam na década de 1990, mas os de outros roubos e furtos aumentaram depois de uma queda em 1999-2000. No balanço geral, porém, prevalece um inegável sinal positivo.

É prioritário para o Fórum Metropolitano analisar e combater a violência em âmbito local através de algumas ações, como a melhoria das relações familiares, com foco em grupos de jovens em situação de risco social (adolescentes em conflito com a lei e usuários de drogas); participação da família e da comunidade na gestão escolar; valorização e capacitação de educadores para a prevenção da violência na escola; incentivo à geração de trabalho, emprego e renda, educação e qualificação profissional; apoio à formação e fortalecimento de lideranças comunitárias; contribuição para a ordenação de áreas públicas de grande circulação de pessoas; criação e requalificação de espaços de convivência e lazer, e qualificação do entorno de escolas e parques públicos.

Fazem parte também desses objetivos a promoção do policiamento comunitário orientado para a resolução de problemas; a oferta de orientação jurídica e assistência judiciária, com serviços instalados em centros locais de mediação formal e informal de conflitos; a criação de núcleos de atendimento a vítimas de violência; o apoio ao atendimento a vítimas de violência, do abuso de álcool e de outras drogas, e, ainda, a divulgação em ônibus do telefone do Disque Denúncia.

O Fórum Metropolitano de Segurança Pública, em quatro anos de atuação, tem serviços prestados a relatar e um extenso rol de outros a cumprir. O risco maior que corre é a descontinuidade do trabalho ditada pela mudança de titulares nas prefeituras.

A favor do cidadão

Na secretaria executiva do Fórum Metropolitano, auxiliando em suas ações, que conjugam esforços dos 39 municípios com plenárias trimestrais e cinco grupos de trabalho, está o Instituto São Paulo contra a Violência. Fundada em 1997, a entidade concentra seu trabalho em quatro áreas estratégicas, a da segurança pública, a da justiça criminal, a do sistema penitenciário e a do desenvolvimento de políticas sociais e urbanas.

Dos equipamentos de que dispõe, um se apresenta como campeão de audiência e popularidade: o Disque Denúncia, que, instalado há quase cinco anos, recebe atualmente cerca de 1,5 mil ligações diárias, atendidas por turmas de 12 especialistas que se revezam em turnos de seis horas - todos os dias, sem jamais interromper-se.

O serviço está disponível para toda a população do estado de São Paulo, e não apenas da capital, pelos telefones 181, para a área de código 11, e 0800 156315, para as demais regiões. O atendimento implica um compromisso inviolável: quem faz o contato tem a garantia de que seu nome será mantido em sigilo, preservando-se o anonimato. E as ligações recebem um retorno com informações sobre as providências adotadas e os resultados obtidos.

O Disque Denúncia, cujo modelo o Rio de Janeiro adotou e outras capitais do país estão em via de implantar, ajuda a polícia a resolver três casos e meio em média por dia, além de revelar numerosas pistas e inspirar na população a certeza de que está sendo ouvida.


Motivos para o desarme

Quatro entidades integrantes do suprapartidário Comitê Desarma São Paulo (o ConPaz, da Assembléia Legislativa de São Paulo, o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde - Conasems, o Instituto Sou da Paz e a Rede Gandhi - Saúde, Cultura de Paz e Não-Violência) uniram-se na produção do folheto "12 Motivos para Você Desarmar São Paulo", que traz dados interessantes para o debate do referendo. Eis alguns deles:

• No ano passado morreram 36 mil pessoas a tiros no Brasil, o que faz a média de uma pessoa a cada 15 minutos. Morre-se aqui mais por arma de fogo (29,6%) que por acidente de trânsito (25,1%).

• A arma de fogo é a causa principal de morte de homens jovens no Brasil. Ter uma em casa é muito mais um risco do que uma proteção.

• Com a arma ao alcance da mão, qualquer pessoa pode se transformar em assassino. Entre todas as mortes por arma de fogo, apenas 10% são devidas a latrocínio (roubo seguido de morte).

• Acidentes com armas de fogo matam em média um brasileiro por dia. As crianças são as maiores vítimas.

• Em média, quatro brasileiros se suicidam por dia com arma de fogo.

• No estado de São Paulo, a cada ano, 11 mil armas legais são roubadas ou furtadas, passando para as mãos de criminosos.

• Cada vítima de arma de fogo custa em média R$ 12 mil para o sistema de saúde pública.

A Campanha de Desarmamento já fez efeito: no Paraná, reduziu-se em 20% o número de homicídios e em 34% o de ocorrências com arma de fogo, e caíram em 30% os assassinatos a tiros em Maringá. No estado de São Paulo, os homicídios diminuíram 18,5%, e a quantidade de armas nas ruas baixou 24%.

 

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