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Semente promissora

Novo método de plantio apresenta expansão sem precedentes

FLÁVIO CARRANÇA


As plantas no meio da palhada
Foto: divulgação

Estrela da economia nacional, ao bater recordes de produtividade e fazer do Brasil um dos líderes mundiais da exportação de alimentos, a agricultura vem tendo, também, sua imagem associada a sérios danos ao meio ambiente, tanto devido ao avanço sobre áreas de floresta quanto pelo emprego de técnicas - como queimadas e uso intensivo de produtos químicos - indefensáveis do ponto de vista ecológico. Contudo, pelo menos uma parte dessa realidade começa a mudar. Para milhares de agricultores de norte a sul do país, o tão criticado costume de queimar os restos da cultura anterior, para depois revolver o solo e plantar a semente, é coisa do passado. Contado o milagre, vamos ao santo: plantio direto na palha.

Desenvolvido de forma experimental na Inglaterra e aperfeiçoado nos Estados Unidos, esse novo método de cultivo vem tendo no Brasil uma expansão sem precedentes. Segundo a Federação Brasileira de Plantio Direto na Palha, o uso desse sistema passou de 1 milhão de hectares em 1992 para 22 milhões de hectares em 2004. Orlando Melo de Castro, pesquisador do Instituto Agronômico de Campinas (SP), calcula que cerca de 40% da área plantada no país esteja utilizando o plantio direto, embora nos estados do sul, onde o clima é mais favorável, as estimativas cheguem a 70%.

Esse método, explica o professor Antonio Luiz Fancelli, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), requer o emprego de máquinas especializadas, uma vez que o revolvimento da terra tem de ser mínimo e a superfície do solo precisa estar coberta com resíduos vegetais, que podem ser restos de safras anteriores, mato, ou alguma cultura plantada especificamente para esse fim. Chamada pelos agricultores de palhada, essa camada de plantas dessecadas por herbicidas ou cortadas por roçadoras permanece sobre a terra para impedir que a luz do sol faça germinar novamente as sementes das ervas daninhas.

Outra característica importante do sistema é a rotação de culturas, necessária para impedir a disseminação de doenças e pragas de um plantio para outro, uma vez que nos restos da safra anterior, mantidos na superfície da terra, podem existir agentes transmissores. Para cortar o ciclo de reprodução das doenças e impedir a permanência de pragas, a solução encontrada foi o cultivo alternado de espécies diferentes, como o de uma leguminosa, que pode ser a soja, seguido pelo de uma gramínea, como o milho.

Luiz Fancelli classifica o novo método de conservacionista, porque, além de garantir o aumento da produtividade das culturas, preserva a água e o solo. No plantio convencional, a chuva cai sobre a terra nua e forma a enxurrada, cujas águas barrentas podem causar danos a estradas ou se acumular nas calhas dos rios, provocando enchentes, além de poluir os mananciais com os produtos químicos usados na lavoura. No plantio direto, 90% da água da chuva fica retida no solo. Além disso, segundo Fancelli, o sistema contribui para reduzir o efeito estufa, porque faz o chamado seqüestro de carbono, ou seja, mantém o carbono no solo sob a forma de microorganismos e matéria orgânica, evitando que se transforme em gás carbônico, o grande responsável pelo aquecimento global.

De início, o combate à erosão foi a principal motivação para os produtores rurais aderirem ao novo processo. Segundo um estudo desenvolvido por um grupo de pesquisadores de várias instituições brasileiras e que foi publicado pela Embrapa Solos em 2002, os prejuízos no país causados pela degradação do solo nas propriedades que utilizavam o plantio convencional chegavam a US$ 2,87 bilhões ao ano. Já as perdas decorrentes da depreciação da terra, necessidade de tratamento da água para consumo humano, manutenção de estradas e reposição de reservatórios alcançavam a cifra de US$ 2,16 bilhões. No total, o país via, anualmente, cerca de US$ 5 bilhões serem levados pela enxurrada.

Orlando Melo de Castro afirma que, nas lavouras de soja e de milho do sistema convencional da região centro-sul, entre 13 e 14 toneladas de solo por hectare são levadas pelas águas todos os anos. No plantio direto, há uma redução de 85% a 90% dessas perdas. Ele lembra que a partir de meados dos anos 1980, com melhores equipamentos e maior oferta de herbicidas, a preços mais baixos, a adoção do novo método pelos produtores rurais passou a ter também motivação econômica, já que era possível reduzir drasticamente o consumo de combustível. Segundo o pesquisador, a economia de óleo diesel numa área de plantio direto é de até 70% em relação ao sistema convencional, devido ao menor número de operações de preparo do solo, o que também contribui para aumentar a vida útil das máquinas.

Ponto de partida

Em apenas 15 anos - de 1965 a 1980 - a colheita de soja no Brasil pulou de 1,4% para 16% da produção mundial. Mas esse "milagre", que em 1985 fez as lavouras da leguminosa estenderem-se por 10 milhões de hectares, ocupando as terras de cerca de 500 mil produtores, teve um preço ambiental que pode ser resumido no drama do agricultor Herbert Bartz, o pioneiro do plantio direto. Com forte sotaque alemão, esse catarinense radicado em Rolândia, na região norte do Paraná, lembra que numa noite quente do verão de 1971 viu sua lavoura de soja recém-plantada desaparecer sob seus pés, depois de 90 minutos de chuva forte: "Eu pensei: meu Deus, mais uma dessas e não posso mais ser agricultor". Foi a partir desse momento traumático que ele decidiu buscar alternativas.

Nessa procura, Bartz ouviu falar primeiro da técnica do cultivo mínimo, e prontamente construiu um equipamento copiado de um modelo europeu, a enxada rotativa. Os resultados se revelaram tão insatisfatórios quanto no plantio convencional. O agricultor ficou sabendo então de um novo método chamado no-till (plantio direto). Fez mais algumas experiências, sem sucesso, mas não desistiu. Mesmo sendo apenas arrendatário de terras, resolveu investir em uma viagem para visitar uma feira agrícola em Hannover, na Alemanha. Depois foi à Inglaterra e finalmente aos Estados Unidos, onde teve um decisivo encontro com um produtor rural que fazia plantio direto havia cerca de dez anos. Mas a grande mudança aconteceu quando ele trouxe a primeira plantadeira do novo sistema para o Brasil. "Custou caro, e eu não sabia nem como pagar, porque naquele ano de 1972 perdi uma lavoura de 250 hectares de trigo em uma noite de geada, o que me obrigou a vender todo o equipamento convencional (trator, arado, grade) para pagar dívidas."

Sem alternativa, Bartz, que a princípio pretendia fazer uma experiência com 10% ou 20% da área de cultivo, foi obrigado a fechar os olhos e saltar no escuro, começando a aventura que lhe valeu, durante uns tempos, o apelido de "Alemão Louco". As dificuldades iniciais foram grandes, principalmente porque não havia ainda herbicidas adequados ao novo sistema. "Não foi fácil, mas já no primeiro ano percebi que o plantio direto reduzia em 75% o consumo de combustível, isso em plena crise de energia, o que foi muito estimulante." Mas ele logo notou também que, com esse sistema, era realmente possível controlar a erosão. A partir daí, Bartz parou de se questionar sobre a validade do método e passou a se ocupar apenas com questões técnicas, como o controle das ervas daninhas e o desenvolvimento de plantadeiras mais eficientes.

Novos adeptos

Dois anos depois dessa experiência pioneira, um grande grupo de agricultores japoneses da cidade de Mauá da Serra, a 100 quilômetros de Rolândia, premido pelas mesmas dificuldades, aderiu ao sistema. Mas foi apenas em 1976 que ocorreu uma virada na evolução do plantio direto no Brasil. Nesse ano, o novo método recebeu a adesão dos produtores Nonô Pereira e Franke Dijkstra, que juntamente com Bartz teriam papel central na sua evolução e divulgação.

Manoel Henrique "Nonô" Pereira tem 67 anos e mora em Ponta Grossa, região paranaense dos Campos Gerais, onde cultiva soja, milho e sorgo em sua propriedade de 1,5 mil hectares. Ele lembra que na década de 1970 Ponta Grossa estava no centro da explosão do cultivo de soja, chegando a sediar dez grandes indústrias produtoras de óleo. "Havia um processo de erosão violento. Era comum, durante o plantio, vir uma pancada de chuva rápida de verão e, em poucos minutos, a lavoura ficar totalmente destruída."

Nonô conta que, por volta de 1975, os problemas de erosão foram se tornando cada vez mais intensos, provocando sérios danos às áreas de plantio. Associações conservacionistas passaram a assessorar os produtores da região para orientá-los na instalação de terraços e curvas de nível, que naquele momento eram a tecnologia disponível para enfrentar o problema, mas sem sucesso. Os terraços mostravam-se insuficientes para suportar o volume de água. Os produtores chegavam a fazer "murunduns" (barreiras) de um metro e meio de altura, mas logo perceberam que quando a água os alcançava o arrasto do solo já havia acontecido. "Paramos para pensar e concluímos que o terraceamento não resolveria", conta Nonô. Foi então que, folheando uma revista norte-americana sobre agricultura, ele tomou conhecimento do sistema no-till. Sempre compartilhando as informações com agrônomos de sua cooperativa e outros colegas, Nonô foi conhecer as experiências pioneiras de plantio direto desenvolvidas por Herbert Bartz. "Vimos que havia pouca informação sobre o controle de ervas e o funcionamento das próprias máquinas. Não existia ainda um pacote técnico disponível."

Em 1976, Nonô comprou uma máquina importada de plantio direto, a Rotacaster, que se revelaria pouco eficiente. Mas, não muito longe dali, outro pioneiro, Franke Dijkstra, ligado à cooperativa Batavo, de imigrantes holandeses, também tomara conhecimento da experiência de Bartz. Dijkstra, que atualmente é presidente da Batavo, adaptou uma máquina tradicional para o novo sistema. "Acho que aquele foi um dos maiores avanços que conseguimos no plantio direto", afirma Nonô. Ele explica que a Rotacaster era pesada demais e tinha baixa capacidade de carga de adubo e sementes. A adaptação feita por Dijkstra solucionava um problema fundamental: cortar corretamente a palha e o solo, de maneira a agasalhar bem a semente dentro da terra e ao mesmo tempo permitir a entrada de luz suficiente para a germinação. A facilidade e o baixo custo dessa adaptação incentivaram muitos agricultores a aderir ao novo método.

Resolvida a questão do plantio, restava outro problema: a formação da palhada e o controle das ervas daninhas. Nesse caso a solução veio da indústria agroquímica. No seu livro Nonô Pereira: 25 Anos Plantando na Palha, Gilberto de Oliveira Borges informa que, na segunda metade da década de 70, o aparecimento do glifosato, um herbicida dessecante sistêmico - que age dentro do organismo da planta -, deu novo fôlego ao plantio direto. Isso porque a ineficiência dos chamados herbicidas de contato no combate às ervas daninhas já começava a fazer muitos produtores voltarem ao sistema convencional.

Além de adotar o plantio direto, Nonô Pereira tornou-se um grande difusor da nova tecnologia. Junto com Franke Dijkstra ele incentivou a criação da primeira associação de agricultores que usavam o método no Brasil, o Clube da Minhoca, que começou a funcionar em 1979 em Ponta Grossa e depois passaria a se chamar Clube dos Amigos da Terra. Em fevereiro de 1992, da união de vários clubes desse tipo surgiria a Federação Brasileira de Plantio Direto na Palha, que foi presidida por Nonô por três gestões consecutivas. Outra entidade de destaque é a Associação de Plantio Direto no Cerrado (APDC). Na região de cerrado do Brasil central, o plantio direto, que em 1992 cobria cerca de 270 mil hectares, já chega a 8 milhões de hectares, segundo o agrônomo John N. Landers.

Na distante franja oeste do cerrado brasileiro, por exemplo, na fronteira da Bahia com Tocantins, o plantio direto ganha destaque. Ingbert Döwich, diretor executivo do Clube do Plantio Direto do Oeste Baiano e também coordenador de pesquisa da entidade, conta que em 1987 e 1991 foram feitas as primeiras tentativas, sem sucesso, de implantar o sistema. Tentou-se usar o mesmo processo empregado em outras regiões, mas o clima muito seco daquelas paragens exigia o desenvolvimento de métodos próprios. A partir de 1997, junto com um grupo de agricultores sulistas radicados na Bahia, Döwich iniciou um trabalho de adaptação da tecnologia.

O principal problema era conseguir cobertura morta suficiente, já que estudos demonstravam a necessidade de cerca de 4 toneladas de palha por hectare para que o sistema funcionasse. O grupo obteve sucesso na rotação de milho com soja e mais recentemente passou a investir no consórcio de milho com braquiária (o capim mais comum nos pastos do Brasil), tanto com o objetivo de formar a palhada para o plantio de soja no ano seguinte quanto para a produção de uma forragem de qualidade, nesse caso para engorda de bois no período de entressafra, a chamada integração lavoura-pecuária. Döwich acredita que hoje, no oeste baiano, quase 1 milhão de hectares, na maior parte cultivados com soja, mas também com milho, estejam sendo manejados em sistema de plantio direto.

Prós e contras

Criticado por ambientalistas por utilizar adubos químicos e agrotóxicos, o plantio direto poderia ser definido como uma espécie de "social-democracia" agronômica, pois procura mudar o sistema sem revolucionar as bases. Seus adeptos, no entanto, arregimentam dados para mostrar que os benefícios não se limitam à área rural. John Landers, ligado à APDC, calcula que a queda de gastos com a manutenção de estradas vicinais, tratamento de água e dragagem de rios e lagos, além do aumento de disponibilidade hídrica nos lençóis subterrâneos e do seqüestro de carbono, tenham proporcionado ao país em 2004 uma economia de aproximadamente US$ 2 bilhões. Segundo ele, a decisão de não mais arar a terra marca uma mudança na consciência ambiental do produtor rural brasileiro, que deixa de ver a agricultura como uma luta contra os elementos da natureza e passa a considerá-los seus aliados.

José Maria Gusman Ferraz, biólogo com doutorado em ecologia e pesquisador da Embrapa Meio Ambiente, reconhece que o método de plantio direto tem inúmeras vantagens, não só por evitar a erosão mas porque os canais formados no solo pelas raízes apodrecidas da vegetação que compõe a palhada arejam a terra e facilitam o desenvolvimento das plantas. Esses mesmos canais, no entanto, podem ter um efeito negativo. "A água que passa por eles quando chove arrasta o herbicida rapidamente para o fundo, aumentando consideravelmente o risco de contaminação do lençol freático", adverte.

Herbert Bartz, no entanto, alega que o plantio direto não teria sustentação se não estivesse baseado em fortes argumentos econômicos e ambientais. Ele garante que o plantio direto já superou a imagem negativa que o associava às empresas produtoras de agroquímicos, tornando-se aceitável ao ser recomendado por grandes instituições como o Banco Mundial (Bird) e a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Outro argumento de Bartz diz respeito a um aspecto social: "Temos um número excepcional de pequenos agricultores no sul do país que emprega o plantio direto com uso de tração animal ou mão-de-obra humana", afirma, acrescentando que esses produtores perceberam que os benefícios são expressivos em propriedades de todos os portes. E conclui em tom que beira o profético: "Ainda não se explorou o fantástico potencial do plantio direto de levar esses benefícios aos pequenos agricultores do mundo, que são dois terços da humanidade, mas os primeiros passos estão dados".

De fato, embora tenha se desenvolvido inicialmente nas médias e grandes propriedades, o plantio direto na década de 80 ainda parecia inacessível ao pequeno produtor. Foi em boa parte graças ao trabalho do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar) que essa situação se alterou. Ruy Casão Jr., pesquisador voluntário da entidade, conta que em 1985 foi concluído no instituto o desenvolvimento de uma semeadora de tração animal para plantio direto, conhecida como Gralha Azul. Colocado no mercado somente em 1993, o novo equipamento abriu o caminho para a adoção do plantio direto pelo pequeno agricultor. Segundo Casão, são vendidas no Brasil anualmente cerca de 10 mil unidades dessa plantadeira. Com base nessa informação, ele estima que a cada ano cerca de 100 mil hectares de pequenas propriedades estejam incorporando o novo sistema.

As perspectivas para a agricultura são, portanto, bastante promissoras, mas, apesar do otimismo dos produtores e das evidentes vantagens do plantio direto, talvez seja sensato atentar para a advertência feita pelo biólogo Gusman Ferraz. Considerando os riscos associados ao uso dos agrotóxicos, o sistema merece ainda ser objeto de estudos que o aperfeiçoem, uma vez que coloca em perigo as reservas hídricas subterrâneas. Afinal, o que está em jogo é a qualidade da água e, com ela, a vida de seres humanos, animais e plantas.

 

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