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A bruxa está solta
Cultura do cacau tenta recuperar-se da crise produzida por um fungo
CARLOS JULIANO BARROS
"Semanas atrás, um fazendeiro antes considerado rico procurou um amigo, também cacauicultor, para falar-lhe de um assunto delicado. ‘Estou precisando de dinheiro e confio na nossa velha amizade na certeza de que você vai me ajudar’, disse o fazendeiro. O amigo relatou que se prontificou a emprestar uma certa quantia, imaginando tratar-se de R$ 10 mil ou R$ 20 mil. ‘De quanto você precisa?’, indagou, ao que o fazendeiro respondeu, de cabeça baixa: ‘De uns R$ 200. É para fazer a feira semanal lá em casa’." |
Foto: Carlos Juliano Barros
Parece o enredo de um filme de terror pouco verossímil. Primeiro, os preços no mercado internacional despencaram por conta da grande oferta do produto em outros países, notadamente os da África. A natureza também não colaborou, mandando poucas chuvas e castigando as plantações com a inclemência do sol. Finalmente, como golpe de misericórdia, um fungo vindo da Amazônia sabe-se lá de que maneira, conhecido por vassoura-de-bruxa, apodreceu os frutos e sepultou de vez as esperanças de produtores descapitalizados, baseadas na vaga expectativa de uma recuperação do valor do cacau na Bolsa de Nova York, onde são cotadas as commodities. O resultado não poderia ser mais desastroso: a redução vertiginosa da safra, associada à baixa rentabilidade, atolou fazendeiros em dívidas e desempregou centenas de milhares de trabalhadores.
Em linhas gerais, essa é a triste história a que a região cacaueira da Bahia vem assistindo desde o final dos anos 80. O Brasil apresentava até então a segunda maior produção mundial, atrás apenas da Costa do Marfim. Hoje, porém, as 163 mil toneladas colhidas em 2003/2004, que colocam o país na quinta posição, são insuficientes inclusive para atender à demanda interna. Marcada no imaginário popular por lendas que retratam o passado de extravagâncias dos ricos e famigerados "coronéis", imortalizados por Jorge Amado em livros como Terras do sem Fim e Gabriela, Cravo e Canela, essa área que abrange quase 90 municípios no sul do estado, e que responde por aproximadamente 85% de toda a produção nacional, atualmente luta para combater a vassoura-de-bruxa e recuperar o prestígio de tempos atrás.
Até os anos 70 - quando a criação do Centro Industrial de Aratu e, principalmente, a instalação do Pólo Petroquímico de Camaçari diluíram por completo os traços agrícolas da economia baiana - o cacau foi o maior gerador de divisas do estado, responsável por quase 60% de toda a sua arrecadação.
Hoje em dia a situação é bem diferente. No porto da principal cidade da região, Ilhéus, por onde já foram exportados anualmente mais de US$ 1 bilhão em sacas de cacau, o movimento gira em torno da soja plantada no oeste baiano, além do papel e celulose produzidos quase na divisa com o Espírito Santo. Desde 1995, lá também atracam navios da Costa do Marfim e da Indonésia abarrotados de amêndoas de cacau importadas por fábricas de moagem pertencentes a multinacionais importantes - como a norte-americana Cargill e a suíça Barry Callebaut -, também localizadas em Ilhéus, que abastecem indústrias de chocolate do mundo inteiro.
"Era um orgulho para o produtor chegar a São Paulo ou ao Rio de Janeiro e dizer que trabalhava com esse fruto. Mas, depois da vassoura-de-bruxa, os cacauicultores viraram motivo de piada. Empobrecemos de uma hora para outra", relata Isidoro Gesteira, presidente do Sindicato Rural de Ilhéus.
Os números não deixam dúvida sobre o impacto desse fungo. Na safra recorde de 1984/1985, mais de 400 mil toneladas de amêndoas foram colhidas no país. Porém, em apenas 15 anos, esse índice caiu 60%. Recentemente, graças a técnicas de enxertia que utilizam variedades resistentes à vassoura-de-bruxa, um sistema desenvolvido pela Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), órgão do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, as plantações da Bahia vêm timidamente recuperando o fôlego. Mas nada comparável ao esplendor de décadas passadas.
A doença que ataca as árvores deixando suas folhas com o aspecto de uma vassoura de bruxa definitivamente redesenhou a paisagem local. Os coronéis que mandavam e desmandavam são praticamente página virada. "A agricultura familiar hoje responde pela maior parte da produção", afirma Gustavo Moura, diretor da Ceplac. Além disso, muitos trabalhadores rurais desempregados foram obrigados a buscar emprego nas cidades, inchando importantes centros de turismo das redondezas, como Porto Seguro. Por outro lado, a crise fortaleceu os movimentos que lutam pela reforma agrária e, em certa medida, democratizou o acesso à terra. Diversos assentamentos foram criados em lotes abandonados por grandes fazendeiros falidos. Na opinião de Moura, "a crise também enxugou o perdulário. Só sobraram os profissionais".
Histórico
O cacaueiro é uma espécie nativa das florestas tropicais do continente americano e suas origens são carregadas de mitologia. Para os astecas, tratava-se de uma árvore sagrada, presente divino enviado à civilização que se desenvolveu no México. Já naquela época o cacau se destinava à produção de uma espécie rústica de chocolate - alimento que impressionou os colonizadores espanhóis pelo seu alto teor energético. Guerreiros astecas atravessavam dias sustentando-se apenas com as amêndoas daquele fruto. Por esse motivo, ele foi batizado cientificamente com o nome Theobroma cacao, que quer dizer manjar dos deuses.
No Brasil, o berço do cacau foi a região amazônica, por conta das altas temperaturas e das chuvas abundantes, ideais para o crescimento da planta. Mas, em meados do século 18, a introdução das primeiras sementes no sul da Bahia, oriundas do Pará, escreveu um novo capítulo na história dessa cultura. São vários os motivos que explicam seu florescimento na terra de Jorge Amado. De início, o clima quente e úmido, bastante similar ao do seu habitat original, facilitou o processo de adaptação do cacaueiro, que também precisa da sombra oferecida por árvores de maior porte para sobreviver. "Além disso, não havia uma economia desenvolvida naquela região. Faltavam investimentos maciços desde a época das capitanias hereditárias de Ilhéus e de Porto Seguro", explica Angelina Garcez, historiadora da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Os engenhos de açúcar não vingaram naquela parte do estado e, por essa razão, a floresta nativa ficou praticamente intocada, à espera dos desbravadores que, anos depois, derrubariam a vegetação mais fina para plantar os pés de cacau, resguardados pela proteção da Mata Atlântica.
"No século 19, a região recebeu um grande fluxo de pessoas que fugiam de uma seca muito forte nos sertões da Bahia e de Sergipe. Os migrantes, pessoas humildes e semi-analfabetas, traziam primeiro a família nuclear, depois os parentes mais distantes. O cacau não conheceu a mão-de-obra escrava por ser uma cultura pobre, de agricultura familiar, em pequenas glebas", completa Angelina.
A origem simples e a falta de recursos dos primeiros homens que se aventuraram mato adentro, para formar suas roças, explicam uma outra característica interessante daquela região, visível ainda hoje: o baixo número de latifúndios. Lá não ocorreu o processo de doação de sesmarias, uma das raízes da elevada concentração de terras no Brasil. "Além disso, com pequenas áreas já se têm produtividade e rentabilidade muito boas. A cultura do cacau não tem necessidade de grandes glebas. Por outro lado, a concentração fundiária no sul da Bahia se dá de outra forma: um proprietário pode ter várias fazendas de porte reduzido", afirma Fernando Vargens, chefe da unidade de Itabuna do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A partir de 1860, o cacau brasileiro passou a ser disputado pelas fábricas de chocolate da Europa e dos Estados Unidos. Praticamente toda a safra era exportada, pois não existia o costume de consumir o fruto e seus derivados no país. As primeiras manufaturas nacionais só apareceram na virada do século 19. Foi justamente nesse momento que a cacauicultura viveu seu apogeu. O Brasil ocupou o posto de maior produtor mundial até meados da década de 1920. No mesmo período, a região sul da Bahia assistiu a uma verdadeira guerra entre os fazendeiros. Época em que os poderosos coronéis - descendentes daqueles primeiros humildes desbravadores - não mediam esforços nem violência para expandir seus negócios mediante a apropriação de plantações pertencentes a agricultores menos abastados. "O coronelismo no sul do estado é diferente daquele observado nos engenhos de açúcar ou na pecuária dos sertões, que tinha como força motriz o latifúndio. No caso do cacau, o coronel mais forte era o que produzia mais. Não se comprava terra, mas pés de cacau", relata Angelina.
Velhos problemas
É impossível dissociar a palavra "crise" da história do cacau. Como toda commodity, ele sempre foi refém do temperamento intempestivo dos mercados internacionais. A quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, representou o primeiro golpe na economia agroexportadora da Bahia. Acostumados a acender cigarros em notas graúdas de dinheiro, os coronéis foram levados ao desespero pelas repercussões dos problemas internos dos Estados Unidos - então os maiores importadores da amêndoa brasileira. Como medida de socorro, o governo federal autorizou a criação do Instituto de Cacau do Brasil (ICB), uma espécie de cooperativa que ajudava no financiamento e na comercialização das safras, dois anos após o incidente que desestruturou a economia norte-americana.
Em fins dos anos 50, uma nova queda brusca na cotação do fruto de ouro da Bahia, motivada pela grande produção internacional, provocou a segunda grave crise no setor. Mais uma vez o governo saiu em defesa dos cacauicultores. "A Ceplac foi criada inicialmente para fazer o alongamento das dívidas dos produtores e repactuá-las, devido à importância da lavoura para a economia do estado. Durante esse processo, viu-se a necessidade de estruturar um órgão para modernizar e estimular a região cacaueira. Em 1962, surge então, vinculado à Ceplac, o Centro de Pesquisas do Cacau (Cepec), uma das principais referências de pesquisa sobre essa cultura no mundo", comenta Moura (ver texto abaixo).
Mas, sem dúvida nenhuma, a crise atual, que vem se arrastando há 20 anos, foi a que assumiu proporções mais catastróficas. O preço da tonelada, que chegou a ser negociada a US$ 4 mil no final dos anos 70, atingiu o fundo do poço na primeira metade da década de 90, cotado a US$ 800, o que descapitalizou completamente os cacauicultores. Para piorar a situação, foi justamente nesse período de forte retração econômica que a vassoura-de-bruxa, detectada pela primeira vez em 1989, no município de Uruçuca, manifestou sua capacidade de devastação. Ninguém sabe ao certo como a doença - que é endêmica na região amazônica - desembarcou no sul da Bahia. Os esporos do fungo podem ter sido transportados nas idas e vindas de fazendeiros que também possuíam roças localizadas no norte do país. Há boatos até de uma ação criminosa, com o intuito deliberado de vingança contra produtores da região. O fato é que em poucos anos a vassoura-de-bruxa se espalhou por quase todas as propriedades, curiosamente seguindo o sentido da BR-101, que corta a zona cacaueira.
"Não havia tecnologia nem recursos para tratar a doença. Era muito caro, em função da estrutura regional, baseada na monocultura do cacau. No início, a única forma de controle era a manual, que consistia em remover as partes atacadas das árvores. Mas se um fazendeiro fizesse isso, e o seu vizinho não, de nada adiantava", explica o sociólogo Salvador Trevisan, professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). O preço dos imóveis rurais também despencou. "Uma fazenda de 150 hectares, pela qual meu avô havia pago US$ 800 mil, não valia R$ 150 mil depois da disseminação do fungo. Não vendi por esse dinheiro porque achava uma loucura. Apesar da crise, sempre acreditei no cacau", conta Gesteira.
Em 1995, para acalmar os nervos dos produtores, o governo federal lançou o Programa de Recuperação da Lavoura Cacaueira Baiana, com recursos endereçados à luta contra a vassoura-de-bruxa, dividido em quatro etapas. Em cada uma delas, cacauicultores de todos os portes deveriam elaborar projetos para combater a doença em suas roças, feitos com o auxílio dos profissionais da Ceplac, e cujo financiamento seria analisado pelas instituições oficiais autorizadas a liberar o dinheiro. Ao todo, nesses quatro momentos, cerca de 10 mil projetos foram aprovados pelo Banco do Brasil, que desembolsou R$ 228 milhões. Os grandes, que respondem por apenas 310 pedidos, ficaram com mais de 20% dos recursos.
A vassoura-de-bruxa só começou a ser efetivamente domada nas duas últimas etapas, com o investimento na técnica conhecida entre os produtores como "clonagem", mas que na verdade não passa de um simples processo de enxertia de hastes de árvores resistentes à doença em plantas vulneráveis aos ataques do fungo. Entretanto, a meta de "clonar" 300 mil hectares de plantação, metade da área total de cacau no sul da Bahia, não foi alcançada. A Ceplac estima que 50% da proposta inicial tenha sido cumprida.
Com o vencimento das primeiras parcelas dos recursos emprestados, os cacauicultores - principalmente os de maior envergadura - vêm renegociando na capital federal os prazos para o pagamento de suas dívidas. Eles alegam que não houve tempo suficiente para a produção recuperar o vigor e, por esse motivo, ainda não têm condições de quitar seus débitos. "Essa história é velha. Eles sempre chegam a um ponto em que não conseguem pagar e aí negociam com o governo, que dá o perdão. Um benefício, porém, que só os grandes conseguem. Os pequenos nunca são contemplados com esse tipo de medida na agricultura", afirma Trevisan.
Crise para uns
Antes de partir para Ilhéus, a fim de modernizar a administração das fazendas de cacau pertencentes à família de sua esposa, Fernando Botelho recebeu um revólver do pai, que, com a voz embargada pelo choro, só conseguiu dar um conselho ao filho que se aventuraria naquelas terras repletas de histórias violentas: "Cuide-se". O avô de sua mulher, coronel Ramiro Aquino, era bastante conhecido na região e já tinha até sido citado na literatura de Jorge Amado. "Mas ele era tranqüilo. Não tomava terra de ninguém", assegura Botelho. Nascido e criado no Rio de Janeiro, com formação em engenharia mecânica, ele tinha planos de ficar no máximo dois anos no sul da Bahia. Entretanto, tomou gosto pela cacauicultura e já está por lá há 32. É o atual presidente do Sindicato Rural de Barro Preto, município com pouco mais de 7,5 mil habitantes.
Até 1985, Botelho e outros grandes fazendeiros não tinham do que se queixar. Era prática comum, por exemplo, que fábricas de processamento de amêndoas pagassem antecipadamente pela produção - algo equivalente a comprar um bezerro na barriga da mãe. Assim, eles ganhavam fôlego para honrar seus compromissos no período conhecido como "paradeiro", reservado à limpeza e manutenção das roças, que vai de janeiro a abril. De maio em diante, nascem frutos dos pés quase sem interrupção, mas a safra principal só começa a partir de agosto. "Qualquer outro produto comparado ao cacau trazia um lucro irrisório. Não havia como mudar o foco", conta Botelho. Contudo, pouco tempo depois ele sentiria no bolso os riscos implícitos em qualquer atividade de monocultura. Escritórios em Itabuna, apartamento em Salvador, uma fazenda de gado e outra de cacau - de tudo isso Botelho foi obrigado a se desfazer quando a vassoura-de-bruxa atacou suas plantações.
A produtividade da São José, sua fazenda em Barro Preto, é um bom termômetro do declínio no padrão de vida de produtores de médio e grande porte como ele, desde a fulminante aparição do fungo. Em 1979, de cada um dos 212 hectares do imóvel - onde trabalhavam 120 pessoas - saíam quase 65 arrobas de cacau por ano. Hoje, esse índice não chega a sofríveis 20 arrobas, e a fazenda tem 18 funcionários. Depois de 1985, Botelho foi obrigado a apertar o cinto e abrir mão de carros do ano e viagens ao exterior. "Não sei da vida dos outros, mas deve haver gente que ficou em situação pior", avalia.
O engenheiro carioca foi um dos cacauicultores contemplados pelo programa lançado em 1995 pelo governo federal. Nas duas primeiras etapas juntas, Botelho tomou emprestados cerca de R$ 200 mil. E, somando a terceira e a quarta, o volume de recursos repassados a ele pelo Banco do Brasil mais do que dobrou. Porém, a pedra no sapato dos produtores são as dívidas referentes justamente às duas primeiras etapas. As recomendações iniciais dos técnicos da Ceplac para o combate à vassoura-de-bruxa, que consistiam basicamente no rebaixamento da copa dos cacaueiros, não surtiram o resultado desejado. "Quando se cortava a árvore, ela sentia necessidade de se proteger do sol e lançava mais brotos e folhas. Esses tecidos novos são justamente a área onde o fungo mais ataca. Estamos endividados por conta de um dinheiro que não resolveu o problema, e a maioria das propriedades ficaram hipotecadas. Vamos perdê-las para o Banco do Brasil - que será, finalmente, o único latifundiário da região cacaueira", afirma, indignado, Isidoro Gesteira.
Nas terceira e quarta etapas, iniciadas há pouco menos de cinco anos, o combate à vassoura-de-bruxa deu uma guinada de 360 graus, com a adoção das técnicas de enxertia. "O problema é que os novos galhos ainda não tiveram tempo hábil para crescer e produzir. Na minha fazenda, por exemplo, só 20% da produção é de cacau ‘clonado’", afirma Botelho. "Durante muitos anos, o governo do estado se encostou na Ceplac, que realizava diversas obras públicas com o nosso dinheiro. Hoje o que é oferecido em retribuição? Uma banana", desabafa.
O deputado federal Josias Gomes (PT-BA) encampou a causa dos cacauicultores do sul da Bahia, e pediu à Ceplac que fizesse uma nota técnica reconhecendo os erros cometidos nas duas primeiras etapas. "Com base nesse documento, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, sugeriu uma prorrogação de seis meses para a cobrança das dívidas", explica Gomes. Durante esse período, uma comissão instalada no Ministério da Agricultura terá a missão de mediar as negociações entre produtores e governo. "Muitos cacauicultores partem do princípio de que a Ceplac propôs algo que não deu certo e, dessa forma, o correto seria perdoar a dívida das duas primeiras etapas, que chega a quase R$ 180 milhões. A culpa é do governo também, e ele precisa assumir essa responsabilidade", conclui o deputado.
Solução para quem?
Maria do Carmo dos Santos, a Carminha, cresceu rodeada por pés de cacau, fazendo a limpeza das roças durante a entressafra, quebrando os frutos que colhia das árvores, separando as amêndoas da polpa esbranquiçada, pisando as sementes que secavam nas barcaças. Sua família perambulou por diversas cidades do sul da Bahia, empregada por patrões que, via de regra, nunca respeitaram os benefícios trabalhistas a que teria direito. A lavoura do cacau, por ser permanente, absorve uma grande quantidade de mão-de-obra e, no cotidiano de uma fazenda, tudo é feito pelos braços de homens e mulheres, como há um século. Não existe espaço para a mecanização, e o lombo das mulas ainda é o transporte por excelência.
Estima-se que 200 mil pessoas tenham perdido o emprego em decorrência da crise mais recente da cacauicultura baiana. Porém, além do previsível êxodo rural, nos últimos 15 anos também se observou uma crescente organização dos movimentos de luta pela terra. Carminha tentou a sorte como empregada doméstica, mas o sonho de tocar o próprio lote lhe deu a motivação necessária para agüentar três anos acampada sob uma lona preta, até que a Fazenda Boa Lembrança, em Itabuna, fosse considerada improdutiva e desapropriada pelo Incra. Na parte que lhe coube - 6 hectares - Carminha planta mandioca, algumas hortaliças e várias frutas. Mas o cacau sozinho ocupa metade da área. Com recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), ela comprou 3 mil mudas resistentes ao fungo amazônico, e espera vê-las produzindo daqui a poucos anos.
"A vassoura-de-bruxa é a madrinha da reforma agrária aqui na região", define Júlia Oliveira, coordenadora da Federação dos Trabalhadores na Agricultura no Estado da Bahia (Fetag-BA). Prova disso é que, dos 113 assentamentos localizados naquela área, onde residem aproximadamente 6 mil famílias, a esmagadora maioria foi criada na década de 90 em grandes fazendas abandonadas por proprietários descapitalizados. Justamente porque o principal gasto para fazer a manutenção de uma roça de cacau e, conseqüentemente, o melhor remédio para combater a vassoura-de-bruxa, ainda é a mão-de-obra. Mas isso os assentados têm de sobra. "A agricultura familiar tem tudo para fazer com que a cacauicultura possa se reerguer numa outra base econômica", analisa Fernando Vargens, do Incra.
Além do pagamento de uma dívida histórica com os explorados trabalhadores rurais - 8 mil famílias ainda aguardam pelo lento e burocrático processo de desapropriação de fazendas pelo governo, no sul da Bahia -, as autoridades precisam encarar outros dois grandes desafios: a recuperação e a diversificação da produção. "Com o cacau não existe ‘embeleco’", explica Roque Coutinho, um dos agricultores do assentamento Nova Vitória, em Ilhéus. Ele quer dizer que, com um punhado de amêndoas no bolso ou um caminhão transbordando de sacas, é impossível não achar comprador. "E as fábricas de moagem pagam de imediato. Não é como o boi, que o dono leva 30 dias para receber. Mesmo com toda a crise, a liquidez se manteve", completa Isidoro Gesteira.
A facilidade de venda das amêndoas é uma das razões que justificam essa espécie de obsessão pelo cultivo do cacau, um traço cultural que não faz distinção entre pequenos e grandes produtores no sul da Bahia. Alguns fazendeiros até apostaram no café. Outros aumentaram suas áreas de pecuária. O cultivo de frutas, como a banana e o cajá, também acenou com a possibilidade de brigar pelo seu espaço. Mas a falta de investimentos substanciais em outras culturas esbarra numa mudança de mentalidade que não se processa de uma hora para outra.
"A lavoura do cacau perdeu sua importância econômica, mas tem um papel muito relevante para a geração de emprego e para a preservação da Mata Atlântica", pondera Gustavo Moura. Esse fruto que moldou a identidade de uma parte expressiva da Bahia parece ter cumprido sua função histórica como importante commodity e, há quase duas décadas, a economia da região sul do estado atravessa as turbulências que todo sistema baseado na monocultura de exportação está fadado a enfrentar. Porém, de trabalhadores que se transformaram em sem-terra a grandes produtores que ainda resistem à forca das dívidas, todos clamam por uma merecida atenção do governo. Resta saber de que maneira esse socorro virá e a quem ele irá de fato beneficiar.
Para turistas
Desde o verão de 2004, Gérson Marques vem apostando no turismo rural, atividade consolidada em estados do sul do Brasil e em países da Europa, como alternativa para driblar a crise na região cacaueira. Na sua Fazenda Yrerê, localizada na rodovia que liga Ilhéus a Itabuna, os visitantes conhecem toda a dinâmica de uma roça de cacau pagando um ingresso de R$ 10. No ano passado, cerca de mil pessoas passaram pela propriedade de Marques, que também é produtor.
Em 1996, ele encontrou o imóvel de 100 hectares - que lhe custou R$ 90 mil - completamente abandonado, bem na época em que a vassoura-de-bruxa fez os preços das fazendas na região despencarem. Hoje, a mesma área vale pelo menos seis vezes mais. "A crise está quebrando os velhos paradigmas e questionando essa visão de auto-suficiência da cacauicultura", afirma.
Nova missão
Dizem que, na época em que o cacau ainda representava um dos pilares da economia baiana, o cargo de diretor da Ceplac tinha status semelhante ao posto de ministro ou governador. O motivo é simples: ele administrava um gordo orçamento mantido com 10% de todas as exportações do cacau, que já chegaram à casa dos bilhões de dólares. Atualmente, o órgão tem uma fatia no bolo do orçamento federal. Com tanto dinheiro assim, a Ceplac acabou assumindo funções que caberiam ao próprio estado, criando escolas e hospitais, construindo pontes e estradas para escoar a produção. Tudo em nome da cacauicultura. Bancou também a maior parte das sedes dos sindicatos rurais - que reúnem os grandes produtores -, apesar de não estender o agrado às associações dos trabalhadores.
Hoje, com o declínio do poder político e econômico dos fazendeiros, a Ceplac já não tem a mesma imponência de anos atrás. Mas, com a chegada do fungo da Amazônia, ela assumiu um papel central no combate a essa praga e representa a principal esperança de recuperação da lavoura. Nos laboratórios do Cepec, que emprega 70 pesquisadores das mais diversas áreas, são desenvolvidos estudos de ponta, como o seqüenciamento genético do DNA da vassoura-de-bruxa, por exemplo. Além disso, um corpo com mais de 200 técnicos e agrônomos tem a missão de fazer chegar essas informações até os produtores. Atualmente, uma das principais metas do órgão, segundo o diretor da Ceplac, Gustavo Moura, "é organizar cooperativas e levar até elas o conhecimento da agroindustrialização, a fim de agregar valor às commodities".
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