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Remédio verde
Rico em plantas medicinais, país não apóia produção e pesquisas
NILZA BELLINI
Sabrina Jeha e sua plantação / Foto: Nilza Bellini
O clima é propício, o solo é rico e as experiências de cultivo de ervas e especiarias feitas no Brasil são bem-sucedidas. Apesar disso, segundo o engenheiro agrônomo Cirino Corrêa Júnior, o país ainda importa bem mais do que exporta plantas medicinais, aromáticas e condimentares. Ele é um dos autores da mais completa pesquisa realizada até agora no Brasil sobre o tema, o "Estudo do Complexo Agroindustrial de Plantas Medicinais e Aromáticas do Estado do Paraná - Diagnósticos e Perspectivas". E garante que a balança poderia pender para o Brasil, se fossem adotadas políticas de incentivo e de aproximação entre produtor e comprador, como as que têm sido desenvolvidas pela Empresa Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-Paraná).
"Um hectare de ervas é bastante rentável e corresponde, em valor bruto, ao que é produzido em 10 hectares de milho, por exemplo", diz Corrêa Júnior, que é responsável pela área na Emater-Paraná. "Mas não estimulamos a produção sem que os agricultores tenham compradores para suas safras", ressalta.
Hoje, o Paraná responde por 90% da produção nacional. O estado abriga mais de mil pequenas propriedades rurais que cultivam, em cerca de 2,7 mil hectares, mais de 70 das espécies botânicas utilizadas pelas indústrias farmacêutica, de cosméticos, de corantes, de chás e de bebidas, além do mercado a granel. Em valor bruto, essa produção rende aproximadamente R$ 19 milhões anuais. Somado ao que é auferido com as variedades coletadas nas matas paranaenses - cerca de 2,6 mil toneladas -, esse montante salta para mais de R$ 22 milhões. A camomila está entre as espécies mais cultivadas, e também o gengibre, cuja exportação alcança o impressionante índice de 95% da produção.
Corrêa Júnior destaca três principais fatores para a cultura ter dado certo em seu estado. O primeiro são as características de clima e solo, o que pode ser comprovado pela exuberância das espécies nativas, como espinheira-santa, carqueja e chapéu-de-couro, antes coletadas em matas de araucária, e hoje também cultivadas. O segundo fator foi a atuação dos imigrantes, sobretudo poloneses, alemães e italianos, que há mais de cem anos trouxeram da Europa sementes, como as da camomila, e ajudaram na sua aclimatação. Finalmente, há a forte atuação da Emater-Paraná, com seus programas de alternativa de renda para pequenos proprietários, especialmente direcionados à agricultura familiar.
O Centro Paranaense de Referência em Agroecologia da Emater, no município de Pinhais, trabalha com mais de 160 variedades. Ali são ministrados cursos a produtores, uma vez que, segundo Corrêa Júnior, é preciso entender as complexidades do cultivo. "A quantidade de potencial ativo da planta depende do manejo correto. Por exemplo, as camomilas encontradas no mercado apresentam, em média, cerca de 0,2% de óleo essencial. Mas, com o emprego de técnicas corretas, conseguimos elevar o teor, chegando a cerca de 0,8%, ou seja, obtemos uma camomila muito mais potente", diz ele.
Corrêa Júnior admite sentir-se incomodado quando pessoas sem tradição agrícola se aventuram no cultivo de plantas medicinais em pequenas propriedades. Segundo ele, muitas vezes, variedades disponíveis no mercado são de baixo padrão por falta de cuidados básicos, especialmente durante a colheita e a pós-colheita. Por essa razão, o centro experimental da Emater- Paraná é dotado também de infra-estrutura para ensinar esses complexos processos. "Corte, separação e secagem exigem técnicas apuradas", diz o agrônomo.
Não é incomum encontrar entre as plantas sujeira grossa, como insetos, pêlos, material estranho de todo tipo, além de contaminantes microbiológicos. "Esse problema não é devido apenas ao produtor, mas também ao comprador, que, para obter maior lucro, não exige qualidade", alerta Corrêa Júnior.
O custo da matéria-prima gira em torno de 3% do preço final de um remédio produzido a partir de plantas secas ou de seu princípio ativo, por exemplo. "Bastaria que a indústria pagasse apenas 1% a mais para obter plantas de extrema qualidade", afirma Corrêa Júnior, que estima haver no Brasil cerca de 300 médios e grandes compradores. A margem de lucro também cresce para ambos, destaca o agrônomo, se o contato entre produtor e comprador for direto.
A maioria das indústrias e farmácias, no entanto, fazem suas compras de atacadistas, que efetuam a limpeza e a embalagem dos produtos. Outras, como a tradicional Farmaervas - que funciona desde 1940 e exporta para Japão, Portugal e Estados Unidos -, têm cultivos próprios ou adquirem no exterior os insumos que utilizam. Segundo Waldomiro Paulino, diretor da empresa, numa fazenda experimental de 90 hectares, localizada em Bragança Paulista, distante 100 quilômetros de São Paulo, são realizados experimentos com cerca de cem variedades, entre nativas e aclimatadas.
Já as mercadorias de atacadistas como a Quimer Ervas e Especiarias passam por processos de análise microbiológica e de poluentes, como metais pesados. Elias Adas Neto, farmacêutico industrial responsável pelo laboratório de controle de qualidade da empresa, diz que as exigências variam, pois dependem de cada finalidade. "As farmácias e indústrias reconfirmam a especificação do produto posteriormente, em seus laboratórios", diz.
Cuidados essenciais
Seria de imaginar que a tradição do uso de plantas medicinais fosse se perder com a crescente urbanização, mas não é o que parece estar acontecendo. Na Avenida Nadir Dias de Figueiredo, na Vila Maria, zona norte de São Paulo, as ervas cultivadas num terreno de mil metros quadrados espalham um aroma agradável que contrasta com o ar poluído das imediações. Propriedade das irmãs Silvia e Sabrina Jeha, o viveiro Sabor de Fazenda - com capacidade para 12 mil mudas de mais de 90 diferentes espécies - tem as mesmas características de um quintal centenário, daqueles que eram comuns nas cidades do interior, em que benzedeiras e curandeiros iam buscar remédios para tratar males como verminose, bronquite, nervosismo, insônia, doenças de pele, queda de cabelo ou, no caso dos mais supersticiosos, até "mau-olhado". O viveiro atrai, além de clientes saudosistas, muitos paisagistas. "Usar plantas aromáticas em pequenos canteiros ou jardins é uma tendência atual", afirma Sabrina.
As vantagens da utilização de ervas medicinais têm sido também difundidas pela Pastoral da Criança, cujo projeto Remédios Caseiros tem como objetivo iniciar mães e demais familiares nesses conhecimentos. A dona-de-casa Tereza Jesus da Silva, de 52 anos, é uma das multiplicadoras dessa ação, na região do Taboão da Serra, um dos municípios mais carentes da Grande São Paulo. "Cultivamos hortas com plantas medicinais em seis das 64 paróquias da Diocese de Campo Limpo, que inclui Taboão da Serra", diz ela. A população local, que apresenta alta incidência de verminoses, resfriados e doenças de pele, é orientada por lideranças que freqüentam essas paróquias a produzir xaropes, pomadas, sabonetes e geléias à base de ervas.
Como observa o professor Pedro Melillo, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é necessário, no entanto, estabelecer a posologia adequada, mesmo no caso de espécies de eficácia comprovada pelo uso tradicional. Devido a seu alto grau de toxicidade, algumas plantas podem causar graves acidentes, como a erva-de-santa-maria, normalmente utilizada como vermífugo.
Roberto Boorhem, atual presidente do Instituto Brasileiro de Plantas Medicinais, explica que não existe normatização por parte dos Conselhos de Medicina para a prescrição de drogas à base de plantas. Especializado na China em Fitoterapia e Medicina Tradicional Chinesa, ele alerta que esse fato possibilita equívocos, como os que podem ocorrer nas fórmulas que combinam drogas sintéticas e extratos vegetais, receitadas em geral para perda de peso.
Outro risco grave é o usuário confundir variedades com formas e aromas semelhantes. "Isso pode gerar problemas, no caso das terapias naturais", alerta o agrônomo Marcos Furlan. Professor com doutorado em óleos essenciais do manjericão, ele também ministra cursos básicos de curta duração na Associação de Agricultura Orgânica (AAO), de São Paulo. Ali, o primeiro passo é aprender a identificar corretamente diferentes espécies.
Sem atentar muito para essas questões, um número não calculado de brasileiros continua a consumir plantas em chás ou infusões na tentativa de curar seus males. A maioria desses usuários pertence às classes C e D. Muitos vão buscá-las em feiras populares, onde camelôs, como o alagoano Eduardo Alves, vivem do lucro da venda de folhas e raízes secas, embaladas em saquinhos rústicos. "Meu pai vende plantas há 38 anos", diz ele. Seus produtos, sem origem definida ou indicação específica, não assustam fregueses como José Cardoso, de 41 anos, que adquire ervas de Alves para preparar chás.
Há também farmácias especializadas, como As Plantas Curam, onde é possível encontrar mais de mil preparados vegetais com base em álcool de cereais, todos isentos de registro, segundo a rotulagem das garrafas. De acordo com André Affonso dos Santos, farmacêutico responsável, o estabelecimento oferece ainda mais de 300 espécies de folhas ou cascas secas, compradas de atacadistas.
Fitoterápicos
Além dos preparados caseiros, as plantas medicinais são usadas também na elaboração de fitoterápicos - remédios produzidos a partir de matérias-primas exclusivamente vegetais, e cuja comercialização depende de registro de marca concedido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
No Brasil, a classificação de medicamentos como fitoterápicos é recente, surgiu apenas em 1995. Como a obtenção do registro na Anvisa requer uma série de procedimentos complexos, idênticos aos exigidos para remédios sintéticos, a Associação das Empresas do Setor Fitoterápico, Suplemento Alimentar e de Promoção da Saúde (Abifisa) busca alternativas para minimizar essas dificuldades. Para isso, encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta com disposições sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os produtos de "origem natural". A partir dessa sugestão, foi elaborado um projeto de lei, cuja relatora é a deputada Luiza Erundina, que propõe criar uma nova classificação - intermediária entre alimentos e medicamentos - para os fitoterápicos.
"A Organização Mundial da Saúde (OMS) vem de longa data recomendando, no tratamento de doenças leves da população, a utilização de terapias não convencionais, hoje denominadas complementares, dentre elas a fitoterapia", diz Magrid Teske, presidente da Abifisa. "Queremos diferenciar o fitoterápico - produto derivado da planta medicinal inteira - do fitomedicamento - produto elaborado com princípios ativos isolados, que nem sempre apresenta a mesma eficácia que o fitocomplexo integral, podendo até mesmo aumentar a incidência de efeitos colaterais", explica. "Se o projeto de lei for aprovado, a demanda por plantas medicinais vai estimular o cultivo e favorecer pequenos agricultores", diz Magrid. A proposta é polêmica e ainda não tem o aval da Anvisa. "Só vamos nos manifestar na hora certa", diz Edmundo Machado Neto, técnico da agência.
Independentemente dessa discussão, o Ministério da Saúde, por meio da Política Nacional de Medicina Natural e Práticas Complementares (PMNPC), pretende tornar disponíveis plantas medicinais e fitoterápicos nas unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) em todo o país.
Rica diversidade
Tema de um controvertido sucesso das livrarias - o livro Medicina Alternativa de A a Z, que, apesar de denunciado como fraude, se mantém desde 2004 na lista dos mais vendidos no país -, as propriedades medicinais das plantas são também motivo de estudos sérios e vêm despertando crescente interesse entre os cientistas.
Grandes universidades brasileiras mantêm centros de pesquisa para a produção de medicamentos com base em vegetais, e cerca de 5 mil trabalhos sobre o tema já foram publicados. Além disso, é cada vez maior o investimento da indústria farmacêutica e das empresas de biotecnologia nas investigações de princípios ativos ainda inexplorados.
Apesar disso, estudiosos do potencial de plantas genuinamente brasileiras ainda enfrentam dificuldades. A diversidade genética vegetal do país é uma das maiores do mundo - inclui mais de 55 mil espécies catalogadas, de um total estimado entre 350 mil e 500 mil. Embora não se saiba ao certo quantas delas têm propriedades valiosas para a saúde, as pesquisas de espécies nativas estão praticamente paralisadas, "por conta de uma burocracia maluca implantada pelo Ministério do Meio Ambiente", revela Elisaldo Luiz de Araújo Carlini, professor titular de Psicofarmacologia do Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Um dos mais respeitados pesquisadores da área, Carlini dirige pesquisas de farmacologia e toxicologia pré-clínicas na Unifesp, que enfocam diferentes tipos de plantas com ação sobre o sistema nervoso central. A importância dos estudos desenvolvidos, porém, não tem encontrado o devido reconhecimento por parte da burocracia oficial. "O Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), do Ministério do Meio Ambiente, trata todos os solicitantes indiscriminadamente e estabeleceu tantos critérios para a aprovação de projetos que tornou quase impossível dar continuidade aos trabalhos", reclama o professor.
Alex Botsaris, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Plantas Medicinais, tem a mesma opinião. Para ele, o CGEN, a quem cabe o papel de regular o acesso à biodiversidade, se transformou num megagargalo, capaz de praticamente inviabilizar o trabalho de cientistas, sobretudo por não manter bancos de dados com resultados de pesquisas já realizadas com espécies brasileiras. "Na tentativa de proteger o patrimônio nacional, o CGEN cria muitas dificuldades, que são no entanto facilmente superáveis por pesquisadores estrangeiros", diz ele. "Também são insignificantes as verbas governamentais destinadas ao setor."
Já a iniciativa privada investe em parcerias com a área acadêmica. A Unicamp mantém, no Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas, um viveiro com 350 espécies, bastante utilizado por moradores locais e de cidades vizinhas que necessitam identificar ervas que crescem em seus quintais. Mas o foco principal do centro, dirigido por Pedro Melillo, é elevar os teores de princípios ativos, com a finalidade de obter variedades mais ricas. Boa parte das pesquisas desenvolvidas ali é encomendada pelo setor farmacêutico. Na Unicamp já foi possível tornar mais potente, por exemplo, a quebra-pedra, da qual é extraída a filantina, usada na produção de um medicamento indicado para o tratamento da hepatite B.
Melillo faz ainda um esclarecimento importante: "Ninguém pode patentear uma planta. O que se patenteia é o nome ou a fórmula de um medicamento". Assim, mesmo quando multinacionais produzem remédios com base em plantas brasileiras, nada impede que novas pesquisas sejam realizadas a partir da mesma espécie. O que não deixa de ser uma boa notícia para usuários e cientistas.
Um curativo à base de látex
A indústria brasileira de biotecnologia ainda é pouco representativa no cenário mundial. Mas já tem produzido medicamentos eficazes, por preço reduzido, a partir do princípio ativo de plantas. É graças a um material natural derivado do látex, por exemplo, que lesões crônicas, como úlceras na pele que resistem aos tratamentos convencionais, podem agora ser medicadas. Basta que essas feridas sejam cobertas por um curativo originado do polímero vegetal do látex. Constituído de uma "biomembrana" fina, elástica, translúcida, de fácil manuseio, esse curativo induz a um processo chamado pelos cientistas de neoangiogênese, ou seja, a produção de novos vasos sanguíneos, capazes de ajudar a multiplicação de células para a cicatrização.
Os polímeros são moléculas muito grandes, formadas por unidades moleculares que se repetem, denominadas monômeros. O processo pelo qual os monômeros se unem para dar origem ao polímero recebe o nome de polimerização. Existem muitos polímeros naturais. Assim, por exemplo, a celulose é um polímero da glucose que se encontra nas plantas.
Já o polímero do curativo feito à base de látex, batizado de Biocure, é obtido por meio de uma reação química. Além disso, ele é submetido a processos que garantem sua condição estéril, pois o látex, se ingerido ou utilizado in natura, é tóxico e pode provocar dor e queimação, irritação das mucosas, edema, náuseas e vômito. A polimerização e os outros processos dão à membrana uma geometria particular, capaz de garantir a aderência protéica e celular da pele ferida e, conseqüentemente, estimular a cicatrização.
"O único produto similar existente no mercado é norte-americano e custa cerca de 50 vezes mais", esclarece Ozires Silva, diretor da Pelenova Biotecnologia, responsável pela fabricação do produto. "O Biocure só não pode ser utilizado em feridas causadas por câncer ou no caso de pessoas com alergia ao látex", explica.
A eficácia do curativo foi verificada por meio de estudos clínicos realizados em algumas das faculdades de medicina mais conceituadas do país e que envolveram desde a análise da hipersensibilidade ao produto até a avaliação do tratamento de úlceras de pernas, típicas de pacientes diabéticos. Os resultados foram positivos na grande maioria dos casos. Encontra-se em fase de experimentação com animais outra importante aplicação do Biocure, em próteses para substituição de esôfago.