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A Constituição de 1988
Faltou um esboço prévio
JOSÉ BERNARDO CABRAL
José Bernardo Cabral
Foto: Gabriel Cabral
O ex-senador José Bernardo Cabral, relator da Comissão de Sistematização e relator-geral da Constituição de 1988, esteve presente no dia 3 de março de 2005 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, onde proferiu uma palestra que teve como tema essa Carta.
Publicamos abaixo a íntegra da palestra. O debate que se seguiu pode ser lido na edição impressa da revista.
Vamos começar pela Assembléia Constituinte. Por que ela é convocada? Antes de chegar à Constituição de 1988, com todos os seus defeitos e exageros, vamos voltar ao passado. É bom que se diga que tivemos poucas Cartas oriundas de uma Assembléia Nacional Constituinte. A primeira foi a de 1824, no Império, decorrente de um trabalho que tinha sido elaborado por uma comissão de alto nível. Então veio a de 1891, originária da cultura constitucional de 1889. Em seguida, tivemos a de 1934, depois que São Paulo deu um exemplo ao país com a Revolução Constitucionalista de 1932. Tivemos a de 1946, porque a de 1937 foi, todos sabem, outorgada por Francisco Campos, o Chico Ciência, apreciando o texto da Constituição da Polônia, razão pela qual ficou conhecida como polaca, e durou pouco, apesar de quase perfeita, como dizia um constitucionalista. A de 1967 também foi feita pelo Congresso, não derivada de uma Assembléia Nacional Constituinte originária. E depois veio a emenda constitucional número 1 de 1969.
Observe-se que uma Assembléia Nacional Constituinte só existe quando há a ruptura da ordem institucional. Em 1824, por exemplo, foram rompidos os grilhões com Lisboa. A de 1891 decorreu da proclamação da República. Em 1934, aconteceu a Assembléia Nacional Constituinte porque em 1930 não ocorreu a tomada de posse do presidente eleito. E a de 1946 veio com a queda de Getúlio, quando houve nova ruptura institucional. Por que então a Constituição de 1988? Porque em 1964, queiramos ou não, houve a deposição de um presidente, João Goulart. E em 1969, com o ato institucional número 5, a ruptura foi clara, sem dúvida nenhuma. Daí a exigência da Assembléia Nacional Constituinte, que veio no bojo de uma promessa de Tancredo Neves, e foi convocada, após sua morte, pelo presidente José Sarney.
Por que a Constituição de 1988 tem defeitos, deficiências e exageros? Porque todas as anteriores, oriundas de Assembléia Nacional Constituinte, tiveram um esboço prévio. O da Carta de 1988 foi feito pela Comissão de Notáveis, que se reunia no Itamaraty, presidida por Afonso Arinos de Melo Franco. Ele propunha que fosse estabelecido no país o sistema parlamentarista de governo, mas Sarney, como presidencialista, não aceitou.
A Constituição de 1988 partiu, então, do nada. Ulysses Guimarães, eleito presidente da Constituinte, reuniu alguns participantes que seriam encarregados de fazer o esboço, como nas Constituições anteriores. Aí ocorreu o primeiro choque, pois se dizia que teríamos constituintes de primeira linha e de segunda linha, o que hoje se chama de baixo clero. A discussão foi muito grande, porque apenas alguns - 80 - seriam agrupados, ocorrendo uma sobra expressiva de parlamentares. Como resolver o impasse? Hoje vemos que a Constituição brasileira é composta de oito títulos. Foram criadas oito comissões temáticas, cada uma delas subdividida em três subcomissões, com uma Comissão de Sistematização. Os dois maiores partidos eram o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), com maior número de constituintes, e depois o Partido da Frente Liberal (PFL). Os líderes dessas agremiações combinaram entre si que, quando uma tivesse a presidência da comissão temática, o relator seria da outra, e assim sucessivamente nas subcomissões. Na de Sistematização, composta por 93 membros, a presidência coube ao senador Afonso Arinos. Como ele era do PFL, o PMDB tinha direito a indicar o relator. Acontece que Tancredo tinha um compromisso com o líder do PMDB na Câmara, o deputado Pimenta da Veiga, e Ulysses tinha um compromisso com o senador Fernando Henrique Cardoso, líder do PMDB no Senado. O terceiro pretendente era este modesto palestrante. Disse a Ulysses Guimarães que não era possível dar a relatoria a um sociólogo, que, apesar de seus méritos e de sua inteligência, não era afeito aos problemas constitucionais. E Pimenta da Veiga nessa altura tinha apenas quatro anos de formado, em prejuízo de alguém como eu, que tinha sido professor de direito constitucional e presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Diante do impasse sugeriu-se que se fizesse a escolha na bancada, pelo voto, o que foi aceito. Fernando Henrique tinha 30 deputados no partido por São Paulo, Pimenta da Veiga 36 e eu só três, mas acabei escolhido relator da Comissão de Sistematização.
Quanto à Constituição, é preciso voltar um pouco ao passado para saber como foi escrita. Tínhamos de um lado deputados federais eleitos que haviam sido banidos ou presos. De outro, os chamados direitistas. No meio, uma porção de pessoas mais equilibradas. Quando as matérias saíam das comissões temáticas, havia teses superpostas, repetições. Lembro-me de que chegaram à Comissão de Sistematização mais de 2,8 mil artigos para o texto constitucional, os chamados projetos. E emendas deste tipo: "Todas as viaturas federais serão pintadas de uma só cor. Lei complementar decidirá qual a cor". Uma incrível banalidade. Outra: "Homens e mulheres são iguais em direitos, etc., exceto nos dias da menstruação". Não queiram saber o sofrimento para impedir que isso entrasse na Constituição, para reduzir de 2,8 mil artigos para 245. Ficou uma Carta longa mesmo assim. Ela tem defeitos, e muitos. Na área econômica foi um desastre. Quanto à reforma agrária, ficou muito pior do que o estatuto que vinha do governo militar.
Uma das coisas que me deixou muito triste foi que, na Comissão de Sistematização, capitaneados por uma emenda de Afonso Arinos, aprovamos o parlamentarismo, mas, quando o assunto chegou ao plenário, houve uma guerra e derrubaram o sistema parlamentarista. Na oportunidade lembro-me de ter dito a um presidencialista: "Vocês acabam de aprovar o sistema presidencialista de governo, então extirpem o instituto da medida provisória, senão a Constituição vai ficar caolha. Presidencialismo com a medida provisória será um desastre, porque o presidente da República substitui o Congresso e passa a legislar, mesmo com a ressalva de que seria preciso que houvesse relevância e urgência". Não mexeram nisso e é evidente que todos os presidentes a partir de então foram editando medidas provisórias. O primeiro fez uma jogada inteligente: foi ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que este interpretasse se as medidas eram auto-aplicáveis e o STF disse que não, que poderiam ser reeditadas. Assim acabaram editando medidas provisórias e reeditando-as, embutindo nas reedições texto que não fazia parte do original.
Na votação do primeiro turno, em julho de 1988, tivemos 1.834 emendas e 38 sessões, realizadas num total de 142 horas e dez minutos. Nos corredores as pessoas afluíam, com emendas populares, os lobbies, alguns legítimos, de toda sorte. No final tivemos 330 sessões plenárias em 309 dias. As comissões temáticas e as subcomissões trabalharam 1.109 horas. A de Sistematização, 263 horas. O plenário, 1.304 horas e 16 minutos. Total de emendas apresentadas: 62.160. Examinei pessoalmente, uma a uma, 40.813.
Hoje vemos algumas restrições que são absolutamente procedentes. Uma delas: o mundo mudou. Em 1987, ainda havia o Muro de Berlim e uma dicotomia clara entre os sistemas comunista e capitalista. Depois da promulgação da Constituição, o regime comunista foi por água abaixo, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas desapareceu, assim como as fronteiras ideológicas. Hoje elas são econômicas, um país mais forte procurando subjugar os mais fracos, e daí a globalização da economia. Se soubéssemos disso em 1988, é claro que não teríamos aprovado algumas colocações que envergonham quem convive com o direito constitucional. Há matérias que são rigorosamente de legislação infraconstitucional.
Tínhamos saído de uma excepcionalidade institucional para um reordenamento constitucional. Os atos institucionais 1, 2, 3, 4 e 5 estavam ainda na mente de todos, e as pessoas sabem que a legislação ordinária posterior revoga a anterior com a maior facilidade, basta que se unam alguns parlamentares. Já a emenda constitucional é um pouco mais difícil. Então cada um queria pôr sua ideologia no texto constitucional. O pessoal da esquerda radical me chamava de homem de direita, e os da direita me consideravam de esquerda. Minha situação era delicada, pois como relator não podia impor minha vontade, mas tirar a média dos que ali estavam - bons ou ruins, não importa, pois queriam contribuir - da forma que me parecesse melhor, nem sempre a mais oportuna.
Foi o deputado Joaquim Bevilacqua, descendente de Clóvis Bevilacqua, que me disse um dia: "Bernardo, vamos imitar a Constituição portuguesa e, ao cabo de cinco anos, fazer uma revisão constitucional". A idéia começou a crescer, apoiei a emenda e foi aprovada. Seria a grande oportunidade de extirpar do texto o que não cabia e os excessos cometidos. Infelizmente, eu não era parlamentar a essa altura, foi uma perda fantástica pois nada absolutamente foi feito, a não ser fixar o mandato do presidente da República em quatro anos, porque se dizia que Lula seria eleito. Essa foi a razão. Conclusão: a revisão passou em branco e hoje se fala em miniconstituinte.
Em 1824, 1891, 1937 e 1946 houve ruptura institucional, mas hoje estamos com o Congresso funcionando e um presidente da República eleito. Se tivéssemos problemas de ruptura, a miniconstituinte caberia. Não sei aonde isso pode levar. O país atravessa dificuldades grandes, sobretudo na área econômica, mas devo dizer que, quando o presidente José Sarney disse que a Constituição tornaria o país ingovernável, respondi que a assertiva era um equívoco. Na época em que o ato institucional número 5 estava em vigência, houve a circunstância da doença de Costa e Silva e impediu-se que o vice-presidente Pedro Aleixo assumisse. Mais tarde, quando Fernando Collor foi forçado a sair, o vice assumiu naturalmente. Depois disso elegeu-se Fernando Henrique Cardoso e agora Lula. O país, portanto, não está ingovernável, e não há como usar a desculpa da ruptura institucional. Criaram-se, com sabedoria, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), o Programa de Integração Social (PIS), a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), dos quais não se fazem repasses aos estados. Tudo entra no cofre do governo federal. Como não se repassa, os estados fizeram de tudo para que parcela da CPMF, que se tornou definitiva, fosse rateada entre eles, o que não aconteceu até hoje.
A Constituição do Império, de 1824, durou 65 anos e só teve uma emenda. O mesmo ocorreu com a de 1891, que foi até 1930. A de 1934, que foi até 1937, também teve apenas uma emenda. A de 1946, que foi até 1964, teve 27. Vejam quantas emendas temos hoje. A Constituição deveria ter sido revisada em 1993. Foi uma pena termos perdido a oportunidade.
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