Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Leite de pedra


Carregadores de café / Reprodução

Litogravuras de Briggs registram o Brasil do século 19

MARIA HELENA PASSOS

Quem, afinal, era o povo carioca no Brasil recém-proclamado independente? Os portugueses já não podiam ser assim considerados na nação recém-nascida. Escravos, os negros encarnavam o antônimo da liberdade conquistada pelos "brasileiros". E o índio não passava de presença mítica, ausente de cidades como o Rio de Janeiro, onde um vai-e-vem barulhento de cavalos, mulas, minipalanques de comércio ambulante, damas transportadas em cadeirinhas e pedestres compunha o cenário de ruas sem calçamento. Sobre o chão de barro, em 1821, transitavam, na maior parte do tempo, os pés descalços de uma população de 79.321 habitantes, dos quais só 43.139 eram homens livres, conforme compilou o Relatório do Ministério dos Negócios do Império em 1839.

Dezesseis anos após a Independência, a área urbana do Rio de Janeiro reunia 97.162 moradores em 13.422 casas, agora repartidas por oito freguesias, três a mais do que em 1821, quando, na mais vasta delas, a da Candelária, havia mais escravos do que homens livres. Como aqueles, todos os 900 mil negros desembarcados no porto carioca na primeira metade do século 19 formaram, de fato, a maior parte do povo brasileiro – ainda que cativa. É a vida dessa população que surge nas esmeradas litogravuras de Tipos e Cenas do Brasil Imperial, retratada na obra do artista Frederico Guilherme Briggs. Hoje ela está parcialmente abrigada na Coleção Geyer, que foi doada com usufruto em 2000 pelo empresário e colecionador Paulo Fontainha Geyer, do grupo Unipar, ao Museu Imperial de Petrópolis, no estado do Rio de Janeiro.

Quem se der ao trabalho de folhear esse livro de tiragem limitada, editado há um ano pelo colecionador e empresário e pela historiadora Maria Inez Turazzi, com consultoria do historiógrafo Paulo Berger, verá a vida de quem não era da corte na capital do país ao longo da década de 30 do século 19. Uma vida pulsante, tanto ou mais que a da realeza, retratada por outra iniciativa do Museu Imperial de Petrópolis, no espetáculo Som e Luz (ver texto abaixo).

Através da vasta galeria de 105 personagens que interpretam a vida das ruas – palco para o cotidiano dos escravos, enquanto os brancos levavam o seu no interior dos sobrados –, o litógrafo carioca Briggs registrou fatia substancial da história brasileira no século 19. Filho de um negociante inglês que aportou no Rio de Janeiro no início dos anos 1800, esse artista de profícua produção teve tino comercial suficiente para levar a arte ao público de seu tempo, vendida em folhetos, revistinhas, cadernos e tudo o que pudesse ser litogravado em suas sucessivas oficinas.

Benguelas, minas, ganguelas, cabindas, congos, monjolos, moçambiques, crioulos (nascidos no Brasil) e ladinos (falavam português e conheciam os rudimentos de um ofício), os escravos foram seus principais personagens. Faziam no Rio quase tudo o que sua sociedade em transformação precisava para viver. Na cidade, a escravidão ganhava, aos poucos, novos contornos entre 1830 e 1840, a década registrada no livro. Os escravos vendiam os alimentos que vinham da zona rural, abasteciam os lares com a água extraída das fontes e carregavam as mercadorias que desembarcavam dos navios, mais freqüentes a cada dia. Em 1808, ano em que o ainda príncipe regente dom João assinou o decreto de abertura dos portos, as embarcações atracadas no Rio de Janeiro somaram 855. Quando ele se tornou rei, em 1816, o total já era de 1.460. E quando se foi de volta a Portugal, aportaram 1.655 delas, entre as quais 354 inglesas, norte-americanas e francesas.

O mercantilismo foi a principal característica da expansão econômica que marcou quase todo o século 19 no Rio de Janeiro. E, por conta dele, a tarefa dos escravos nas ruas da cidade se diversificou, como relatou a historiadora Marilene Rosa Nogueira da Silva, professora das universidades Estadual do Rio de Janeiro e Gama Filho, em pesquisa alentada que resultou no livro Negro na Rua: A Nova Face da Escravidão, escrito quando a Abolição no país completou um século, em 1988.

De cativos no senso estrito do termo, domésticos e rurais, parte deles passou a viver como negros de aluguel, empregados sobretudo em fábricas de tecidos, chapéus e até de pólvora. Outros, como escravos ao ganho, eram licenciados para negociar na cidade sua força de trabalho, entregando aos seus senhores parte da remuneração que obtinham na venda de bonecas, doces, carvão, capim, hortaliças, leite e milho pelas ruas, por onde também transportavam damas em cadeirinhas, carregavam fardos de café, tonéis e trouxas sobre os ombros e a cabeça. Faziam também as vezes dos bois, no transporte de bens e pessoas. Havia, ainda, os escravos de rua, a quem senhores da cidade ou do campo incumbiam de missões externas ao domicílio – como compras ou o envio de recados a terceiros.

Os negros também acendiam o óleo da iluminação pública e, logo cedo, recolhiam o excremento acumulado em urinóis nos sobrados e solares, despejavam-no nos "tigres" e o transportavam para as praias. Era essa uma das mais ingratas missões da época, a que eram condenados os que terminavam no calabouço por infringir alguma das rígidas regras com que o Estado brasileiro se empenhava em manter a escravidão imune a revoltas como a dos negros malês, ocorrida em 1835, na Bahia.

As imagens de Briggs, como as dos artistas românticos do século 19, em busca da objetividade mas dominados pela "mística da paisagem", no dizer da historiadora Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha – por décadas responsável pela seção de iconografia da Biblioteca Nacional e autora de uma extensa pesquisa sobre a vida do litógrafo –, eram um tanto idealizadas. Parte delas era de sua própria autoria. Outras foram desenhadas por Édouard Rivière, Joaquim Lopes de Barros Cabral e pelo alemão Eduard Hildebrandt, e gravadas em suas oficinas.

A litogravura que abre o livro mostra uma Negra da Roça envolta em canga azul, mais próxima à vestimenta grega que à africana. Supostamente com o mar à sua frente, ela acena para uma invisível embarcação. Por vezes, as roupas confundem o observador: o negro tocando marimba está de camisa e tem um casaco quase lilás, o marinheiro surge com um improvável capote de couro, a escrava, mirada com interesse pelo mineiro branco de botas, veste um camisão azul emoldurado por debrum amarelo sobre o vestido rosa. São obras do início da carreira litográfica de Briggs, antes de sua partida para a Inglaterra, sobraçando uma de suas mais contundentes produções, a predileta do historiógrafo Berger: o Panorama da Cidade do Rio de Janeiro.

Até então, como nota a historiadora Cunha, os trabalhos da oficina Briggs exibiam "linhas rígidas nos contornos, sombreados marcados apenas por linhas duras, arabescos nos fundos e no chão, figuras expressivas dos negros escravos, tratamento grosseiro das extremidades dos membros, manchas de colorido uniforme em cores desmaiadas". Enfim, uma produção principiante. Mas nem por isso menos valiosas na busca de representar a vida do Rio de Janeiro e vendê-la, se não aos visitantes, à própria população afluente.

Exemplo desse valor é a litogravura Bonegras Nhá Nhá, cujo som onomatopaico inscrito na legenda encantou a planejadora e coordenadora editorial Turazzi. São "complementos do traço litográfico, na estratégia de documentar e classificar os tipos de rua", diz ela, na introdução do livro, referindo-se às legendas das litogravuras que, ao reproduzirem falas incorretas, cantigas ou apelativos da linguagem das ruas, incluíam "a familiaridade de expressões correntes no vocabulário carioca de então". "As bonecas reproduziam sempre as sinhás", informa a historiadora Nogueira da Silva, que também coordena o Laboratório de Estudos sobre Diferenças e Desigualdades Sociais.

O negro ao ganho – pronto para carregar qualquer coisa com o enorme cesto trançado, extraído de um capim essencial para a vida da época, pendurado ao pescoço – aparece retratado por Briggs também ainda antes de o artista partir para a Inglaterra.

Assim, placa metálica de identificação ao pescoço, à espera de negociar nos quatro cantos da cidade a remuneração pela tarefa requerida por quem quisesse seus préstimos, o negro ao ganho reaparece em 1840 nas imagens dos Costumes Brazileiros, uma série de 50 desenhos de Joaquim Lopes de Barros Cabral gravados por Briggs, já em sua segunda oficina da Rua do Ouvidor.

Endereço da elegância culta da sociedade imperial, essa rua carioca aspirava ar parisiense por suas calçadas. Mas só durante algumas horas. Ainda assim, o que se via em seu leito era a realidade negra que, igualmente, dominava horários noturnos e as primeiras horas do alvorecer.

O negro ao ganho encarregava-se do próprio sustento e morava em cortiços. Ao Estado cabia responder por ele em qualquer tipo de custo social que implicasse – do combate a epidemias e à mendicância até prover aparato policial que o obrigasse à observação das leis, muitas das quais eram específicas para ele. Como ocorria com seus pares, sua reprodução era pífia. Com freqüência, eram acometidos por epidemias e doenças fatais.

A elite dessa turma eram os carregadores de café. "Organizados em tropa, tinham um líder que sempre portava uma bandeira colorida. Eram os que mais recebiam", conta a historiadora Nogueira da Silva. Também valorizados em sua função eram os negros que sabiam fazer sanguessuga e os barbeiros.

No roteiro retratado no livro de Briggs, surgem outros personagens – vários por sinal, mulheres, pouco presentes na população urbana da época. Uma delas, alforriada, carrega uma criança branca no colo. É uma ama-de-leite em encontro com uma enfermeira, religiosa da Santa Casa de Misericórdia, instituição à qual coube socorro médico a boa parte dessa população cativa por séculos nas cidades brasileiras.

Duas negras, uma com os ombros cobertos e outra com o dorso parcialmente nu, negociam frutas no mercado – é a escrava "de rua" indo às compras para sua sinhá. As litogravuras também espelham negras forras, como a Preta de Ballas, calçada, que vende balas de coco ou carameladas nas ruas. Já a Preta Vendendo Agôa vive na condição oposta: traz ao pescoço uma espécie de gargantilha de ferro, sinal de castigo por algum "deslize" cometido, enquanto a cabeça suporta o barril.

Com a barra da calça enrolada, o vendedor de água se prepara, em outra das imagens, para captá-la na fonte. O lugar era palco de constantes tumultos, na disputa pela mercadoria. Freqüentemente, a polícia era quem dava conta do recado.

Onipresente pela cidade, o policial também está nas litogravuras, perspicazes a ponto de registrar o olhar preocupado do negro ao ganho à espera de cliente, na porta do armazém que muitas vezes servia de moradia aos escravos no rés-do-chão do sobrado.

Máscaras cobrindo o rosto, em geral brancas, impediam escravos portadores de problemas mentais ou culpados por erros cometidos de comer pelas ruas. "Às vezes, eles comiam terra", conta a historiadora.

Como as marcas no rosto, os cortes de cabelo denunciavam as origens africanas dessa população escrava, que tinha, no calçado, o seu sonho de consumo. Os sapatos indicavam a liberdade. Quando alcançada, eram o primeiro bem que compravam. Muitas vezes apenas para pendurá-los ao pescoço, desabituados que eram de pisar o barro com os pés protegidos.

Não à toa, na galeria das litogravuras extraídas das oficinas de Briggs, caricaturas que alçavam vôo para uma crônica social retrataram, por exemplo, O Sapateiro Elleitor. Pois era esse o profissional a quem, como recorda Nogueira da Silva, outro historiador, o britânico Eric Hobsbawn, já definira como aquele que mais facilmente tinha contato com as várias camadas sociais em uma sociedade.

O Panorama da Cidade do Rio de Janeiro serviu para Briggs aperfeiçoar seus conhecimentos de desenho sobre pedra porosa na firma inglesa Day & Haghe, em 1837. No primeiro plano da perspectiva tirada do alto do morro de Santo Antônio, se vêem o próprio autor em plena atividade e tipos comuns da cidade: frades gorduchos, serviçais, chefes de famílias acompanhando crianças e grotescos pretos encasacados, cujos trajes arremedam os de seus patrões, a conversar pelas ruas.

Briggs voltaria ao Brasil, onde geriu oficinas até sua morte, em 1870. Assim, como bem nota com seu texto de abertura a museóloga e diretora do Museu Imperial de Petrópolis, Maria de Lourdes Parreiras Horta, a lide do litógrafo se insere no ambiente social da cidade, tornando-o personagem da vida carioca da primeira metade do século 19. Como ele, os artistas e empresários da arte, ainda embrionária, teriam papel fundamental na imprensa brasileira, coexistindo em uma sociedade repartida entre homens livres e cativos.


Volta ao passado

Espetáculo de luz e som revive história

O negro bailava com a princesa de colo enfeitado por uma camélia. Refletidos sobre uma cortina de água nos jardins do Museu Imperial de Petrópolis, ambos eram alvo dos olhares de algumas dezenas de visitantes, naquele início de noite de sexta-feira em pleno verão de 2004. Por entre o suave barulho das palmeiras ao vento, ouvia-se o comentário de uma baronesa com uma condessa, igualmente presentes ao baile no palácio, onde o abolicionista André Rebouças rodopiava tendo nos braços Isabel, toda garbosa, com a flor símbolo do movimento sobre o vestido.

"Corre por aí até que os escravos que fogem das fazendas de café do vale do Paraíba atravessam a serra da Estrela só para se acoitar aqui em Petrópolis...", instiga a primeira. E, diante do espanto da condessa, explica: "A princesa é tão religiosa... Dificilmente iria querer entregar um escravo perseguido a seu perseguidor". Pouco tempo depois, Alteza já regente, Isabel assinaria a Lei Áurea. Os fogos, a banda de música, os navios atirando de canhão no porto, gente dançando na rua reviviam a festa da Abolição no espetáculo Som e Luz Petrópolis, concebido para divulgar passagens e fatos históricos do Segundo Reinado, quando, por 40 verões, dom Pedro II habitou o palácio que mandara construir na serra fluminense.

"Foi a Abolição que detonou esse processo. A República é apenas o seu coroamento, o final da linha. Não devemos nos arrepender. Valeu a pena. É, minha filha, você, uma mulher, foi capaz de fazer o gesto de humanidade, o gesto necessário." O discurso de estadista pilhado em conversa íntima no interior do Palácio Imperial irrompe na voz do ator Odilon Wagner, que interpreta o monarca à véspera do exílio definitivo, conforme o texto da historiadora carioca Isabel Lustosa, da Universidade Federal Fluminense, em parceria com o editor Pedro Corrêa do Lago, hoje presidente da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro.

Assim, projetado sobre a cortina de água graças à moderna tecnologia, o filme envolve semanalmente, quintas, sextas e sábados, um público que se aglomera nas aléias do jardim imperial, ora assistindo às imagens sobre a fachada palaciana de 34 janelas, ora sobre o pano de fundo das palmeiras. Não poderia ser mais educativa tão rara oportunidade de volta ao passado do Brasil.

Patrocinado por R$ 4 milhões desembolsados pela Eletrobrás, pelo Programa Nacional de Conservação de Energia Elétrica e pela Fundação Roberto Marinho, o espetáculo é fruto do empenho da diligente museóloga Maria de Lourdes Parreiras Horta, diretora do Museu Imperial de Petrópolis. Suas cenas dão o tom do clima da corte brasileira durante quase todo o século 19. E fazem o público conhecer fatos um tanto distantes dos tradicionais livros escolares, que ainda hoje insistem em mitificar a história do Brasil. Mais ainda: graças à sofisticada tecnologia, é possível sentir-se testemunha dos eventos históricos.

Três toneladas de equipamentos se incumbem dessa tarefa – de caixas de som, mesas de luz e projetores a 480 refletores e spots e 32 quilômetros de cabos. O filme de 35 milímetros tem como tela uma cortina de água de 6 metros de altura e 17 de largura, sobre a qual desfilam cenas da Guerra do Paraguai e da Proclamação da República, além de muitas reproduções de Debret, sete dançarinos e um elenco de sete atores.

É a voz de Paulo Autran, narrador do espetáculo, que sintetiza a existência do personagem principal, o imperador. "Durante os 49 anos de seu reinado, sua vida se confunde com a história do Brasil. Uma vida marcada pelo signo da orfandade: ele perdeu os pais na infância e foi educado pelo país que iria governar. Mais que ninguém, era filho da nação brasileira."

Autran-narrador inicia a viagem-espetáculo quando dom Pedro II vivia o auge de seu poder, em 1864. Nesse tempo, três décadas depois do período em que o litógrafo Briggs iniciou sua produção, retratando o povo na Rua do Ouvidor, em plena capital do Brasil, o imperador fugia dela para andar pelas ruas de Petrópolis. Ali, segundo os autores do texto, movimentava-se a pé com desenvoltura pelo centro, visitando escolas e conversando com crianças que encontrava. Como uma pessoa comum, transitava pela cidade fundada por duas centenas de alemães que lá chegaram em 1830, depois de arrumar briga no navio que os transportava para a Austrália.

Do porto do Rio, os imigrantes subiram a serra até a Fazenda do Córrego Seco, abrindo a estrada Rio-Petrópolis, contratados pelo major Júlio Frederico Koeler, arrendatário da propriedade rural graças ao compromisso de reservar um terreno para a construção do Palácio Imperial. O militar engenheiro foi também autor do plano urbanístico de Petrópolis, para onde seguiram, em 1845, 2,1 mil alemães.

Foram eles que ergueram o palácio, conta no filme o cocheiro das carruagens que transportavam damas e cavalheiros da corte aos bailes palacianos. A construção levou mais de uma década e pôs de pé um legítimo solar português, com as armas imperiais, os dragões dos Bragança, o cetro e a mão da Justiça no alto do edifício, símbolos do poder do imperador.

É com outro baile que Autran inicia o espetáculo – o baile das princesas, para o qual os convivas saíam do Rio de barco até o porto de Mauá. Embarcavam então na primeira maria-fumaça da América do Sul, pela estrada de ferro de Mauá a Petrópolis. Na festa projetada no Som e Luz Petrópolis, Isabel e sua irmã Leopoldina são apresentadas a seus futuros maridos. Pela voz do ator Cláudio Mamberti, o então marechal e futuro duque de Caxias comenta com o maior falso amigo do imperador, o barão do Bom Retiro, sobre a troca dos noivos. A herdeira devia se casar com o duque de Saxe, da Alemanha, e sua irmã mais nova com o francês conde d’Eu. Mas as preferências das consortes femininas inverteram o programado. Melhor assim, a julgar pelo que conta Sérgio Mamberti, no papel do barão, lembrando a decepção de dom Pedro II quando viu pela primeira vez a gordota e baixinha, modesta em beleza, Teresa Cristina, para com ela se casar, sem chance de escolha.

Saboroso, o texto de Lustosa e Lago nos permite privar do inesperado e malicioso comentário do patrono do exército brasileiro sobre o conselho que a condessa de Belmonte, nos braços de quem o órfão e infante dom Pedro II foi criado, acabou dando ao jovem, futuro marido de Teresa Cristina, ao dizer-lhe que cumprisse com seu dever. "Haja patriotismo! Haja patriotismo!", dispara a voz de Cláudio Mamberti-duque de Caxias.

De modo que os que se derem ao trabalho de visitar o Museu Imperial em Petrópolis terão a chance de saber a respeito de muitos outros episódios esclarecedores e instigantes da história imperial brasileira. Vista, é claro, da ótica da realeza. Como, por exemplo, saber da simplicidade de Pedro II e Teresa Cristina, imperatriz que somente nessa oportunidade – a do baile casamenteiro – abriu sua inseparável malinha para cobrir as filhas de jóias que quase nunca eram vistas. Até as cadeiras usadas na festa foram emprestadas...

Também se fica sabendo das decepções do monarca luso-brasileiro com seu genro francês, quando o mandou liquidar com o inimigo Solano López na Guerra do Paraguai. O conde d’Eu, marido de Isabel e neto do rei francês Luís Filipe, "tinha a vocação das armas", segundo o texto do espetáculo. Ao som do Hino Nacional, que envolve a platéia nos jardins do Museu Imperial, as imagens do combate liderado pelo duque de Caxias impressionam pela violência. Animado, o genro do imperador acabou com a vida do ditador paraguaio. Mas sua sugestão de um desfile militar para comemorar o feito foi prontamente negada por dom Pedro II, que queria o inimigo capturado vivo, no melhor estilo Saddam Hussein. "Tinha medo de que o López, morto, virasse herói", diz o cocheiro, testemunha onipresente da história cortesã.

O público também fica sabendo que dom Pedro II só foi à Europa pela primeira vez na vida aos 46 anos, quando sua filha Leopoldina lá morreu, em 1871. E que gostou da viagem – tanto que passou a viajar amiúde. Em uma delas, foi aos Estados Unidos, onde visitou a Exposição Universal de 1876 e conheceu pessoalmente Graham Bell, o inventor do telefone, apetrecho que o fascinou. Na Europa ele estava quando recebeu a notícia da Abolição, informa o cocheiro concebido por Lustosa e Lago. Os autores se empenham em passar a idéia de um monarca compreensivo que, embora traído pelo marechal Deodoro – "o militar em que eu mais confiava", diz ele no filme –, viu a República como o coroamento de um processo necessário, o da Abolição.

Ao final, o espectador visitante fica sabendo que o Palácio Imperial se tornou colégio religioso por muitas décadas. Em 1943, o edifício virou museu. Suas peças guardam, até hoje, a lembrança de tempos agitados embalados pelos "frufrus de vestidos" e leques e diz-que-diz de nobres, surpreendidos pelos atos do povo enquanto bailavam na ilha Fiscal. A aula não pode ser mais agradável a quem quer que se interesse pelo passado do Brasil.

 

Comentários

Assinaturas