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Virada energética
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Setor industrial pode ser beneficiado pelo gás da bacia de Santos
ALBERTO MAWAKDIYE
A enorme reserva de gás natural encontrada pela Petrobras no litoral de São Paulo pode fazer deslanchar de vez o uso dessa fonte de energia na indústria brasileira. O poço, localizado em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, dentro da bacia de Santos, é o maior já descoberto no país, guardando algo entre 400 bilhões e 500 bilhões de metros cúbicos de gás. Para se ter uma idéia do que esse volume significa, ele praticamente triplica as reservas nacionais desse combustível, estimadas até hoje em 250 bilhões de metros cúbicos, tornando o país em potencial megaprodutor. Com o gás de Santos, as reservas brasileiras equivalem à metade das bolivianas e se equiparam às da Argentina.
A indústria responde por 44,5% do consumo nacional, e esse índice só não é maior por razões logísticas – a rede brasileira de gasodutos tem apenas 8 mil quilômetros e está concentrada nos estados do sudeste e do sul – e por causa do preço relativamente alto do combustível. Os investimentos prometidos pela Petrobras na ampliação da rede e a quase certa queda dos preços devido ao crescimento da oferta provavelmente atrairão mais empreendedores para o gás natural.
Esses investimentos também poderão reduzir uma distorção existente na ponta do consumo. A falta de estímulo e o pequeno número de usinas termelétricas fazem com que o país utilize menos gás natural do que o oferecido hoje no mercado.
A disponibilidade de gás natural está atualmente na casa dos 40 milhões de metros cúbicos por dia, mas o consumo não ultrapassa 30 milhões de metros cúbicos. Metade desse volume é proveniente de poços brasileiros e o restante da Bolívia, pelo gasoduto que liga os dois países. Esse cenário de superoferta faz com que diariamente a Petrobras devolva para os poços ou mesmo queime uma grande quantidade de gás.
O Brasil também não importa todo o gás boliviano que deveria comprar, pelo contrato assinado com o país vizinho nos anos 1990. Segundo o acordo, deveriam estar passando hoje pelo Gasoduto Bolívia-Brasil cerca de 20 milhões de metros cúbicos por dia, número que chegaria a 30 milhões até o final da década. O documento foi firmado antes da descoberta de vários poços de petróleo e de gás na bacia de Campos, no litoral do Rio de Janeiro, que elevaram a produção nacional até o patamar atual.
Esses números modestos refletem a pequena participação do gás natural na matriz energética brasileira – apenas 3% –, perdendo de longe para as hidrelétricas, que fornecem mais de 90% da energia consumida no país. Nos Estados Unidos, o índice de utilização do gás natural na geração de energia é de 24%, e na Argentina, de 47%. Embora nesses países o combustível se destine principalmente a usinas termelétricas, o consumo industrial é significativo.
Insumo energético
Nas fábricas, o gás natural entra prioritariamente como insumo de produção – para o aquecimento de fornos, por exemplo, ou climatização. As principais usuárias são indústrias de grande porte. Nada menos do que 40% do gás natural consumido no Brasil destina-se a 56 complexos industriais das áreas siderúrgica, química, de papel e celulose e de produtos para a construção civil, como cimento e cerâmica, entre os quais se encontram gigantes como Usiminas, Companhia Siderúrgica de Tubarão (CST), Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), Votorantim, Coteminas, Alcoa, Camargo Corrêa e Copesul.
"São as empresas industriais de maior porte que estão incrementando o uso do gás natural no Brasil", garante Paulo Ludmer, presidente da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia (Abrace). Ele reconhece que o volume de gás consumido por elas é ainda pequeno em termos absolutos, mas com o aumento da oferta que advirá com a produção do poço da bacia de Santos haverá um crescimento exponencial.
A certeza de Ludmer tem fundamentos práticos. O gás natural substitui com vantagens técnicas e econômicas vários insumos nos processos industriais, e a troca de matriz energética não sai muito cara para as empresas. Além disso, o gás é muito menos poluidor que outros combustíveis, como o diesel.
De fato, o uso do gás natural para finalidades industriais é o mais diversificado possível e em muitos casos a redução de custos chega a impressionar. A siderúrgica Vallourec & Mannesmann, sediada em Minas Gerais, implantou esse combustível não apenas em diversas fases do processo de produção do aço que exigem queima ou superaquecimento, como também em áreas sensíveis no aspecto ambiental, com ganhos em ambos os casos. Uma fábrica do setor de fibra de vidro de Rio Claro, interior de São Paulo, a Owens Corning, conseguiu reduzir em quase um terço as despesas com energia em algumas de suas estufas e fornos de fusão com a implantação do gás. "A queda foi tão significativa que a empresa quer estender o uso do combustível a outros equipamentos", diz Danúsio Antonio Diniz, gerente de meio ambiente e segurança do trabalho.
Outras aplicações também surpreendem. Na mesma Rio Claro, a Tigre, indústria de tubos e conexões, implantou o gás natural como fonte de energia dos 30 chuveiros usados pelos empregados da unidade, que se revezam em cinco turnos. "A despesa com aquecimento de chuveiros caiu de R$ 6 mil por mês para R$ 1,2 mil", conta Carlos Alberto de Campos, coordenador de manutenção e utilidades da fábrica. No Recife, em Pernambuco, pequenas empresas de panificação apoiadas por programas do governo estadual passaram a utilizar o gás em seus fornos, com ganhos econômicos e ambientais.
A maior concentração de usuários de gás natural está, obviamente, no estado de São Paulo, o mais industrializado do país – 35% do PIB – e também o mais bem servido por gasodutos, cujo consumo equivale a quase um terço do combustível comercializado hoje no Brasil (9 milhões de metros cúbicos por dia). Cruzado em quase toda a sua extensão pelo gasoduto que vem da Bolívia e segue rumo ao sul do país, o estado, que também recebe gás das bacias de Campos e de Santos, possui 3,5 mil quilômetros de rede de distribuição, quase metade do total brasileiro. A principal distribuidora do setor, a ex-estatal Comgás, que detém 35% do mercado, fica em São Paulo. De todo o gás fornecido por ela, 78,2% vão para a área industrial. "A tendência é esse consumo crescer", aposta Carlos Eduardo Bréscia, diretor de assuntos corporativos da empresa. Hoje, são 800 clientes industriais, em 43 cidades, e um número total de usuários que supera os 380 mil.
Os números paulistas, porém, só impressionam quando vistos isoladamente. Na Argentina, apenas a região da Grande Buenos Aires possui uma rede de 14,9 mil quilômetros (quase o dobro da brasileira), que atende 1,9 milhão de clientes. De qualquer forma, o potencial de crescimento do estado é evidente, até por sediar o novo poço da bacia de Santos.
São Paulo ainda oferece a vantagem adicional de contar com uma hidrovia – a Tietê-Paraná – que segue paralelamente ao Gasoduto Bolívia-Brasil, hoje praticamente concluída. A hidrovia espera receber investimentos do governo estadual para integrar-se melhor à rede ferroviária paulista (a interligação ocorre em apenas dois pontos, nas cidades de Pederneiras e Conchas, na região de Campinas).
"Os investimentos na intermodalidade vão atrair mais empresas para as margens da hidrovia, e elas certamente vão acabar por aderir ao gás natural", acredita Carlos Schad, diretor de planejamento e gestão da Associação de Desenvolvimento do Tietê-Paraná (ADTP), que congrega várias grandes companhias localizadas no eixo da hidrovia. Com capacidade para transportar 20 milhões de toneladas ao ano, ela conduz apenas um décimo disso, em parte devido à atual crise econômica.
Gás argentino
O sul do país também começa a ser importante consumidor industrial de gás natural. Servida igualmente pelo Gasoduto Bolívia-Brasil, a região já conta com mais de 130 indústrias usuárias de gás, a maior parte concentrada em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. "O número talvez fosse maior, se pudéssemos trazer por gasoduto o gás natural da Argentina, que é muito mais barato que o da Bolívia e cuja fonte de fornecimento é mais próxima e confiável", afirma Carlos Faria, coordenador de energia da Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (Fiergs). De fato, o gás boliviano custa US$ 3,34 o milhão de BTU (ver texto abaixo), enquanto o argentino fica entre US$ 2,45 e US$ 2,55.
O uso industrial do gás no nordeste vem igualmente aumentando, embora tolhido pela pouca disponibilidade do produto (o consumo é de menos de um quarto do total brasileiro). A região não é ligada por gasoduto ao sudeste, e assim não recebe o combustível da Bolívia nem da bacia de Campos. Utiliza a produção de poços nordestinos, menores do que os do centro-sul. Mesmo assim, o gás natural é empregado em grandes complexos industriais, como o pólo cloroquímico de Alagoas, a indústria de fertilizantes de Sergipe, a petroquímica de Camaçari, na Bahia, e outras empresas de Pernambuco e do Rio Grande do Norte.
A Petrobras naturalmente vê com bons olhos o interesse das indústrias em intensificar o uso do gás natural. No embalo da descoberta da reserva em Santos, a companhia pretende potencializar essa tendência. O presidente da empresa, José Eduardo Dutra, já anunciou que parte dos R$ 8 bilhões reservados para investimentos este ano será aplicada na ampliação da rede de gasodutos. Essa rede é tão modesta que Minas Gerais, estado detentor da terceira economia do Brasil, quase não tem tubulações. A Petrobras pretende tocar as obras em regime de urgência, decidida a preparar o mercado para absorver pelo menos uma parcela das reservas da bacia de Santos, que, com a atual tecnologia de prospecção, só poderão tornar-se operacionais em 2007.
Algumas obras já começaram a ser executadas no sudeste e no nordeste. Mas o projeto de maior peso estratégico, ainda no papel, é chamado Gasoduto da Integração, uma enorme linha de aço entre o centro-sul e o nordeste, que deverá reverter o desequilíbrio de oferta de gás nas duas regiões, pois permitirá ao nordeste o acesso ao gás proveniente da Bolívia e da bacia de Campos.
A Petrobras cogita também atender a reivindicação de empresários e do governo do Rio Grande do Sul, que gostariam de ver concluído o gasoduto Uruguaiana-Porto Alegre, que permitiria receber o gás da Argentina. A obra, que nunca teve o apoio da companhia, já que o gás argentino substituiria o boliviano na região sul, pode agora sair do papel por razões estratégicas. Uma delas seria desviar o combustível que hoje vai para o sul em direção ao nordeste, viabilizando economicamente o Gasoduto da Integração. A desvantagem da iniciativa seria mais um foco de dependência externa para o país. O empreendimento teria 615 quilômetros de extensão, dos quais, aliás, 50 quilômetros já existem, entre a Argentina e Uruguaiana, onde alimenta uma termelétrica.
Finalmente, a empresa poderá construir gasodutos para as reservas de gás natural da bacia do Solimões, no coração da Amazônia, que levariam o combustível no sentido centro-oeste e norte-nordeste. A estimativa de produção nos poços de Urucu e Juruá é de 13 milhões de metros cúbicos por dia. A obra ainda depende, entretanto, de aprovação das autoridades ambientais.
Com todos esses gasodutos executados, o Brasil estaria integrado por uma grande rede de tubulações, favorecendo não apenas o uso industrial do gás, já definido como a base do incremento de consumo desse tipo de combustível, como também outras utilizações.
Preços salgados
Se o consumo de gás natural é pequeno na indústria, nos outros segmentos não é diferente. As usinas termelétricas, por exemplo, são responsáveis por 22,4% do consumo. Outra parte (6,8%) é utilizada como matéria-prima, como acontece na indústria de fertilizantes. Nos transportes vão 5%, principalmente para uso veicular. O setor mais acanhado de todos é o residencial, que consome apenas 1,3% do total. Embora implantadas há décadas, as redes de gás para uso doméstico restringem-se a alguns bairros de algumas grandes cidades. Os planos de investimento das concessionárias não decolam por falta de interesse dos consumidores, que parecem preferir o tradicional gás de botijão, mais barato.
Os preços mais altos do gás natural em relação aos combustíveis concorrentes são outra questão a ser enfrentada pela Petrobras. Escorado nas reservas da bacia de Santos, José Eduardo Dutra tenta renegociar com o governo boliviano e os parceiros multinacionais uma redução de preço para US$ 2,70 por milhão de BTU, em troca da manutenção do contrato.
Dutra vai igualmente conversar com as concessionárias do setor, que aguardam a montagem de um novo modelo institucional, a ser elaborado pelo Ministério das Minas e Energia e pela cadeia produtiva. Há muitas queixas, principalmente por parte das indústrias, sobre o que elas classificam de "abusos" das fornecedoras, que administrariam livremente os preços e exerceriam um monopólio indevido sobre a distribuição do produto.
"As indústrias cerâmicas de São Paulo pagam cerca de US$ 7,7 por milhão de BTU de gás natural, pois têm de arcar com uma taxa de distribuição cobrada pelas concessionárias", critica Milton Jorge Jr., diretor executivo da Associação Paulista de Cerâmicas de Revestimento (Aspacer). "Se pudéssemos importar diretamente o gás da Bolívia, o preço cairia pela metade." Essa alternativa, embora permitida pela legislação federal, está esbarrando em leis estaduais e nas comissões públicas de gás e energia, que não autorizam o uso dos gasodutos para levar o combustível direto para as fábricas. São essas comissões que aprovam os preços e as taxas de distribuição do gás propostos pelas concessionárias.
Foi também o preço relativamente salgado do gás natural que praticamente o alijou do novo modelo do setor elétrico, tornando impraticável, pelo menos por enquanto, o incremento do uso desse combustível para geração de energia. Definida por medidas provisórias já enviadas pelo Executivo ao Congresso Nacional, a regulamentação privilegia a matriz hídrica e alguns sistemas alternativos (como a energia eólica ou de biomassa), deixando as usinas termelétricas como mera reserva estratégica, principalmente no nordeste. Das 431 pequenas usinas previstas para entrar em operação entre junho do ano passado e 2007 – das quais apenas 39 estão concluídas e 84 em obras – é provável que boa parte nem saia do papel por conta dessa decisão.
Diante dessa realidade, é possível que a Petrobras invista em exportação para desovar gás natural e garantir alguma demanda mínima. O próprio gás boliviano poderá ser reexportado. Uma opção, porém, muito mais complexa do que parece. Além de enfrentar a concorrência de players consolidados nesse mercado, como os países do Oriente Médio e do sudeste asiático, o Brasil precisaria montar pelo menos uma usina de grande porte para transformar gás natural em gás natural liquefeito (GNL), para permitir o embarque do produto por navio.
O custo de uma unidade dessas é altíssimo. As norte-americanas Exxon e Mobil, por exemplo, estão investindo US$ 12 bilhões em uma planta de GNL no Catar, na península da Arábia, para atender a apenas um poço de gás natural.
Energia e calor
Embora as reservas de gás sejam calculadas em metros cúbicos, quando se trata de comercialização internacional a unidade utilizada é o BTU, sigla de British Thermal Unit (unidade térmica britânica). Na verdade, trata-se de uma forma de medir energia. Corresponde à quantidade de calor necessária para elevar em 1 grau Fahrenheit (aproximadamente meio grau Celsius) a temperatura de uma libra (453 gramas) de água, ao nível do mar. Um milhão de BTU correspondem a 26,8 metros cúbicos de gás natural.
Condicionadores de ar também utilizam o BTU como unidade de medida de potência. Um aparelho de 10 mil BTU/hora é capaz de retirar de um ambiente 10 mil BTU (quantidade de calor) em uma hora.
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