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Cultura do veneno


Classificação do fumo / Foto: Divulgação

Agricultor é a primeira vítima da indústria de cigarros

NILZA BELLINI

O Brasil é o segundo maior produtor de fumo para cigarros do mundo. Do total do tabaco plantado em 103 países, mais de 10% são cultivados em terras espalhadas pelos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. No ano passado, a produção nacional do fumo Virgínia, o mais utilizado pela indústria fumageira, somou 480 mil toneladas. A exportação da folha apresenta números ainda mais impressionantes: somos os primeiros do ranking internacional. Em 2002, o fumo e seus produtos tiveram uma participação superior a 1,7% na pauta de exportações brasileiras. Além disso tudo, o país ocupa o terceiro lugar mundial na escala de tributação sobre cigarros.

Essas cifras podem, talvez, explicar as razões pelas quais, embora o Brasil seja signatário de protocolo da Organização Mundial de Saúde (OMS) que propõe, em última instância, erradicar o plantio do fumo, nada ainda tenha sido feito para que as mais de 150 mil famílias brasileiras que sobrevivem cultivando tabaco passem a desenvolver outra cultura. E isso apesar do fato de o tabaco também fazer muito mal para quem o planta.

Há 680 municípios produtores de fumo no sul do país, 400 dos quais são gaúchos. Seu cultivo envolve cerca de 750 mil pessoas e muitas delas não são proprietários rurais, mas simples meeiros das terras. Esses fumicultores, o elo mais fraco na cadeia de produção do cigarro, ganham pouco, intoxicam-se com adubos e inseticidas e vivem submetidos aos desígnios das grandes indústrias do tabaco.

A história de Rejane Isabel da Silva, de 38 anos, agricultora com mais de 100 mil pés de tabaco Virgínia plantados numa propriedade de 21 hectares, localizada em Venâncio Aires, município gaúcho campeão no cultivo de fumo, é exemplar. Ela, o marido Eloar e os filhos Douglas, de 12 anos, e Diogo, de 17, trabalham de sol a sol para, no final da safra anual, conseguir faturar algo correspondente ao mínimo necessário para sobreviver. A agricultora e o marido são descendentes de plantadores de tabaco que, desde a primeira metade do século passado, vivem da cultura. Mas Douglas e Diogo pretendem quebrar essa cadeia. "Eles não querem mais saber de uma vida tão sacrificada", diz ela. "Prometem mudar-se para a cidade, em busca de qualquer trabalho no comércio, na primeira oportunidade que surgir."

Os jovens estudam numa escola pública instalada no perímetro urbano de Venâncio Aires, município situado a 130 quilômetros de Porto Alegre, entre os vales do Taquari e do rio Pardo. Mais da metade dos 61 mil habitantes da cidade vive na área rural. É nas escolas das crianças que os técnicos agrícolas contratados pela indústria cigarreira divulgam datas e locais para reuniões com os fumicultores, durante as quais ensinam novas técnicas de plantio e apresentam lançamentos de fungicidas, inseticidas, adubos ou sementes especialmente tratadas, além de anunciar as perspectivas de preço para a arroba do tabaco, no final da safra.

Representantes da indústria também visitam as propriedades para diagnosticar as causas de queda na produção. Uma das pragas mais recentes, contra a qual ainda não está definido o veneno adequado, é um verme que se espalha pelo solo e suga a energia da raiz da planta. O agricultor Erme Sterdz, que cultiva 50 mil pés de fumo no município de Venâncio Aires, acredita que o nematódeo chegou à região na terra das sementeiras que a indústria fumageira fornece para o plantio das mudas do tabaco. "Pode ser estratégia para depois nos venderem o veneno", desconfia Sterdz. Essa terra já vem tratada para que as sementes, que germinam na água, possam crescer. Isso normalmente acontece em maio, junho e julho. Quando a muda atinge cerca de meio palmo de altura é desbastada, processo pelo qual as folhas maiores são eliminadas. Esse procedimento ajuda a engrossar o caule da planta para o replante nos canteiros definitivos, onde a distância de uma muda para outra é de dois palmos e meio, para que cresçam folgadamente. Todo o processo é manual.

Quando acontece o replante, o agricultor já terá pulverizado as mudas com produtos indicados geralmente contra um fungo popularmente conhecido por "mela", que faz apodrecer o caule do tabaco. Esse tipo de substância é tão tóxico que as empresas que o fabricam costumam exigir a devolução da embalagem.

Plantado em covas de um palmo, o tabaco pode ser, ainda, atacado por pragas como piolhos, lagartas e grilos, em diferentes momentos de seu desenvolvimento. Vai ser colhido, folha a folha, no final do ano. Todos os fungicidas ou inseticidas utilizados durante o processo são fornecidos pela indústria fumageira, como forma de adiantamento pelo pagamento que se fará, depois de classificado o fumo e atribuído valor para a safra. "Não descansamos um momento na luta contra as pragas", diz Rejane, que em meados de agosto se dividia entre colher o fumo crescido e cuidar do filho mais velho, com vômito e dores musculares, possivelmente intoxicado pelo veneno aplicado na roça.

Contaminação

Rejane também teve problemas com os venenos. Em 2003 ficou internada durante três dias com fortes dores de estômago. Teve alta do hospital sem um diagnóstico conclusivo. Mas desconfia dos produtos que aplica obrigatoriamente na roça.

Entre os inseticidas e acaricidas mais utilizados estão os organofosforados, altamente tóxicos. O toxicologista Ângelo Zanaga Trapé, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), aponta, além dos organofosforados como agentes de intoxicação, também o manganês e a nicotina. "Alguns fungicidas contêm ditiocarbamatos que incluem, em sua composição, o manganês, capaz de provocar sintomas conhecidos como síndrome parkinsoniana, porque se assemelham aos do mal de Parkinson", explica.

No caso da nicotina, a contaminação se dá durante a colheita. Como as regiões onde se cultiva fumo são muito quentes, os agricultores muitas vezes trabalham sem camisa. Colhem as folhas e as prendem sob as axilas, para depois formar rolos. "Os níveis de absorção dessa substância pela pele são altíssimos e provocam mal-estar, vômitos e dor de cabeça", descreve. Esse mal foi batizado pelos cientistas como síndrome da folha verde.

Os quadros de depressão também são freqüentes, conforme a Organização Mundial de Saúde. Estudos de Trapé, realizados em Santa Cruz do Sul (RS) em parceria com a universidade local, buscaram relacionar a depressão causada pelos organofosforados e pelos ditiocarbamatos com a alta incidência de suicídios na região, superior à da Dinamarca, país que apresenta os índices mais elevados do mundo. As verbas destinadas para a pesquisa foram insuficientes para permitir a aplicação de uma metodologia capaz de apontar resultados definitivos. "Mas a hipótese não está descartada", ressalva ele.

A advogada Vânia Mara Moreira dos Santos, membro do Conselho Estadual do Meio Ambiente, do Paraná, e presidente do Instituto Os Guardiões da Natureza, de Prudentópolis, cidade paranaense produtora de fumo, tem registrado muitas mortes de agricultores por suicídio. Ela realizou um levantamento em 1998, quando houve sete casos em Prudentópolis, que tem 46 mil habitantes. A média estadual é de sete por 100 mil. "Esses números tiveram uma queda nos anos seguintes, mas começam a crescer outra vez", denuncia ela.

Vânia é a advogada responsável, também, pela causa que o agricultor Waldemar dos Santos move contra a indústria fumageira. O paranaense de Prudentópolis começou a trabalhar na lavoura do fumo ainda adolescente. Sofreu intoxicações crônicas pelos agrotóxicos usados na plantação e hoje, aos 40 anos, está inválido. Impossibilitado de trabalhar, Waldemar mora em Florianópolis, onde recebe tratamento médico adequado. Na segunda semana de janeiro deste ano, a Justiça do Paraná solicitou uma perícia confirmatória para comprovar se os agrotóxicos utilizados na cultura do tabaco foram os causadores da doença do agricultor. Essa é uma das poucas ações no país que um fumicultor move contra a indústria cigarreira, ao contrário de ações de fumantes, que são mais de 360.

Baixa rentabilidade

Em sua propriedade rural de 8 hectares, Erme Sterdz, além de cultivar fumo, planta milho e cria gado leiteiro. Com 50 anos de muita luta, ele aprendeu, no decorrer da vida, a diversificar investimentos. "A cultura do fumo já foi muito mais rentável", observa. Antigamente 30 mil pés de fumo garantiam a subsistência de minha família. Hoje planto 50 mil e se não tivéssemos outras rendas passaríamos por dificuldades", diz.

Nem todo mundo consegue, porém, agir como ele, que comprou casa própria e gado quando o fumo ainda era um produto valorizado. Atualmente, os preços pagos pela indústria fumageira são pouco compensadores e não possibilitam novos investimentos. Uma vaca de leite, por exemplo, custa, em média, R$ 1,5 mil, preço inviável para quem vive da cultura do tabaco.

Sterdz e os outros membros de sua família nunca fumaram. "Sou completamente contra cigarros", diz. "Como eu, a maioria das pessoas que trabalha no cultivo não gosta do tabaco." O fato de ser antitabagista, porém, não se torna um impedimento para o plantio do fumo, uma vez que essa cultura ainda continua a ser a melhor saída, naquela região, para quem tem pouca terra.

Os custos são altos. A madeira, por exemplo, indispensável para alimentar as fornalhas de secagem, não pode mais ser retirada da mata nativa. Todos passaram então a utilizar aquela proveniente de reflorestamento, que teve uma alta, em 2002, de 100%. O valor da mão-de-obra de quem ajuda na colheita sofreu acréscimo de 50%. Os inseticidas, fungicidas e adubos foram reajustados em cerca de 70%. Mas o preço da arroba do fumo em janeiro, segundo previsões, seria corrigido em menos de 20% em relação ao ano anterior.

Há mais problemas. Existem 48 classificações para o tabaco plantado no Brasil, que consideram tamanho da folha, cor, secagem (durante a qual o fumo perde 90% do peso) e outras características. É por meio delas que é atribuído o valor ao tabaco. Mas não é o fumicultor que classifica seu fumo, e sim a indústria. Ele não pode sequer acompanhar o processo de classificação, e nunca sabe exatamente quanto vai receber pela colheita. Essas contas só lhe são apresentadas depois que o fumo foi classificado. Do total final ainda são descontados todos os custos com as sementes, adubos, inseticidas, etc., que foram fornecidos pela indústria a título de antecipação. Sobra sempre pouco mais de 10% de tudo o que foi gasto.

O deputado gaúcho Adão Pretto (PT), que já foi fumicultor, apresentou na Câmara um projeto de lei que limitaria essa classificação em 12 tipos. O projeto já recebeu um substitutivo, do deputado também gaúcho Luís Carlos Heinze (PP). Pretto já admite perder, mas protesta. "Não é justo para com o fumicultor, que não tem a quem reclamar se considerar que seu fumo foi mal classificado."

Enquanto isso, a Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra) comemora com ufanismo a safra deste ano. O presidente da entidade, Hainsi Gralow, foi eleito também presidente da Primeira Câmara Setorial do Fumo, e empossado em janeiro. A câmara setorial foi criada depois de sugestão de Heinze, para quem o órgão vai facilitar as discussões entre agricultores e industriais.

No Brasil, como cultura nativa, o fumo já era conhecido antes mesmo do descobrimento. E os interesses de fumicultores, exportadores e indústria sempre foram divergentes. No século 18, o marquês de Pombal regulamentou o plantio e a comercialização do tabaco. Posteriormente, coube a Rui Barbosa, como o primeiro ministro da Fazenda do período republicano, transformar o fumo em uma das principais fontes tributárias do Estado, ao instituir as bases do então Imposto sobre Consumo – o futuro Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). Vale ressaltar que o governo sempre teve interesse na receita proveniente da cultura do tabaco, a ponto de o brasão nacional ostentar um ramo de fumo florido, como símbolo de uma de nossas riquezas.

Portanto, promover discussões sobre a economia resultante do tabaco não é novidade. E não vai ser fácil chegar a um consenso. O único tema que não se pretende discutir na Câmara é o preferido dos antitabagistas, para quem as mais de 200 mil mortes por ano, resultantes do consumo de cigarros no Brasil, tornam injustificável a cultura do tabaco.

 

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