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Vozes silenciadas
Virginia Woolf / Reprodução
A sofrida participação feminina no mundo das letras
CECÍLIA PRADA
Em 1928 a escritora inglesa Virginia Woolf recebeu um honroso convite: deveria fazer uma palestra sobre a mulher na literatura inglesa, em uma das mais prestigiosas e tradicionais universidades britânicas, Cambridge. Uma escritora comum abriria uma história da literatura inglesa e dela extrairia algumas figuras de antecessoras suas, como Jane Austen e George Eliot, e com pouco trabalho garantiria o brilho de sua palestra, empenhando-se em demonstrar que, "afinal de contas, estivemos sempre por aí (só que ninguém reparou)".
Seria a sua mais uma dessas patéticas exposições que os representantes das diversas minorias costumam fazer para assegurar sua "presença" no quadro – que nunca necessitou de demonstrações desse tipo – da sociedade tradicional, masculina, branca, bem-nascida, cristã, heterossexual. A audiência ouviria polidamente, aplaudiria a "brilhante conferencista", que receberia um ramo de flores – e todos passariam ao salão de honra do famoso templo do saber para tomar o chá das cinco. Como se sabe, no Brasil tudo acaba em pizza, enquanto na Inglaterra tudo acaba em chá.
Mas a senhora Woolf decidiu que já tomara, nos seus 46 anos de vida, uma quantidade suficiente de chá com bolinhos. Fez uma reflexão profunda e original sobre o que tinha sido (ou não sido) a "presença" da mulher na literatura de seu país; sobre as circunstâncias que cercaram, e cercearam, através do tempo, a expressão da escritura feminina; sobre a contradição, a hipocrisia do mundo da cultura essencialmente machista – a começar pelas próprias universidades, cujo acesso fora sempre vedado a mulheres. Segundo Virginia, esse sistema prevalecia até aquela época. Ironizando, ela utiliza o termo Oxbridge, que se refere a Oxford e a Cambridge, para designar uma "universidade muito famosa" em cujo recinto ela própria, como mulher, só poderia entrar se acompanhada por um membro da faculdade; e em cuja biblioteca não teria podido pesquisar, pois também era "for gentlemen only".
Transformada em livro, A Room of One´s Own (editado em português com o título Um Teto Todo Seu pela Nova Fronteira), a famosa conferência de Virginia e outros escritos seus sobre o tema, reunidos na obra Three Guineas (1938), são considerados clássicos do gênero, fundamentais para o estudo sobre a literatura e a condição feminina. Não temos informação sobre a repercussão da palestra da genial inglesa em Cambridge, mas não é difícil imaginar a debandada dos guardiães do establishment, em defesa de seus privilégios. Um detalhe atual dá uma idéia: ainda hoje a mais sisuda e reputada das enciclopédias, a famosíssima Britannica, consagrando Virginia Woolf pela "sua contribuição original à forma do romance" e "como uma das mais proeminentes críticas de seu tempo", não somente ignora sua posição feminista como simplesmente omite de sua bibliografia justamente os dois livros citados.
Virginia torna-se assim, também ela, vítima pelo menos parcial da própria supressão que denunciara.
Entre nós
Enquanto isso, do outro lado do mundo... e em época bem distante, um grupo de pesquisadoras da área de literatura brasileira de vários pontos do país, chefiadas pelas professoras doutoras Rita Terezinha Schmidt, Eliane Vasconcellos e Zahidé Lupinacci Muzart, veio realizando nos últimos 15 anos um trabalho de resgate de todas as escritoras do século 19 que foram completamente suprimidas nas histórias da literatura e em muitos dicionários. O livro que registra essa pesquisa, Escritoras Brasileiras do Século XIX, organizado por Zahidé Muzart e lançado em 2000 pela Editora Mulheres, de Florianópolis, em parceria com a Edunisc, tem quase mil páginas e representa um verdadeiro trabalho de arqueologia literária – no qual se desencavaram até agora nada menos do que 52 autoras que, segundo a organizadora, "escreveram muito e abordaram todos os gêneros: das cartas e diários, dos álbuns e cadernos aos romances, poemas, crônicas e contos, dramas e comédias, teatro de revista, operetas, ensaios e crítica literária".
Muitas dessas mulheres não ousavam sequer assumir publicamente seus textos. Viviam confinadas em seu ambiente doméstico e produziam em segredo. Significativamente, inaugura a antologia uma "anônima" baiana que escreveu e publicou em 1887 um opúsculo feminista, As Mulheres – sua identidade não foi descoberta até hoje, mas pelo próprio texto percebemos que era da alta sociedade, muito bem casada e de formação intelectual aprimorada, conhecedora de várias línguas, inclusive o latim.
Sabemos também que a ficcionista Júlia Lopes de Almeida era obrigada, quando menina, na segunda metade do século 19, a esconder sua atividade literária do pai (o mesmo acontecera às britânicas irmãs Brontë, na primeira metade daquele século). Uma nota: em programação recente na TV, em São Paulo, foi exibida uma adaptação, com interpretação de Marília Pêra, de magnífico conto de Júlia Lopes de Almeida – "A Caolha". A validade de seu talento literário, pouquíssimo conhecido até hoje, se mostrou então incontestável.
No entanto, por mais que em todas as partes do mundo se processe atualmente – em especial em âmbito universitário – o resgate arqueológico da contribuição cultural da mulher em vários campos do saber e das artes, no Brasil, como alhures, atitudes preconceituosas continuam a prevalecer. Alguns críticos chegam a duvidar se teria valido a pena tanto esforço das realizadoras de Escritoras Brasileiras do Século XIX – afinal, "a maioria dos escritos resgatados era medíocre, e as suprimidas não escreveram mesmo nenhuma obra famosa..."
Essa observação em si merece lupa crítica: foi justamente em nome de uma predefinição de "mediocridade" intelectual e da restrição contínua e violenta à esfera doméstica e às funções definidas como "as únicas dignas" do sexo feminino (casamento e maternidade), que foram afastadas as mulheres do mundo do saber e mantidas ignorantes, analfabetas ou apenas educadas com verniz social, aprendendo um pouco de francês, bordado, etiqueta. E muita religião, é claro. Como diz Pedro Nava em suas memórias, "o curso [em escola de freiras] era inteiramente feito à gasosa, cada aluna freqüentando a aula que queria"; quando indagadas do ano que cursavam, as moças podiam responder "não sei, não... estou aprendendo agora pirogravura, as montanhas da África e aquele negócio dos lírios do bastão de São José".
Então, em primeiro lugar, ressalte-se uma obrigação de excepcionalidade em relação à mulher – e aos representantes das diversas minorias, sempre. O passaporte para o reconhecimento, nem que seja o simples arrolamento histórico, é, para esses, obrigatoriamente o talento extraordinário, a genialidade, o heroísmo ou uma "férrea força de caráter", uma "resistência" mantida apesar de todas as circunstâncias desfavoráveis. À mulher, ou ao minoritário em geral, cabe o ônus de uma prova nunca exigida da mera normalidade do ser privilegiado, situacionista.
Só que mesmo às pouquíssimas mulheres que conseguiram, história afora, provar talento resistente às piores circunstâncias, tem sido constantemente imposto um poderoso pacto de silêncio masculino, que incluiu (inclui até hoje) do desconhecimento sistemático e de um esforço crítico arrasador à própria destruição física de livros e de documentação. A organizadora da antologia citada descreve as minúcias do trabalho necessário para desenterrar até mesmo fragmentos de textos de algumas escritoras cuja lista bibliográfica foi registrada em escritos da época mas cujas obras não foram encontradas. Por exemplo: da quase mítica Rita Joana de Sousa (1696-1718), que teria escrito 21 obras, mas das quais não se obteve uma linha sequer... Outro caso é o da gaúcha Maria Josefa Barreto, nascida por volta de 1786/88 e falecida em 1837, poetisa citada em 14 artigos ou verbetes de sua época, da qual, porém, somente foi encontrado um poema.
Portanto, a história "oficial" da literatura brasileira tem passado até agora uma idéia errônea da presença (ou melhor, "ausência") feminina na cultura do país – como podemos constatar com feliz surpresa no levantamento feito pela equipe de Zahidé Muzart.
É interessante verificar que mesmo um crítico como Viveiros de Castro (citado ainda por Zahidé Muzart), que em 1895 dispôs-se a provar que era "nula a influência da mulher no panorama intelectual do país", reconhecia os motivos da ausência feminina no campo literário: "Aquelas que, rompendo com um meio tão hostil, atrevem-se a cultivar as letras, fazendo-se escritoras, devem logo resignar-se aos sarcasmos mais pungentes e às chufas mais grosseiras". Dizia ainda: "Contestam-lhes o talento e babam as mais vis calúnias sobre sua honra de mulher. Raramente recebem uma palavra de animação e, se alguém as saúda, é logo suspeito de ser seu amante".
Não é difícil imaginar, portanto, como essas escritoras tiveram de lutar pelo seu espaço cultural (minúsculo), e como a intolerância favorecida pela sociedade deve ter feito de tudo, de fato, para destruir física e espiritualmente seu legado. Muito poucas dessas mulheres conseguiram varar a barreira do establishment machista – podem ser contadas nos dedos de uma só mão as que foram lembradas pelos críticos e historiadores da literatura: na História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi – a mais usada no ensino atual –, há somente quatro nomes citados, todos de poetisas, Francisca Júlia, Gilka Machado, Auta de Sousa e Narcisa Amália, das quais somente a primeira mereceu biografia e destaque, sendo suficiente para as outras mera menção do nome, em meio a vários poetas de suas épocas. Para os historiadores do século 19 a mulher realmente não existia – nenhuma aparece nas histórias da literatura de Sílvio Romero e de José Veríssimo, muito embora o primeiro tenha escrito prefácios encomiásticos para livros de algumas delas...
A Enciclopédia da Literatura Brasileira, de Raimundo de Menezes, que em sua última edição (1978) registra um número até razoável de escritoras, relaciona-as em geral a um homem, de quem teriam sido esposas ou amantes. Nas biografias femininas, o público e o privado sempre obrigatoriamente se entrosam – são mencionados cônjuges, número e nome de filhos, um relacionamento familiar bem estabelecido, ou amantes e amores "espúrios". Pouco importam esses elementos, nas biografias masculinas. De uma escritora como Carmen Dolores (pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Mello), uma das mais importantes do século 19, jornalista e ficcionista, Raimundo não esquece de dizer que "entrou para a imprensa pela mão do famosíssimo político Alcindo Guanabara". E de Cecília Bandeira de Mello de Vasconcellos, filha de Emília e também escritora e jornalista (usou o pseudônimo de Madame Chrysanthème), não esquece Raimundo de dizer que "foi uma paixão tardia e ardente" do mesmo Alcindo Guanabara, e que também teria entrado na imprensa pela mão dele... Só que, se houve mão, desta vez teria sido a da própria mãe, que se tornara assídua e famosa cronista de "O País".
Demi-rebeldes
O interdito sobre a literatura feminina processou-se sempre sob duas formas: a genérica – "mulheres não devem escrever", ou estudar, ou ter uma profissão, etc.; e a particularizada –"mulheres não devem escrever sobre determinados assuntos, ou de tal ou tal forma". A definição idealizada de "mulher" como ser etéreo, "superior" (um pouco bobo...), virtuosa, delicada, ingênua – ser romântico, fora da realidade vil do mundo, protegido no recesso do lar, aquinhoado com a sublime missão (exclusiva) da maternidade, etc. – foi imposta pela ideologia masculina no decorrer de vários séculos, e principalmente no 19, auge da sociedade patriarcal burguesa. E assim, mesmo as mulheres que conseguiram romper com o primeiro interdito ("proibido escrever") e lutaram arduamente por uma posição no mundo literário não foram capazes, na maioria dos casos, de eliminar as barreiras do próprio inconsciente e ultrapassar os limites de uma certa literatura bem-comportada, formal, estritamente fiel aos cânones literários de gênero e forma impostos pelo convencional "bem escrever" (masculino). Mesmo em sua rebeldia, curvavam-se às restrições machistas ou procuravam "ser tão boas quanto" os homens.
Os séculos 18 e 19 viram a eclosão aqui e ali, na Europa como no Brasil, e mesmo nos Estados Unidos, de semi-rebeldes e feministas de meia medida que apenas levantaram (e já era muito) os problemas da condição feminina, ou expressaram a medo, sob pseudônimo e como que pedindo desculpas, sua sexualidade e seus verdadeiros sentimentos. Basta lembrar que uma das maiores escritoras inglesas, Mary Ann Evans (1819-80) só conseguiu penetrar no circuito literário e ter sucesso mantendo o pseudônimo masculino que a tornou famosa, George Eliot. O mesmo aconteceu com a francesa Amandine Aurore Dupin, baronesa Dudevant, que passaria à história como George Sand (1804-76).
Em um artigo sobre a educação feminina brasileira no século 19 – revista "Tempo & Memória" nº 1, agosto/dezembro de 2003, da Unimarco Editora –, Alzira Lobo de Arruda Campos examina como à repressão própria do sistema machista, que confinava a mulher à esfera doméstica, somavam-se os preconceitos advindos do próprio sistema educacional europeu, que não considerava sequer outro clima que não o temperado como conveniente à formação moral das educandas. E se as sinhazinhas de boas famílias eram enviadas para escolas que inexoravelmente refletiam "diversas colonizações do corpo e do espírito", tornando-as dependentes de três fatores pelo menos, isto é, do homem, da Europa e da ciência (que as definia taxativamente como "menos inteligentes"), evidente que para as mulheres escravas e proletárias esse quadro era acrescido de discriminações raciais e de classe, e elas eram mantidas na mais completa ignorância.
Levando-se em consideração tudo isso, é de admirar que em todo o Brasil, de norte a sul, surgissem já no início do século 19 numerosas jornalistas e escritoras conscientes dessas injustiças e que lutavam pelo direito da mulher à instrução e ao voto. Em meados daquele século já existia inclusive uma "imprensa feminina" – revistas e outras publicações com equipes formadas, muitas vezes, exclusivamente por mulheres, e a elas destinadas. A primeira delas foi "O Jornal das Senhoras", fundado em 1852 no Rio de Janeiro e editado no princípio pela argentina Joana Paula Manso de Noronha e depois pela baiana Violante de Bivar. Mas todos esses órgãos de imprensa não ultrapassavam certas fronteiras e faziam média em relação aos valores burgueses, isto é, pugnando pela educação da mulher, sustentavam essa necessidade para que ela pudesse "educar melhor seus filhos, futuros cidadãos" e "reinar no próprio lar", "como digna e leal companheira do homem".
Alguns destaques
Uma das mais importantes escritoras do século 19 foi Dionísia Gonçalves Pinto, nascida no Rio Grande do Norte em 1810 e falecida em Rouen (França) em 1885 – conhecida pelo pseudônimo de Nísia Floresta. Foi das primeiras mulheres a publicar contos, poesias, novelas e ensaios na chamada grande imprensa da época, no Rio de Janeiro, já a partir de 1830 – note-se que a imprensa brasileira só existiu a partir de 1817. Foi a precursora do feminismo no Brasil, e até mesmo na América Latina, e teve uma atuação política, social e literária significativa naquele período – não apenas no próprio país como na Europa, para onde se transferiu definitivamente em 1849, desgostosa com a profunda mediocridade do Brasil, tendo passado os últimos 28 anos de sua vida escrevendo e viajando.
Nísia fundou em 1838 um educandário para meninas, no Rio de Janeiro, o Colégio Augusto, cujo currículo atraiu críticas acerbas, pois enfatizava o ensino de línguas e ciências, em detrimento dos trabalhos manuais. Publicou em vida 20 obras, em português, francês e italiano – mas, embora seus livros fossem bem acolhidos inclusive na Europa (onde se relacionou com os mais importantes escritores, como Victor Hugo, Alessandro Manzoni, Augusto Comte, George Sand, Alphonse de Lamartine e Alexandre Herculano), não obteve sequer menção de nenhum dos críticos e historiadores daqui. Gilberto Freyre é um dos raros escritores brasileiros que tomou conhecimento da existência e da importância de Nísia Floresta. Em Sobrados e Mocambos apresenta-a como "uma exceção escandalosa": "No meio de homens a dominarem sozinhos todas as atividades extradomésticas, as próprias baronesas e viscondessas mal sabendo escrever, as senhoras mais finas soletrando apenas livros devotos e novelas que eram quase histórias de Trancoso, causa pasmo ver uma figura como a de Nísia". Não escapa, porém, o mestre de Apipucos de um certo machismo, ao usar pesado adjetivo para classificar Nísia como "verdadeira machona entre as sinhazinhas dengosas do meado do século 19" (o itálico é meu).
Não fosse por suas outras obras, que vêm sendo recuperadas aos poucos pela crítica feminista atual, Nísia mereceria ter sido objeto de estudo de nossos historiadores da literatura pelo menos por uma coisa: coetânea dos poetas românticos e indianistas, ela foi também a precursora de uma visão mais "moderna" do problema do indígena. Como diz Constância Lima Duarte, na obra que examinamos, "o poema nos traz não a visão do índio herói que luta, presente na maioria dos textos indianistas conhecidos, mas sim o ponto de vista dos derrotados, do índio vencido consciente e inconformado com a opressão de sua raça pelo branco invasor".
Outro nome de destaque: Josefina Álvares de Azevedo (1851-?), que alguns biógrafos consideram irmã ilegítima do poeta paulista Manuel Antônio Álvares de Azevedo, e outros, sua prima. Não se tem nem mesmo certeza do seu local de nascimento – uns a dão como nascida em Itaboraí (RJ), outros no Recife. O certo é que foi uma grande batalhadora da causa feminina e fundou em São Paulo em 1888 o jornal "A Família" – transferido seis meses mais tarde para o Rio de Janeiro –, que acolhia exclusivamente colaborações de mulheres, publicação que se manteve por cerca de uma década. Sua principal bandeira foi a luta pelo direito da mulher ao voto. Deixou pelo menos cinco livros, e uma peça que foi encenada, intitulada justamente O Voto Feminino. Maiores informações sobre sua vida e obra podem ser encontradas na tese de mestrado de Valéria Andrade Souto-Maior, O Florete e a Máscara, publicada em 2001 pela Editora Mulheres.
As atividades jornalísticas exercidas por mulheres durante o século 19 e princípios do 20 não se restringem ao âmbito doméstico ou feminino. Por exemplo, na produção de uma mulher nascida em 1855 em Jaboatão (PE), Francisca Izidora Gonçalves da Rocha – que foi também professora, conferencista, poetisa, cronista, romancista e tradutora –, surpreende ver a gama de tópicos que abordou nos vários órgãos da grande imprensa pernambucana. Tratava de política e fatos da atualidade, em âmbito nacional e internacional, como o assassinato da imperatriz da Áustria, ou a descoberta de originais de Bento Teixeira por Oliveira Lima. Fazia resenhas literárias de livros importantes, como Páginas de Estética, de João Ribeiro. Mesmo sem abandonar seu estado natal, tecia comentários que abrangiam toda a realidade brasileira, denunciando o "feudalismo" da capital da República exercido sobre os demais estados, ou prevendo, em 1910, futuros problemas, como o do "excesso de atividade material na luta pela industrialização, em detrimento da nossa cultura artística e literária".
Entre as paulistas, não podemos esquecer Maria Paes de Barros (1851-1952), que escreveu aos 81 anos uma História do Brasil e aos 94 uma preciosidade – No Tempo de Dantes –, suas memórias, editadas em 1946 por Monteiro Lobato, com prefácio de Caio Prado Júnior, e reeditadas pela Paz e Terra em 1998. É obra extremamente bem escrita e considerada de muito valor histórico e sociológico, pois retrata a ambigüidade da sociedade brasileira da segunda metade do século 19, dividida entre a tradição e o liberalismo político.
Anjos ou demônios
A mulher na literatura brasileira: ausente ou descaracterizada
Uma reflexão sobre a história literária brasileira faz ressaltar a ausência não só de escritoras mas também de personagens femininos fortes, autênticos, bem delineados, até os primórdios do século 20. Durante o período colonial, o Brasil viu surgirem relatos descritivos da terra, uma incipiente historiografia de caráter principalmente jesuítico, poetas líricos ou satíricos, o movimento poético da Arcádia – de todos eles a impressão global que perdura é de uma "terra sem mulheres", onde alguns homens ilustrados (de formação clássica advinda principalmente da Universidade de Coimbra) se divertiam entre si compondo versos, obras sacras ou panegíricos a governantes.
Quando aparecia, a mulher era – como Marília de Dirceu – pouco personalizada e reduzida à condição de objeto do desejo. Nunca sujeito. Essa característica persistiu durante todo o período romântico – na extensa galeria de personagens femininos do nosso primeiro romancista, Joaquim Manuel de Macedo, o mais famoso dos quais foi a Moreninha, protagonista da obra com esse título, ressalta a superficialidade, a obrigatoriedade de idealização romântica em uma literatura feita para entretenimento de senhoras da sociedade.
A mesma "irrealidade" detectamos nos cerca de 20 romances de um dos nossos maiores escritores, José de Alencar – que passou à história com o título, auto-atribuído, de "escritor dos perfis femininos". Ele descreveu bem o mecanismo do dinheiro como mola propulsora da vida na alta camada social em que vivia, retratou com minúcias o Brasil do seu tempo, com referências históricas e sociais, comprazendo-se em detalhes arquitetônicos, de mobiliário, de vestuário. No entanto, há sempre nos seus "perfis femininos" a interferência de uma idealização romântica que chega às raias da estereotipia – especialista em donzelas pálidas e louras, elegantérrimas e virtuosas, quando vai ao outro extremo para descrever "pecadoras" (principalmente em Lucíola), deixa que a força do preconceito as descaracterize por completo como pessoas, e acabem por recair no velho chavão da "prostituta de coração de ouro", belas, generosas, vítimas do destino, etc. Só que, no fim, punidas – Lucíola, jovem "decaída" de 19 anos, e que sacrificara a virgindade pela família, não pode ter um final feliz. Quando ama e é amada por um moço da "boa sociedade", não consegue atingir o status privilegiado de mulher casada e obrigatoriamente morre tuberculosa – a "dama das camélias" tupiniquim.
Sabemos que Alencar escrevia para agradar aos leitores – principalmente leitoras, isto é, senhoras do seu meio social que, à semelhança da teleaudiência das novelas da TV Globo de nossos dias, chegavam a interferir no desenrolar do enredo e no desfecho, com seus preconceitos. Foi basicamente, portanto, um escritor de "literatura amena", mas que no campo da expressão e da língua criou uma verdadeira literatura de ficção, até então praticamente inexistente entre nós. Senhora, seu último romance (1875), parece a princípio caracterizar-se como obra "realista", pois coloca na personagem de Aurélia uma mulher "diferente", inteligente, revoltada contra a mentalidade argentífera do seu meio. Ao descobrir que seu pretendente Seixas quer casar-se com ela por interesse, arquiteta uma vingança, reduzindo o marido a um objeto comprado e esvaziando seu casamento de qualquer relacionamento afetivo e sexual. Só que, infelizmente, o romancista anula sua obra fazendo a heroína arrepender-se. O final feliz garante a vendagem da edição.
A descaracterização da mulher real chega às raias do ridículo em um autor como Bernardo Guimarães. Em seu famoso romance A Escrava Isaura, em que pretende denunciar as mazelas da escravidão, embranquece a personagem, para embelezá-la: "A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada".
Para terminar tão breve incursão por assunto tão rico, lembramos o maroto provérbio norte-americano, "Good girls go to Heaven; bad girls go everywhere" – porque, de todas as heroínas da literatura brasileira do século 19, só conseguimos lembrar como "reais" certas "bad girls" de carne e osso – algumas figuras de O Cortiço, de Aluísio de Azevedo; a masculinizada Luzia-Homem (1903), de Domingos Olímpio; e a homicida que é Dona Guidinha do Poço, muito pouco conhecida até hoje, pois o romance, escrito por Manuel de Oliveira Paiva em 1891, só foi publicado após ter sido descoberto por Lúcia Miguel Pereira, em 1951.
Muito de carne, osso e duração é a misteriosa bad girl de Machado de Assis, a Capitu de olhos de ressaca... mas que nasceu já na beirada do século 20, em 1899. Um século em que a partir dos anos 20/30 as mulheres escritoras obtiveram finalmente, e aos trancos e barrancos, autorização para começar a se expor, na literatura e nos demais campos.
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